sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Fernando Abrucio* - Como as 100 mil mortes serão vistas no futuro?

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Os fatos mostram a falta que faz uma liderança agregadora e com capacidade de diálogo. Não temos agora, e para deixarmos um legado mais positivo a nossos filhos e netos, teremos de encontrar uma que realize essa tarefa em futuro próximo

O número de 100 mil mortes pela covid-19 é uma tragédia sem paralelo. Basta dizer que é o dobro de óbitos do maior conflito armado em que o Brasil participou, a Guerra do Paraguai, que durou mais de cinco anos. O pior é que a pandemia ainda ceifará muitas vidas, porque a doença ainda não entrou em declínio. Mas a gravidade da situação não comove a todos da mesma maneira. Muitos se resignaram, outros reagem com desdém, como o presidente Bolsonaro e seus seguidores. Para quem compreendeu o tamanho da tragédia, a luta pela dignidade da vida humana não deve ocorrer só no presente. O que está em jogo é o que contaremos a nossos filhos e netos.

A disputa pela verdade sobre o combate à pandemia não se esgotará na análise das curvas de popularidade do presidente ou no impacto da covid-19 nas eleições municipais. Claro que são aspectos importantes para serem acompanhados. No presente, é preciso dizer todos os dias, em todos os campos da vida social e na opinião pública, que não podemos esquecer dos mortos e devemos ajudar seus entes queridos. Ademais, é preciso continuar divulgando informações científicas que ajudem a reduzir o impacto da doença. É uma luta cotidiana contra o obscurantismo, o negacionismo e o anti-humanismo.

É um desafio não esmorecer frente à parcela de brasileiros e de líderes políticos que já normalizaram a morte de cerca de mil brasileiros por dia. Mais desafiante ainda será marcar na história do país quais foram (ou têm sido) os principais erros que o Brasil cometeu e como eles podem afetar negativamente nosso futuro enquanto nação.

Cinco são os aspectos que deveriam ser lembrados agora e para frente como equívocos cometidos no combate à covid-19. O primeiro refere-se à necessidade de se ter lideranças nacionais agregadoras, como tiveram Nova Zelândia e Alemanha. Nenhum país enfrenta desafios gigantescos, como a pandemia, o combate à desigualdade ou o desenvolvimento econômico, se não houver governantes capazes de conversar com atores diversos.

Obviamente que haverá sempre alguma oposição que não concordará com as políticas governamentais, o que faz parte do jogo democrático. No entanto, o verdadeiro líder ao menos procura os contrários e busca fazer discursos de união nacional. Assim fizeram Franklin Roosevelt, Konrad Adenauer e, no caso brasileiro, Juscelino Kubischeck, para não citar presidentes mais contemporâneos e ferir suscetibilidades. Bolsonaro segue outro modelo: o de governar procurando inimigos. Em meio a um problema tão complexo como a pandemia, só poderia dar errado.

Vale notar que o dia seguinte da covid-19 será ainda mais difícil. Será o momento da reconstrução social e econômica, que terá de secar as feridas da pandemia e gerar um novo pacto entre os atores políticos de vários lados. O que a história está nos ensinando é a falta que nos faz uma liderança agregadora e com capacidade ampla de diálogo. Não a temos agora e se quisermos deixar um legado mais positivo a filhos e netos, precisamos procurar uma que realize essa tarefa no futuro próximo.

O segundo aspecto da pandemia que ficará para a história diz respeito à falta de comando nacional na crise sanitária. O governo Bolsonaro optou por um federalismo que, por um lado, delegou as responsabilidades e a “culpa” para os governos subnacionais, e, por outro, a União não buscou tomar decisões conjuntas com Estados e municípios para aumentar a efetividade das decisões - ao contrário, o presidente escolheu um modelo de confronto, enxergando os gestores locais como inimigos políticos. O resultado foi uma enorme descoordenação federativa, um dos fatores mais relevantes para o fracasso no combate à covid-19, tal qual expliquei recentemente em artigo publicado com outros pesquisadores (“Combating Covid-19 under Bolsoro’s federalismo: a case of intergovernanmental incoordination”, Revista de Administração Pública, vol 54, n.4, 2020).

Uma lição fundamental para o futuro é que só resolveremos problemas complexos de políticas públicas como saúde e educação se houver mecanismos de coordenação e cooperação entre os níveis de governo. O Brasil é uma federação muito heterogênea e desigual, que precisa da atuação do governo federal para reduzir tais disparidades e ajudar os governos subnacionais, mas cujo sucesso depende da implementação mais descentralizada das políticas públicas, inclusive com parcerias entre Estados e municípios. Na verdade, desde a Constituição de 1988 e por meio de várias reformas nas últimas décadas, o federalismo brasileiro estava caminhando nesta linha de maior ação conjunta dos entes federados.

No entanto, logo na tragédia social mais grave de nossa história republicana, o presidente Bolsonaro optou por um modelo disfuncional de federalismo, enfraquecedor da nação e de suas partes constitutivas. Precisamos afirmar às gerações futuras que o bolsonarismo foi um dos piores momentos da história de nosso país e que esse divisionismo é o fim da ideia de Brasil.

O combate contra a ciência foi a luta escolhida por Jair Bolsonaro e seus seguidores em meio a uma pandemia que já deixou mais de 100 mil brasileiros mortos. Essa constatação estará escrita nos livros de história e é a terceira lição deixada pela forma como a covid-19 foi tratada pelo presidente da República. Ele não escolheu combater a doença, mas sim, preferiu confrontar-se com os fatores políticos e sociais que poderiam atrapalhar o seu futuro eleitoral.

O fracasso do país e de suas melhores elites em evitar essa insanidade do líder máximo da nação revela que devemos, urgentemente, convencer as pessoas da importância do saber científico. Talvez essa falha se inicie nas escolas, onde estamos sendo incapazes de aguçar a curiosidade dos alunos e mostrar para eles como a ciência faz parte da evolução humana em várias dimensões. Dizer aos jovens que não haveria celulares, internet, redes sociais e tudo que eles admiram sem grandes cientistas. Que eles poderão viver mais que seus avós e seus pais porque a medicina e outros campos de saber permitem alongar a experiência humana.

A mídia e os formadores de opinião também estão falhando em mostrar a centralidade da ciência em nossas vidas. Cada vez mais mitos urbanos, “fake news”, bravatas que só eram faladas antes em pequenos grupos de ressentidos, agora ganham cada vez mais adeptos. É preciso lembrar que quando a vacina chegar, será necessário convencer uma parte da população a se vacinar, por mais absurdo que isso pareça. De todo modo, para que a história seja diferente para nossos filhos e netos, poderemos usar o momento atual como um exemplo dos erros de um país quando ele ignora o saber científico.

No mesmo momento em que o país deixou que a tragédia das 100 mil mortes ocorresse sem o devido combate, outros erros de políticas públicas aconteceram, com efeitos nefastos para o futuro do Brasil. Uma quarta lição do modelo bolsonarista de governança em sua versão 2020 é que ele não é capaz de garantir as chaves para um futuro melhor. O abandono da educação chegou ao seu grau máximo. Milhões de alunos fora da escola por conta da pandemia e de que maneira o MEC reagiu a essa catástrofe? Simplesmente ele não fez nada. Nem conseguiu gastar os recursos que tinha, sequer se articulou com os governos subnacionais para atuarem conjuntamente. Não teve nenhuma ideia inovadora para lidar com essa situação. Sem políticas educacionais, nenhuma nação terá um passaporte para um mundo melhor a oferecer às próximas gerações.

A vitória da ignorância na educação foi replicada no meio ambiente. Seu ministro queria aproveitar a tragédia da pandemia para enfraquecer a regulação na área. O resultado desse descaso, que já começara no ano passado, é o pior momento ambiental do país desde o governo de Fernando Collor. O problema é que hoje o mundo dá muito mais importância à questão ecológica do que há 20 anos. O Brasil ficará fora do mapa dos investimentos e será rechaçado por grande parte dos consumidores dos países mais ricos se não fizer sua lição de casa em relação à preservação da Amazônia e de outros biomas importantes do país.

É preciso lutar para ultrapassarmos essa fase de desastre em várias políticas públicas, de modo que isso seja, em pouco tempo, um ponto no passado que será ensinado aos nossos filhos e netos como um desvio inadvertido em nosso caminho. Para que eles saibam que áreas como Saúde, Educação, Meio Ambiente, Cultura e Assistência Social precisam ter ministros qualificados, que conheçam suas áreas e sejam capazes de dialogar com os atores desses setores. Indivíduos ao estilo de Weintraub e Salles não poderão estar em governos no futuro.

O aprendizado com os diversos erros nesta pandemia passa, por fim, pela maior empatia com os brasileiros de toda parte do país, especialmente dos grupos mais vulneráveis. Talvez seja a lição mais dolorosa de toda essa tragédia. Negros das periferias urbanas, grupos indígenas, populações de áreas afastadas, idosos, desconhecidos e amigos que perdemos sem poder dizer adeus. Precisamos dizer aos nossos filhos e netos que toda vida, do mais rico ao mais pobre, vale a pena. Deveríamos ensinar nas escolas que essas 100 mil mortes são uma ferida em nossa história. Para superá-la, a lembrança sobre o que erramos será sempre necessária.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Nenhum comentário: