- O Estado de S.Paulo
Espero que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo
"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço” (Ítalo Calvino, "Cidades Invisíveis"). Angústias acerca do Brasil de hoje me levam a recorrer a Calvino, a quem voltarei ao final deste artigo.
Há mais de 26 anos temos uma moeda dotada de relativa estabilidade de poder de compra. Há mais de 21 anos temos um regime cambial de taxas flutuantes que vem servindo bem ao Brasil, bem como um regime monetário de metas de inflação que também vem servindo bem a este país, que até o Real detinha o desonroso título de campeão mundial da inflação acumulada (do início dos 1960 ao início dos 1990).
Há mais de 20 anos deveríamos também ter um regime fiscal sólido. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada pelo Congresso Nacional em maio de 2000, consolidava relevantes avanços dos anos 90: a renegociação das dívidas de 25 Estados e cerca de 180 municípios, a reestruturação do sistema financeiro por meio do Proer e do Proes, este último voltado para os bancos estaduais, então mais de 30. E a implementação rigorosa do programa fiscal para 1999-2001, anunciado pelo governo federal ainda em 1998.
A LRF foi, desde o início, contestada por aqueles, numerosos, que acreditam que a responsabilidade fiscal é incompatível com responsabilidade social e com crescimento econômico. Trata-se de grave equívoco, traduzido de forma eloquente na famosa expressão “gasto é vida”. É a ideia de que a maior parte do gasto público, na verdade, não é gasto, mas um “investimento no futuro” – ainda que se trate de custeio, salários, isenções, deduções e desonerações de impostos e gastos financiados com créditos subsidiados. É a crença de que a expansão da demanda promovida pelo governo cria sempre sua própria oferta doméstica. Esse caminho foi definido em 2006, acentuado na crise de 2008-2009 e levado ao extremo em 2014 para assegurar a reeleição.
As consequências foram contundentes: a taxa de crescimento médio anual do PIB nesta segunda década do século 21 será praticamente zero, a renda per capita do brasileiro em 2020 será inferior à de 2010. Não foi, está claro, por falta de aumento do gasto público, que superou em muito a inflação e o crescimento real da economia.
Já discuti neste espaço as causas subjacentes à pressão por aumento dos gastos públicos no Brasil. Não pode haver dúvida de que essas pressões continuarão, até porque incluem razões legítimas, que têm que ver com nossas deficiências nas infraestruturas física e humana (educação e saúde) e com a necessidade de combater a pobreza e a assimetria de oportunidades que está na raiz da desigualdade social que caracteriza o Brasil, tão dramaticamente escancarada pela covid-19.
Sem a pandemia, a situação fiscal, que constitui nosso calcanhar de Aquiles macroeconômico, já era precária. A covid exigiu respostas emergenciais, e justificadas. O estado de calamidade aprovado pelo Congresso tem vigência até o fim deste ano, mas não tenhamos ilusões: as pressões por maiores gastos, novos programas (não apenas o Renda Brasil) e novos investimentos não cessarão com o fim do ano-calendário e, com ele, talvez, do estado de calamidade. A expressão “pós-covid”, usada para expressar o elusivo desejo de uma volta, tão rápida quanto possível, ao normal, é enganosa. O mundo pós-covid começou, na verdade, no início de 2020; suas consequências, aí incluídas as respostas de governos, e as expectativas que estas possam ter gerado, estarão conosco por muitos e muitos anos. A margem para velhos ou novos erros diminuiu de forma drástica.
Os três níveis de governo estão próximos do limite de sua capacidade – de tributar, de bem gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir. Os governantes hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para assegurar o rumo apropriado para o crescimento de longo prazo. Os problemas se agravam e se acentuam as incertezas sobre a sustentabilidade da dívida e dos déficits públicos.
Volto a Calvino: a citação da abertura é precedida da fala de outro interlocutor: “É tudo inútil se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito”. Espero que um número expressivo de brasileiros – suficiente para fazer a diferença – se recuse a acreditar que “é tudo inútil”, que nosso último porto como país só pode ser a cidade (polis, política) infernal para a qual a corrente nos estaria levando. Que não nos deixemos abater por desalento, desencanto e excessivo ceticismo. E que escolhamos – ao longo dos próximos e cruciais dois anos, e ainda muito adiante – o segundo dentre os caminhos contemplados por Calvino: reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
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