- O Globo
Poder Judiciário deve contas à sociedade
Honra-me servir o nosso país como presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça pelos próximos dois anos, após mais de 40 anos de vida pública, tendo percorrido todos os degraus da carreira da Magistratura.
O sentimento de dever público é redobrado neste momento de soerguimento da vida nacional, em meio a uma pandemia que levou por ora mais de 130 mil vidas humanas, testando a capacidade de resiliência dos brasileiros e de nossas instituições como nunca na história contemporânea, e nos imbuindo de solidariedade para com as vítimas e seus familiares.
O meu sentir, como cidadão e como juiz, é que a nossa Constituição sairá mais fortalecida desta crise. Como o mais importante documento do povo brasileiro, ela permanece a âncora do Estado Democrático de Direito e a bússola que guia as nossas aspirações de presente e de futuro.
À frente do STF, preservaremos a sua função precípua como instituição de jurisdição maior, defendendo a Constituição e conjurando das nossas deliberações temas afeitos aos demais Poderes. Meu norte será a lição mais elementar que aprendi no exercício da Magistratura: a deferência aos poderes Executivo e Legislativo no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e vigilância na tutela dos direitos fundamentais.
Com efeito, o STF não detém capacidade institucional — nem é o legítimo oráculo — para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação. Tanto quanto possível, os poderes Legislativo e Executivo devem resolver interna corporis seus conflitos e arcar com as consequências políticas de suas decisões. Reduzir a judicialização excessiva da política requer um compromisso coletivo que se revela fundamental para a autoridade de Constituição.
Por outro lado, se cabe ao Judiciário guiar-se pelas virtudes passivas, não podemos abrir mão da independência judicial atuante por um ambiente político probo. De forma harmônica e litúrgica, em diálogo permanente com os demais Poderes, o Judiciário não hesitará em proteger as minorias e a liberdade de expressão, bem como em preservar a democracia.
Calcada nessas premissas, nossa gestão compreenderá cinco eixos, todos alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU. São eles: 1) proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) incremento da segurança jurídica conducente à otimização dos negócios; 3) combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; 4) acesso à justiça digital; e 5) fortalecimento da vocação constitucional do STF.
A vocação constitucional do STF merecerá especial atenção nos próximos dois anos, porquanto não se justifica que sejamos a Corte Suprema que mais julga processos no mundo. Em 2019, foram 115.603 processos julgados, em contraposição aos 70 casos julgados pela Suprema Corte americana. Julgar muito não significa necessariamente julgar bem. Destarte, o fortalecimento do sistema de precedentes permitirá a redução dos processos que chegam desnecessariamente ao STF.
Outrossim, as excelentes gestões que me antecederam criaram as bases para consolidarmos a Revolução Digital do Poder Judiciário, o que nos permitirá desenvolver soluções criativas e baratas, porém com alto impacto estrutural, em direção a um acesso à justiça digital. O STF caminha para se tornar a primeira Corte Constitucional 100% digital do planeta, com perfeita integração entre inteligência artificial e inteligência humana. Nas demais instâncias, entre outras iniciativas, criaremos varas virtuais e incentivaremos soluções alternativas de conflitos em plataformas eletrônicas.
A tecnologia também será instrumento para aprimorar o sistema de combate à corrupção e de recuperação de ativos. Ampliaremos parcerias estratégicas com organismos nacionais e internacionais e adequaremos o país às recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional, mecanismos essenciais para o ingresso do Brasil na OCDE.
Por outro lado, não basta um Poder Judiciário tecnológico e eficiente, se os direitos básicos do cidadão não forem protegidos e concretizados pelas decisões judiciais. Nessa perspectiva, o destinatário central do nosso trabalho diário será o cidadão brasileiro. O exercício da judicatura requer a consciência de que o Poder Judiciário deve contas à sociedade e de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada brasileiro em que as nossas decisões decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.
Daqui em diante, é hora de pouco falar e muito agir, sempre com um olhar otimista e propositivo sobre o Poder Judiciário. As boas mudanças são geracionais. Por vezes, elas não ocorrem no tempo e no ritmo desejados. No entanto, ao lado dos 18 mil juízes brasileiros, inicio esta jornada sem a ilusão de conceber que em dois anos teremos resolvido todos os problemas do Poder Judiciário, mas com a motivação infinita de empreender transformações positivas no modo de fazer a justiça em nosso país. Não há milagres nem subterfúgios. O motor da história é olhar para frente, sempre com prudência, diálogo, senso de realidade e consciência de que devemos honrar e preservar os ideais de futuro que a Constituição do Brasil prometeu.
*Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal
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