- O Estado de S.Paulo
Precisamos de um setor militar mais próximo do mundo civil, não de sociedade militarizada
Dizem que a França desmoronou ante os alemães em 1940 porque se havia preparado para repetir a 1.ª Guerra, e não para enfrentar a 2.ª Guerra Mundial. A última guerra de que o Brasil participou foi a do Paraguai (não contando a Força Expedicionária nos anos 40). Desde então mantemos uma força militar que hoje custa R$ 113 bilhões ao ano e estamos sendo derrotados pela invasão do coronavírus. Claro que a pandemia não é um problema militar, mas o conceito de segurança nacional, pelo qual o País deveria estar preparado para enfrentar crises e ameaças internas e externas, deve ser muito mais amplo que o da preparação para uma eventual, e cada vez mais improvável, guerra convencional.
Isso coloca pelo menos três questões que precisarão ser aprofundadas na discussão sobre a política nacional de defesa que o Congresso deve considerar proximamente, que prevê a vinculação de 2% do PIB a gastos federais com a área militar, R$ 50 bilhões a mais.
Primeiro, pensar a estratégia militar como parte de uma política mais ampla de defesa nacional, que deve incluir também as áreas de saúde pública, educação, ciência e tecnologia, proteção ambiental, defesa civil e segurança interna. O setor público precisa se capacitar para enfrentar eventuais crises sanitárias, ambientais e sociais com propostas de estratégia e de políticas públicas equivalentes às que o Ministério da Defesa preparou para o setor militar. Os custos de equipar as Forças Armadas, assim como os custos de um sistema adequado de saúde pública e proteção ambiental, são potencialmente infinitos, é sempre possível querer mais. É preciso trabalhar dentro das restrições orçamentárias, que se tornarão extremamente fortes nos próximos anos, combinando os recursos federais com os estaduais, do setor privado e da cooperação internacional.
Segundo, há que avaliar se o conceito de segurança nacional hoje adotado pela área militar deveria manter-se restrito ou ampliar-se para outras áreas em que os recursos e a capacidade de mobilização das Forças Armadas poderiam dar uma contribuição mais regular e direta. Não queremos voltar aos anos 60 e 70, quando um conceito extremamente ampliado de segurança nacional serviu para justificar o controle pelos militares de todo o Estado e da economia do País. Não faz sentido manter toda essa estrutura de pessoal e equipamento indefinidamente isolada nos quartéis, na expectativa do exercício de sua “função precípua”, uma guerra convencional que dificilmente virá, quando poderia estar sendo utilizada de muitas maneiras diferentes.
A área militar tem uma longa tradição de ações no âmbito civil, da construção de estradas ao relacionamento com as populações indígenas, dos tempos do marechal Rondon até o controle do tráfego aéreo civil pela Aeronáutica, sem falar no uso cada vez mais frequente de tropas em questões de segurança local e de fronteiras. Deve ser possível pensar num modelo híbrido, em que as Forças Armadas cumpram funções regulares na área civil sem perder sua capacidade de mobilização militar quando necessário. Ao contrário de uma sociedade militarizada, o que precisamos é de um setor militar muito mais próximo do mundo civil.
Terceiro, há que perguntar se a atual estrutura e as propostas de modernização das Forças Armadas são as mais adequadas para os recursos disponíveis e os dias de hoje. É inútil manter uma ampla Força Armada da qual só uma pequena parte é de fato operacional.
Ainda temos um serviço militar universal obrigatório só para homens que consegue incorporar apenas cerca de 90 mil do 1,6 milhão de rapazes que chegam aos 18 anos. Por outro lado, o acesso ao oficialato continua restrito a pessoas que passam pelas academias militares. Não seria o caso de profissionalizar o serviço militar, acabar com a discriminação contra as mulheres e abrir as carreiras militares a pessoas formadas por universidades civis? E não se poderia avançar muito mais na criação de uma reserva militar efetiva, formada por civis devidamente capacitados, e não necessariamente ex-militares aposentados, que possam ser mobilizados quando necessário, reduzindo assim o número de efetivos?
Finalmente, é preciso ter mais clareza sobre as três prioridades estratégicas propostas pelo Ministério da Defesa, a nuclear, a espacial e a cibernética. Para quê, mesmo, precisamos de um submarino nuclear? Quais benefícios civis e militares podemos esperar do programa espacial? Dos três, talvez o mais importante, e menos desenvolvido, seja o cibernético – sem uma proteção contra possíveis ataques eletrônicos, todos os demais equipamentos militares correm o risco de não sair do lugar. Tanto as tecnologias espaciais quanto as cibernéticas têm grande interesse civil e são impensáveis fora de uma forte cooperação com empresas e centros de pesquisa universitários, e dentro de uma estratégia bem concebida de cooperação internacional.
Os documentos de política e estratégia preparados pelo Ministério da Defesa precisam ser lidos e discutidos em profundidade, pensando na melhor maneira de militares contribuírem para enfrentar as guerras de hoje e de amanhã.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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