domingo, 13 de setembro de 2020

Eliane Cantanhêde - De quem é a culpa?

- O Estado de S.Paulo

A crise do Rio confirma que a culpa da descrença na política não é da Lava Jato, é de políticos

Quem tem certeza de que a culpa pela eleição de Jair Bolsonaro, o esfarelamento do PT e a desgraça dos partidos, da política e dos políticos é da Lava Jato e da mídia deve parar, pensar e olhar o que acontece no Rio de Janeiro, um dos três estados mais importantes, que abriga o cartão postal do Brasil no mundo. Ali, não sobra pedra sobre pedra.

A crise no Rio é moral, ética, política, econômica, financeira, social, de segurança, de saúde, de educação... Isso tudo não é resultado da Lava Jato e da cobertura da mídia. Ao contrário, veio à tona exatamente porque houve um mergulho dos órgãos de investigação no que vinha ocorrendo e se eternizando e porque a mídia registrou. Ou melhor, revelou.

Sérgio Cabral não existiu por causa da Lava Jato, mas a Lava Jato existiu por causa dos Sérgio Cabral. Ele virou o que virou pela impunidade, ela surgiu contra a impunidade. A roubalheira ficou tão fácil que foi crescendo a perder de vista, contaminou instituições, dragou belas biografias, operou com quantias de tirar o fôlego. A corrupção no Brasil e no Rio se mede aos muitos milhões, aos bilhões de reais.

Os últimos cinco governadores do Rio estão na cadeia ou passaram por ela, ex-presidentes e líderes da Assembleia Legislativa também, a cúpula do Tribunal de Contas desmoronou. O atual governador, Wilson Witzel, está afastado e toda a linha sucessória comprometida: o vice em exercício, Cláudio Castro, e o presidente da Alerj, André Ceciliano, acabam de ser alvos de busca e apreensão.
Ceciliano é do PT, mas Witzel e Castro são do PSC, da linha de frente de apoio ao governo federal e presidido pelo Pastor Everaldo, que acaba de ser preso, é acusado também de ter ganho R$ 6 milhões para fingir ser candidato a presidente para insuflar a candidatura de Aécio Neves, do PSDB, e foi quem batizou Bolsonaro no rio Jordão, em Israel.

O prefeito do Rio, aliás, é Marcelo Crivella, da Igreja Universal do Reino de Deus, e passou raspando na votação do pedido de abertura de impeachment na Câmara de Vereadores, por pagar sua própria “milícia” com dinheiro público. São servidores públicos que impedem que cidadãos denunciem os desmandos da saúde à mídia nas portas dos hospitais e transformam em fakenews e oba-oba os eventos públicos do prefeito. O líder passou a ganhar R$ 18 mil por mês em plena pandemia.

Crivella viajou com Bolsonaro no avião presidencial justamente no dia em que sofreu busca a apreensão. Bolsonaro, o senador Flávio e o vereador Carlos apoiam a reeleição de Crivella, que concorre em novembro com o ex-prefeito Eduardo Paes, igualmente alvo da Justiça, e a ex-deputada Cristiane Brasil, que se entregou à polícia anteontem. Ela é filha do presidente do PTB, Roberto Jefferson. E até a Fecomércio, o Sesc e o Senac do Rio estão na mira, junto com advogados de Witzel e do ex-presidente Lula e o misterioso ex-advogado de Bolsonaro e Flávio.

A Mãos Limpas produziu o indigesto Berlusconi na Itália e a Lava Jato desaguou em Bolsonaro, Witzel, juízes, procuradores, militares, policiais e neófitos que assumiram o discurso moralista e agora caem na mesma rede dos antecessores. Assim como o PT foi só mais um a cair nessa rede, Witzel é só o exemplo mais vistoso do que veio em seguida.

A culpa por essa avalanche de escândalos, que atinge partidos e políticos de todos os matizes, muito experientes ou arrivistas, é da Lava Jato? Das TVs, rádios, jornais e revistas? Quem gerou o bolsonarismo e seus filhotes não foram a Lava Jato, que descortinou a sujeira, muito menos a mídia, que a mostrou ao distinto público. Foi, sim, a própria política. O erro original está no sistema. Que tal fazer a reforma política, eleitoral e partidária? Mas para valer.

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