- Folha de S. Paulo
Ex-juiz pode interrogar presidente sobre a intervenção na Polícia Federal
Sergio Moro pode interrogar Jair Bolsonaro. O ex-juiz poderá inquiri-lo no processo sobre a intervenção do presidente na Polícia Federal, mas agora como réu, investigado.
A cena faz parte de duas farsas, uma delas obra pronta, outra em progresso. As duas contam um pouco da história da nossa viagem ao fundo da noite.
Na primeira peça, o lavajatista-mor torna-se colaborador do bolsonarismo, é escorraçado do governo feito um bagaço e então tenta refazer a carreira política ao acusar um ataque presidencial à democracia, de modo tardio e oportunista. Bolsonaro, como se sabe, tenta controlar a polícia e a espionagem a fim também de livrar filhos da cadeia.
Na farsa que ainda está sendo escrita, empilham-se indícios de que os Bolsonaro viviam de rachadinhas administradas por Fabrício Queiroz, agregado da milícia.
Esse rinoceronte de evidências esparramou-se no meio da sala, mas a classe dirigente finge que não vê o paquiderme, e dois terços do país parecem ignorá-lo. Tanto faz a cena de Moro ou mais alguém apontar crimes presidenciais.
Não há o crescendo de indignação, não raro farisaísmo histérico, o atropelo de denúncias contra o PT e Lula da Silva, caçado, interrogado e abatido por Moro. Os tartufos coxinhas do lava-jatismo são espanados pela Procuradoria bolsonarista. A geringonça de direita que comanda o que sobra do país deixa estar o caso das rachadinhas e acha que conteve o golpismo de Bolsonaro.
Que existam colaboracionistas e adesismo de direita não causa surpresa, embora ditos liberais possam estar cavando assim a sua cova. Espanta que a oposição também se acomode, com o mesmo efeito prático de deixar Bolsonaro solto.
A geringonça de direita é essa mistura de parlamentarismo branco com a coalizão liberal-reformista de certas elites, em parte gerenciada por mumunhas e arreglos do Judiciário politizado. Não é brincadeira. A geringonça vai ainda mais fundo nas mudanças socioeconômicas que começaram com Michel Temer e “faz o ajuste” sem pagar um centavo extra de imposto.
A elite da geringonça parece acreditar no próprio taco. Acha que o povo miúdo vai ficar quieto na longa travessia das “reformas” até a volta de um (talvez) crescimento. Ignora até sinais de autoritarismo econômico de Bolsonaro, evidentes nas suas tentações dirigistas quando preços sobem, da gasolina ao arroz.
Há dilemas concretos, de resto. Bolsonaro e até a anestesia social demandam um plano de renda mínima para o qual não há dinheiro bastante dentro do teto de gastos, mesmo que se esfole o funcionalismo, próximo projeto da geringonça. Parte do governo deseja esculhambar o teto, o que enerva os financistas —os juros de longo prazo voltaram a subir, ainda acima do nível pré-pandemia.
Parte da ala política da geringonça gostaria de ver Bolsonaro pelas costas, mas espera que as “condições objetivas”, como um rolo policial, caiam do céu. A esquerda, na prática, vai na mesma linha, acreditando ainda que as “contradições do governo” vão minar o prestígio presidencial.
A crise econômica de fato ainda irá longe e fundo para os mais pobres, mas uma revolta é incerta.
Moro pode interrogar Bolsonaro. O que já foi também um drama nos tempos de Lula agora é cena de uma farsa que pode descambar para terror burlesco. Desta vez, as classes dirigentes acomodam-se à ficha corrida da família presidencial e também aos achaques autoritários, à propaganda de mentiras, da epidemia às queimadas, e ao desgoverno geral. Enquanto isso, Bolsonaro está solto.
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