Ao lançar novo livro sobre direita populista, cientista político avalia que pandemia explodiu ideia da ‘austeridade sem limites’ e afirma que isolamento de Bolsonaro aumentará mesmo que Trump se reeleja
Claudia Antunes | O Globo
RIO — O cientista político e sociólogo Sérgio Abranches acaba de lançar mais um livro, “O tempo dos governantes incidentais”, no qual analisa a ascensão de lideranças populistas autoritárias, em geral de extrema direita. Para Abranches, esse fenômeno é fruto da combinação de uma época de mudanças estruturais vertiginosas — provocadas pela globalização financeira e a revolução tecnológica e científica, sob o pano de fundo das mudanças climáticas — com o fracasso das forças políticas democráticas tradicionais em apresentar respostas a elas.
No livro, ele observa que tampouco o nacionalismo autoritário tem um programa para a transição em curso, o que pode indicar que sua ascensão será breve. Em entrevista ao GLOBO, Abranches analisou o cenário global à luz do impacto provocado pela pandemia da Covid-19 e da próxima eleição nos Estados Unidos. Para ele, as forças sociais e políticas de oposição a Donald Trump estão agindo de maneira mais ágil e coordenada diante da percepção dos riscos à democracia representados pelo republicano do que a oposição ao presidente Jair Bolsonaro no Brasil.
• A pandemia trouxe a promessa de equalização, porque o vírus não distingue ninguém, mas aprofundou desigualdades. Ela exige cooperação internacional, mas acentuou nacionalismos. O que vai predominar?
O que a pandemia fez foi acentuar o crescimento da desigualdade que já estava associada à globalização recente, mas isso aumenta a consciência de que há um fosso que precisa ser eliminado. Pessoas que tiveram que recorrer ao mesmo tipo de assistência médica que os pobres viram o que é a vida da maioria. Ela também produziu uma solidão forçada, que não é por escolha individual. Com isso, interrompe o isolamento social voluntário e cria mais laços de solidariedade. Isso ajuda a espanar a polarização ideológica e deixar claro que nem tudo que a esquerda diz que se deve ter, como o gasto público em saúde, é mau. A pandemia torna a sociedade mais amigável a uma outra visão, de oposição a esses governos de extrema direita. Ela também chama atenção para que o isolacionismo não tem cabimento nessa situação. O governo brasileiro vinha memetizando os EUA e rejeitando tudo o que é chinês, e de repente tem que cooperar com a China na questão da vacina. Mas a pergunta é: será que vão surgir lideranças capazes de fazer essa ponte entre a polarização pré-pandemia e a vida pós-pandemia? Aí é uma dúvida, porque os partidos estão todos oligarquizados.
• No livro, o senhor fala em uma polarização positiva, com projetos que disputam o poder, e na negativa...
A positiva é aquela que põe as diferenças dentro de certos limites, que não faz terra arrasada do passado inteiro. Sobretudo porque passamos por mudanças estruturais incontroláveis. Vamos destruir uma quantidade enorme de empregos. Não se vai restaurar os mesmos empregos, é preciso criar novos. Tem uma série de respostas que exigem lideranças que pensem em longo prazo, não as que resistem à mudança por causa do medo, da incerteza, do ressentimento.
• Na pandemia, muitos países abandonaram o que o senhor chama de paradigmas econômicos obsoletos. Ela porá em questão o capitalismo financeiro globalizado?
Isso vai ser objeto de luta política. Mas o próprio capitalismo está se transformando tão rapidamente que essa ideia de uma austeridade radical não vai se sustentar mais. Mesmo no Brasil, onde estamos supostamente com um comando ultraliberal na economia, ficou claro que o consenso pela austeridade sem limites se rompeu. E não é voltarmos ao Estado de bem-estar anterior, porque ele não responde mais à crise da rede de proteção social, que foi pensada para um tipo de trabalhador que está deixando de existir. A rede não alcança esse mundo da economia do conhecimento, que não tem o mesmo vínculo empregatício nem o mesmo horizonte de trabalho que tinha o trabalhador anterior.
Não tem receita. A única coisa que sabemos é que determinadas coisas têm que ser mantidas funcionais porque descobrimos que a previsão científica estava certa, e que teremos mais pandemias no futuro por causa do avanço do mundo construído sobre o natural e pela abertura de fronteiras. Haverá mudanças, e uma delas, mais imediata, é na própria economia. Os países se deram conta que não dá para se livrar das cadeias de suprimento globalizadas, mas que há algumas pontas da cadeia que é preciso controlar, porque um colapso do suprimento produz um colapso nas economias locais e global. A ideia de que você deve investir só no mais barato deixou de fazer sentido, porque com isso você desvaloriza todos os ativos em que o capital está investido. A recessão acaba produzindo perdas para o mercado financeiro também.
• Nesse aspecto, o debate no Brasil ainda está atrasado, não?
O Brasil está muito atrasado em tudo. A discussão a respeito do 5G é sem sentido, se deve deixar a Huawei entrar ou não. Não tem alternativa para um país como o Brasil. Ou vai deixar a Huawei fazer ou vai fazer com a Nokia, que é mais cara. Mas aí vem o alinhamento com os Estados Unidos e eles entram nessa aventura. A gente repete uma tragédia nessa área de tecnologia da informação, porque, lá na privatização das comunicações, eles criaram um fundo, o Fust, que tem hoje R$ 20 bilhões, que tinha a ideia de expandir a internet para todas as escolas, para o campo. De novo perdemos uma oportunidade quando o Nicholas Negroponte se propôs a fazer um experimento no Brasil com a ideia de um computador para cada criança, com um design mais barato, e o Brasil não quis. Ele ofereceu pro Uruguai, e o Uruguai está essa ilha de tranquilidade tanto em relação à pandemia quanto à educação. Não usamos o Fust para obter esse resultado e agora estamos atrasando o 5G. Só tem um jeito para o atraso acumulado do Brasil, que é tirar vantagem do atraso. Implicaria a ideia de levar em consideração que somos uma potência de biodiversidade, uma potência florestal, e que podemos avançar na ponta da revolução tecnológica com biotecnologia, nanotecnologia, essas que ainda estão em aberto. Mas para isso tem que ter lideranças que olhem no longo prazo. Hoje a Índia e o Canadá produzem mais produtos de biotecnologia do que nós, sem ter a diversidade que temos. Fui ao Parque Grande Sertão Veredas, onde tem a favela, uma árvore do cerrado, que é cheia de espinhos e tem umas favas iguais às do flamboyant. A semente dessa fava tem um princípio ativo de um dos remédios mais importantes da Merck para o AVC. Eles pegam in natura, levam para lá, e a gente importa o remédio.
• No livro, o senhor faz uma distinção entre a direita liberal e a direita autoritária. Aqui há setores que se dizem liberais que apoiam o programa do Guedes. É possível separar Guedes do Bolsonaro?
Do ponto de vista da composição que apoia Bolsonaro, não. Porque Bolsonaro tem ainda o apoio quase unânime do mercado financeiro, com poucas exceções, e esse apoio só ocorreu por conta do Guedes, porque ele ia fazer uma política liberal, o inverso do PT. Mas Bolsonaro é um nacional-desenvolvimentista de corte antigão, e essa contradição está começando a aparecer cada vez mais.
Além disso, Bolsonaro, à medida em que começou a se sentir ameaçado pelos processos da rachadinha e da fake news, buscou o Congresso para garantir a sua imunidade. Ele não conseguiu fazer a maioria, mas conseguiu fazer um grupo suficiente que está interessado na imunidade e na impunidade. A contrapartida é reduzir o ritmo da Lava Jato, que é uma das razões pelas quais o mercado apoiou o Bolsonaro. O mercado o tempo todo perguntava na campanha se de fato o Bolsonaro levaria o Moro para o Ministério da Justiça. De fato, o espaço de apoio de Bolsonaro está se estreitando. Se Bolsonaro tira o Guedes e não consegue alguém similar, ele produz uma crise de apoio do mercado, que vai realizar todo o risco que está vendo no Brasil. Então eles são meio inseparáveis.
• O senhor citou a tentativa do Bolsonaro de formar uma base no Congresso com o centrão. Isso pode ser chamado de presidencialismo de coalizão?
Não. O presidencialismo de coalizão é um modelo que requer que o presidente para governar tenha uma coalizão majoritária. O que Bolsonaro fez desde o princípio foi se negar a cumprir as regras do modelo. Ele achou que conseguia governar com as bancadas temáticas, mas nem sempre a bala, a Bíblia e os ruralistas caminham juntos. O que ele aprovou, e o principal foi a reforma da Previdência, aprovou a despeito do governo, porque o processo já vinha do governo Temer. Agora que ele precisa de outras questões para andar, e o Paulo Guedes diz para ele que o mercado está pressionando, ele não tem uma maioria e nem vai conseguir, porque ele perdeu o timing de construir. Isso você faz assim que é eleito, está em lua de mel. O que ele fez foi uma colusão, um acordo de cumplicidade. Na verdade, do ponto de vista do presidencialismo de coalizão, ele continua com dificuldade de governar. E essa dificuldade se expressa no pedido de poder fechar órgãos e agências por decreto. Ele passa o tempo todo querendo um grau de autonomia do Congresso para realizar um projeto que é incompatível com a ideia de ter uma coalizão majoritária. E ele não vai conseguir, até porque é inconstitucional. A não ser que ele comece a fazer, aí sim, o que outros governantes incidentais fizeram, em geral nos países sem tradição democrática, que é corroer as instituições democráticas por dentro, e assumir o controle, do Judiciário, do Parlamento, e aí sim você neutraliza os mecanismos de freios e contrapesos. Certamente ele não vai fazer isso no primeiro mandato.
• No livro, o senhor cita um artigo do escritor Ian Buruma que pergunta “quando será tarde demais para soar o alarme” sobre o risco que Trump representa para a democracia. No caso do Brasil, em que muita gente acha que Bolsonaro busca uma acomodação, já passou da hora de soar o alarme?
No Brasil, acho que o alarme ainda não soou suficientemente forte. Um dos exemplos disso foi o pronunciamento do Lula no 7 de Setembro. É um pronunciamento que, se tivesse sido interrompido três minutos antes do final, teria sido perfeito, porque foi o ataque mais frontal e bem feito de oposição ao Bolsonaro até agora. Agora, ao recusar uma frente ampla contra a ameaça autoritária do Bolsonaro, ele mostra que ainda não tem noção, que acha que dá para confrontar diretamente, sozinho, o PT com seus aliados de sempre. E, se ele recriar a polarização, está eliminando a possibilidade de uma terceira via. Se houvesse de fato uma noção clara do risco, e acho que o Fernando Haddad tem essa noção, seria diante de uma frente ampla de todos que são contrários ao Bolsonaro. Houve a entrevista do Fernando Henrique, da Marina Silva e do Ciro Gomes, que se reconciliaram ao vivo na GloboNews, mas isso não foi adiante, e nenhum deles foi claro naquele momento para dizer o seguinte: estamos aqui propondo uma união de todos contra a ameaça autoritária. Não há essa noção de que tem um inimigo da democracia que é comum a todos e que a ideia é restaurar as condições de competição democrática de ideias. Nos EUA, acho que houve. A convenção do Partido Democrata mostrou a tentativa de uma coalizão ampla dentro do partido. Lá, existe a vantagem do bipartidarismo: se você consegue unidade entre as facções partidárias e um discurso que capte a maioria dos independentes, consegue ganhar a eleição. Ali houve tentativa clara de fazer isso, com Bernie Sanders e Elizabeth Warren dando apoio explícito ao Biden. Essa é a ideia de que soou o alarme, e tanto Sanders quanto Barack Obama falaram sobre a ameaça à democracia. Aqui o alarme ainda não soou, e se soar não sei se haverá uma liderança capaz de galvanizar um apoio majoritário para conter essa ameaça.
• No livro, o senhor aponta sinais de enfraquecimento da direita nacionalista em alguns países europeus. Agora, com o Estado assumindo com mais força seu papel de prover bens comuns, isso pode enfraquecê-la ainda mais?
Não tenho dúvida. Acho que o Matteo Salvini, por exemplo, já perdeu a vez, foi retirado do horizonte na política italiana. Mesmo nos países com pouca ou nenhuma tradição democrática há sinais. A vitória do Andrzej Duda na eleição presidencial na Polônia foi muito apertada, e o Viktor Orbán teve revezes eleitorais. Na Espanha, por exemplo, foi a subida da extrema direita, quase destruindo o Cidadãos, que convenceu o Podemos a se aliar ao Psoe para formar o governo.
• Nos casos de Polônia e Hungria, tendemos a minimizar um pouco os componentes sociais destes governos, com programas para setores, como o campo, que perderam com o ingresso na União Europeia...
São dois tipos de trajetórias de governantes incidentais diferentes. A Polônia tem uma experiência democrática muito menor do que a brasileira. A Rússia transitou do czarismo para o stalinismo e do stalinismo para o putinismo. Por outro lado, todos eles têm um legado importante da era comunista que era ter boa educação e boa assistência médica. Na hora em que os programas de austeridade começam a fazer o desmonte disso, a população reage. O populismo de extrema direita nestes países têm esse viés populista que é diferente do nosso, embora considere que todos elas reajam à mesma coisa: a mudança rápida acompanhada de programas de austeridade rigorosos, que produzem muito custo social. Porque você acumula dois custos: o da redução drástica da ação estatal, para atender ao consenso global, e dessa mudança vertiginosa que vai destruindo indústrias, postos de trabalho. E não tem mais a capacidade do Estado de lidar com isso como lidaria antes. Isso é, de fato, um dilema para qualquer governante. Às vezes há uma reação que vai pelo sinal contrário: a população está querendo proteção social, mas vota numa extrema direita que tem um discurso econômico liberal como foi aqui. E Bolsonaro só aderiu porque descobriu o efeito sobre a popularidade dele.
• Qual será importância da eleição americana para frear ou impulsionar essa onda autoritária global?
Enorme, porque sem o Trump, você volta a ter a maior potência econômica do mundo passando a dar de novo o exemplo no sentido da preservação da democracia. No caso do Brasil, o efeito é maior, porque nos deixa completamente isolados. Sem o apoio de Trump, o Brasil fica no pior dos mundos. Passa a estar com Arábia Saudita na questão da mulher, às vezes junto com a Venezuela. Cria um isolamento que torna praticamente impossível você ter uma política econômica exitosa, e portanto conseguir levar um projeto político adiante.
• E se Trump se reeleger?
Aí o Brasil escapa do isolamento total. Porém, se continuarmos com essa política antichinesa e criando problemas com os nossos principais parceiros europeus, tem uma hora em que decidem tirar o Brasil do mapa até ele voltar ao normal. Com o Trump reeleito, não sei se acontece a tempo de acertar o Bolsonaro. Porém, acho que Trump num segundo mandato teria mais atrito com o Brasil, continuaria nessa toada nacionalista, com uma política mais rigorosa de cotas aos produtos brasileiros. E isso mina as bases do apoio a Bolsonaro entre os empresários.
Bolsonaro se colocou em uma posição muito frágil ao fazer esse alinhamento automático, que não questiona nada. Por exemplo, apoiar um candidato americano no BID é um ato gratuito, desnecessário, deixa o Brasil indisposto com seus aliados na América Latina, mais longe da OCDE. Quer dizer, eles não pensam nas consequências.
• O senhor termina o livro com uma visão otimista sobre a revolução comunicacional representada pela internet, que tem sido muita questionada pelos episódios de manipulação política e eleitoral. Pode explicar por quê?
Porque na pandemia as pessoas escolheram o lado positivo da rede, passaram a ter que usá-la como um lugar de interagir socialmente, e descobriram muitas virtudes, da reunião de amigos e parentes distantes ao trabalho remoto. Caiu a ficha de que esse mundo da ciberesfera é indissociável de nossa vida social, econômica e política daqui para a frente. Na política isso sempre é mais lento, ela sempre vai, a não ser nas revoluções, a reboque das mudanças. Há uma disparidade de meios políticos, de influência e poder, entre os setores emergentes e maduros. É o caso do carvão, do petróleo, que têm mais poder de pressão do que as energias alternativas.
A política tem uma inércia muito poderosa que faz com a mudança seja mais lenta. No entanto, os parlamentares passaram a fazer reuniões on-line, e elas permitem um tipo de interação que é menos agressiva do que a presencial. E isso pode produzir efeitos.
Eu sou otimista tanto com relação ao futuro das redes quanto ao uso delas na democracia e no universo social em geral, na educação, no trabalho. O problema das fake news ainda não foi resolvido, mas foi minimizado, tanto que, em todas as medições que eu tenho visto, aqui e nos Estados Unidos, o discurso de ódio está cedendo, não é mais tão avassalador quanto era, está diminuindo em volume e passou a ser contestado em tempo real.
A outra questão é a do controle de informações pessoais, do grau de privacidade. É claro que o conceito de privacidade tal como na era analógica acabou de vez, não existe mais. Mas tem um limite para o que essas grandes plataformas podem fazer com os dados individuais. E tem a questão da notícia, que é o fato de que elas usam as notícias dos outros para faturar e tornam dificílima a vida do jornalismo profissional.
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