Num
país até recentemente marcado pela disputa extremista de esquerda e direita,
reeleição de Covas é indicativo de que tempo das aventuras passou
A reeleição do prefeito Bruno Covas em São Paulo significa que os paulistanos estão razoavelmente satisfeitos com sua administração, ainda mais considerando as circunstâncias excepcionais criadas pela pandemia de covid-19. Confirmado pelas urnas, Bruno Covas terá pela frente o imenso desafio de não somente lidar com a possibilidade de uma nova onda de contaminações, mas principalmente de proporcionar as condições para que a cidade se recupere desse imenso baque.
O Estado mostrou,
em sua edição de ontem, uma lista com os dez principais problemas com os quais
o prefeito Bruno Covas terá que lidar. Chama a atenção o fato de que vários
deles são recorrentes há muitos anos – ou seja, já está mais do que na hora de
superá-los.
Não
há uma hierarquia dos temas, mas é inevitável colocar entre os mais importantes
o sistema de saúde no Município, que está sob forte tensão em razão da
pandemia. Há falta de médicos e de outros profissionais de saúde para trabalhar
com um sistema cada vez mais demandado, o que provoca filas crônicas para
exames, consultas e cirurgias.
Também
por causa da pandemia, a educação deve ser prioridade da próxima administração,
sobretudo porque a crise sanitária escancarou a desigualdade nesse setor. A
nota do Município no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) é
apenas a 10.ª melhor entre as capitais, o que não condiz com a riqueza da
metrópole paulistana. Urge uma ação decisiva para que as escolas nos bairros
mais pobres ofereçam melhores condições para reduzir o fosso socioeconômico na
cidade.
A desigualdade econômico-social, contudo, é muito mais ampla e tem de receber atenção redobrada do poder público, como mostra, aliás, a boa votação recebida pelo candidato Guilherme Boulos (PSOL), cuja campanha foi centrada nesse tema. O Mapa da Desigualdade mostra, por exemplo, que somente 18,1% da população paulistana mora num raio de até 1 km de alguma estação de trem ou metrô, e a maior parte desses afortunados vive no centro.
O
transporte, a propósito, continua a ser um setor com problemas crônicos –
atrasos, má qualidade do serviço e uma malha insuficiente – e, como mostrou
o Estado, é subfinanciado e fortemente subsidiado. O modelo atual aumenta
a remuneração das empresas prestadoras do serviço mesmo que este seja de má
qualidade – a tarifa sobe enquanto os ônibus estão cada vez mais lotados.
Outro
problema urgente é o habitacional. A quantidade de moradores de rua aumentou
significativamente, como pode atestar qualquer um que passe pela região
central, como resultado direto da crise causada pela pandemia. Se por um lado é
preciso atuar com firmeza para atender essa população, dando-lhe dignidade e
proporcionando condições para que possa trabalhar e se sustentar, por outro
lado é igualmente urgente enfrentar o déficit habitacional, que condena milhões
de paulistanos a viver em favelas ou então muito longe da região onde
trabalham.
Por
fim, mas não menos importante, é preciso aumentar e melhorar a qualidade dos
investimentos públicos em São Paulo. Há recorrente redução desses investimentos
nos últimos anos, sob as mais diversas desculpas. Está na hora de aperfeiçoar
não apenas a arrecadação, com criatividade e eficiência, mas principalmente a
distribuição dos recursos, cujo controle atual é muito precário.
A
reeleição do prefeito Bruno Covas indica uma aposta na continuidade, sem
aventuras orçamentárias nem mudanças radicais. O paulistano escolheu o caminho
conhecido, pautado pela moderação e pela serenidade. Num país até recentemente
marcado pela disputa extremista entre esquerda e direita, esse desfecho é um
claro indicativo de que o tempo das aventuras passou.
Os
problemas são tantos e tão desafiadores que demandam administradores que
conciliam os sonhos de uma cidade melhor com a noção dos limites impostos pela
realidade. Que o prefeito Bruno Covas tenha sabedoria, nos próximos quatro
anos, para estimular soluções criativas e inteligentes para os múltiplos
desafios que acaba de receber. A pujança de São Paulo fará o resto.
O espectro da fome – Opinião | O Estado de S. Paulo
Até
o fim de 2020, 5,4 milhões de brasileiros devem cair na vala comum da miséria.
Ante
o impacto planetário da pandemia, a atribuição do Prêmio Nobel da Paz para o
Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla em inglês) foi mais que
oportuna. A principal agência humanitária das Nações Unidas responde pelo maior
programa de combate à fome no mundo. Como notou a própria entidade, o prêmio é
um “poderoso lembrete de que a paz e a erradicação da fome são indissociáveis”.
Em
todo o mundo, cerca de 821 milhões de pessoas estão em situação de insegurança
alimentar. São 135 milhões que passam fome, e a eles se juntarão mais 130
milhões. Ou seja, a fome dobrará.
A
situação no Brasil também é alarmante. Em 2004, 35% dos domicílios estavam em
situação de insegurança alimentar. Essa parcela chegou a cair para 22,6% em
2013. Agora, porém, como alertou ao Estado Daniel Balaban, chefe do
escritório brasileiro do WFP, o País caminha “a passos largos” para voltar ao
Mapa da Fome. Os passos foram alargados com a pandemia, mas começaram a ser
trilhados bem antes dela. Com a recessão de 2014, milhões de domicílios
passaram para o estado de insegurança alimentar, chegando a 36,7% do total em
2018. Em cinco anos, a fome aumentou 43,7%. Até o fim de 2020, 5,4 milhões de
brasileiros devem cair na vala comum da miséria, totalizando quase 15 milhões,
7% da população.
Os
desafios mais dramáticos enfrentados pelo WFP no mundo vão muito além dos
problemas que afligem o Brasil, envolvendo a atuação em zonas de conflito onde
a fome chega a ser utilizada como arma para aniquilar populações tidas por
inimigas. Mas há os desafios análogos. O Comitê do Nobel apontou que o prêmio
ao WFP também simboliza a “necessidade de solidariedade e multilateralismo”. O
que o multilateralismo é no cenário internacional, a cooperação federativa é no
nacional. “O grande drama é que não há uma unicidade, um comando que lidere o
Brasil como um todo para sair desta pandemia”, alertou Balaban. “O governo
federal tem uma linha difusa, não sabe se apoia ou não a OMS, se apoia ou não a
quarentena.”
Outra
diferença em relação às calamidades enfrentadas pelo WFP é que a fome no Brasil
não é causada pela falta de comida, mas de dinheiro. Em relação a políticas
públicas, não há como exagerar a importância deste fato, mas também não se pode
minimizar o escândalo nele implícito: o País produz muito mais do que o
suficiente para alimentar toda a população – é um dos maiores exportadores de
alimento do mundo – e ainda assim milhões de famílias passam fome.
O
auxílio emergencial mostrou a importância de construir uma salvaguarda contra a
miséria. Em razão dele, segundo a FGV Social, o número de pobres caiu 23,7%,
mas com o fim do programa esse contingente voltará à pobreza. O Planalto tenta
elaborar um novo programa de renda mínima – se não por mais nada, pelo seu
valor eleitoral –, mas, como sempre, de maneira desarticulada e inepta. O
governo já propôs de tudo, até medidas ilegais, como o uso de precatórios, mas
reluta em encampar mudanças estruturais que poderiam reduzir gastos (como a
reforma administrativa, o Pacto Federativo ou a PEC dos gatilhos emergenciais),
ou promover mecanismos distributivos (como a reforma tributária), ou reduzir a
dívida pública (desestatização).
Como
disse o Papa Francisco em sua encíclica Todos irmãos: “Ajudar os pobres
com dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências.
O verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através
do trabalho”. Mas, se os quadros do governo batem cabeça para garantir um
programa de renda que lhe garanta a reeleição, não há nada remotamente parecido
com um roteiro de recuperação, produtividade, trabalho e educação.
Os
cavaleiros do apocalipse jamais cavalgam sós. Com a peste, vem a fome; e com
elas, a guerra e a morte. O Brasil não é assolado por conflitos civis, mas a
criminalidade é devastadora. Se o flagelo do crime não pode ser reduzido à
carência material, ela é sem dúvida a sua mola principal. Não é admissível que
na 9.ª maior economia do mundo tantas pessoas morram pela fome ou pela bala.
Entre o desemprego e a fantasia – Opinião | O Estado de S. Paulo
Desemprego
bateu recorde, mas o ministro Paulo Guedes vive em outro mundo.
Na Ilha da Fantasia onde vive o ministro Paulo Guedes falta lugar para os 14,1 milhões de desempregados do terceiro trimestre, número registrado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Podemos terminar o ano perdendo zero empregos”, disse o ministro na quinta-feira, um dia antes de sair o novo balanço trimestral do mercado de trabalho. Ele estava comemorando a abertura de 349.989 vagas formais em outubro, registradas no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Parte desses empregos é apenas sazonal. Além disso, os números acumulados em 2020 ainda eram negativos, com 171.139 postos fechados – e os da Pnad Contínua eram muito mais feios.
Se
vivesse fora da Ilha da Fantasia, o ministro poderia ter lembrado um fato bem
conhecido. Quando um país sai de uma recessão, o emprego normalmente se
recupera mais devagar que o conjunto das atividades. Para repor as empresas em
movimento, os funcionários trabalham mais duramente. Assim, o aumento de
produtividade torna dispensáveis, por algum tempo, novas contratações. Esse
argumento daria conta de uma parte dos fatos. Mas as pessoas mais atentas ainda
sentiriam falta de uma resposta para o dado mais impressionante.
Alguma
defasagem entre a retomada econômica e a recuperação do emprego pode ser
normal, mas a história observada no Brasil é diferente. Não houve, no terceiro
trimestre, apenas uma reação mais rápida do consumo e da produção industrial.
Houve aumento do desemprego, uma hipótese negligenciada nos manuais. E esse
aumento foi notável por mais de uma razão.
A
desocupação de 14,6% no trimestre de julho a setembro foi a maior da série
iniciada em 2012. Em vez de simplesmente se prolongar, o desemprego aumentou
1,3 ponto porcentual entre o segundo e o terceiro trimestres e atingiu um
recorde. Nesse intervalo, a população desocupada aumentou 10,2% (mais 1,3
milhão de pessoas) e passou a ser 12,6% superior à de igual período de 2019.
Esse
recorde foi só um dos fatos notáveis. A população ocupada chegou ao nível mais
baixo da série histórica. A taxa de ocupação, de 47,1% da população em idade de
trabalhar, também foi a menor da série. As pessoas ocupadas foram pela primeira
vez menos de metade do contingente disponível.
Mais
que um descompasso, houve um trágico desencontro, nesse período, entre a
atividade econômica e as condições de emprego. No terceiro trimestre a economia
produziu 7,5% mais que no segundo, de acordo com o Monitor do PIB - FGV.
Pela estimativa do Banco Central, divulgada alguns dias antes dos cálculos da
FGV, a atividade havia sido 9,5% maior que a do período de abril a junho. Os
dados oficiais do Produto Interno Bruto de junho a setembro devem ser
divulgados dia 3 pelo IBGE.
Os
números devem confirmar uma forte reação, embora talvez insuficiente para
compensar a queda do segundo trimestre. As estimativas divulgadas indicam essa
insuficiência, semelhante àquela observada em dezenas de países. Em muitas
dessas economias as condições de emprego melhoraram, embora permaneçam danos
causados pela crise. Nos 37 países da Organização para Cooperação Econômica e
Desenvolvimento (OCDE), o desemprego médio em agosto, de 7,4%, já era 0,6 ponto
menor que o de julho. Continuava superior ao de fevereiro, mas a redução havia
começado.
No
Brasil, o número oficial do desemprego mostra só uma parte do problema da
ocupação. Quando se juntam desempregados, ocupados por tempo insuficiente,
desalentados e ainda a chamada força de trabalho potencial, chega-se a 33,2
milhões de indivíduos. O drama ficaria ainda mais visível com a adição dos
empregados sem carteira assinada (9 milhões).
A
política de reativação pouco se ocupou do emprego. Só um exemplo: micro e
pequenos empresários, muito importantes para a criação de vagas, continuam com
muita dificuldade para conseguir crédito. Mesmo na Ilha da Fantasia esse fato
deve ser conhecido. Muito menos percebido, lá, é o drama do desemprego.
Vitória de Paes traz oportunidade para o Rio se reerguer – Opinião | O Globo
Desta
vez, porém, ele não terá a mesma bonança do passado: administrará uma cidade
falida
A
vitória previsível e avassaladora de Eduardo Paes sobre Marcelo Crivella — com
64% dos votos válidos — foi na verdade um plebiscito sobre o atual prefeito,
que não suportou o peso da rejeição a sua gestão sofrível. Foi, nas palavras de
Paes, um “não contundente” a Crivella. Os votos confirmaram a preferência do
eleitorado por um nome que administrou a cidade em dois mandatos consecutivos
(de 2009 a 2016), num período de bonança. Agora, o ex-prefeito que soube
aproveitar bons ventos do passado encontrará na volta ao Palácio da Cidade o
desafio de governar sem dinheiro, rodeado de déficits, em plena pandemia.
É
indiscutível que a imagem do vitorioso de ontem tem mais a ver com o Rio que a
do derrotado. Mas só imagem não basta. Em seu governo, Paes se beneficiou dos
projetos da Olimpíada e da Copa do Mundo. Aproveitou o trânsito nos governos
Lula e Dilma para financiar obras de infraestrutura de transporte e iniciar a
revitalização do Porto, empreendimento estratégico que não interessou a
Crivella. Agora prefeito novamente, eleito ontem para um terceiro mandato, Paes
terá de encontrar uma maneira de dizer a seu 1,6 milhão de eleitores que aquele
tempo de bonança não voltará.
A
situação financeira do Rio é precária, em virtude de um governo sem preparo
para enfrentar a conjuntura ingrata. Em 2019, as contas da prefeitura fecharam
com um buraco recorde acima de R$ 4 bilhões, terceiro ano consecutivo de
déficit. Este ano a prefeitura continuará no vermelho, tanto que Crivella
alertou que não terá como pagar em dia a primeira parcela do 13º salário.
Tenta, ainda, uma operação bancária para antecipar receitas dos royalties do
petróleo, a fim de cobrir um buraco de R$ 1 bilhão no Fundo de Previdência do
Município (Funprevi).
Será
uma herança pesada para Paes. Nesse cenário de terra arrasada, o novo prefeito
precisará exercitar sua capacidade de articulação com o setor privado, em busca
de parcerias que prescindam de dinheiro da prefeitura. A desorganização no
governo Crivella pode, paradoxalmente, ser uma vantagem. Permite que um gestor
experimentado como Paes possa, num primeiro momento, melhorar os serviços à
população sem grandes gastos.
A
eleição dele foi uma aposta nítida do carioca na gestão. A última eleição que
Paes perdeu, não custa lembrar, foi para Wilson Witzel, eleito na onda
antipolítica, apresentado como símbolo da renovação, depois retirado do cargo
num processo de impeachment sob acusações de corrupção. Witzel, também não
custa lembrar, derrotou-o em 2018 ao enfatizar as ligações de Paes com o grupo
corrupto de Sérgio Cabral. Crivella tentou, mas não deu certo. A memória de um
momento mais feliz na história do Rio falou mais alto.
O
principal desafio do novo prefeito, além da urgência na saúde, habitação,
segurança ou transporte urbano, é lidar com essa expectativa, já que hoje o
cenário é outro. Paes precisará criar condições institucionais para preservar
as eventuais conquistas, de modo que o sonho não acabe outra vez numa
melancólica quarta-feira de cinzas.
A dificuldade dos ‘postes’ para irradiar luz própria depois de eleitos – Opinião | O Globo
Padrão
se repete na América do Sul: uma vez na Presidência, as criaturas se voltam
contra os criadores
Uma
peculiaridade sul-americana é a profusão de ex-presidentes que usaram sua força
para eleger substitutos e, pouco depois, se tornaram inconvenientes aos
eleitos. É o que ocorre na Argentina, com o presidente Alberto Fernández e sua
vice, Cristina Kirchner. Repete-se na Bolívia, com Luis Arce e Evo Morales; na
Colômbia, com Iván Duque e Álvaro Uribe; e no Equador, com Lenín Moreno e
Rafael Correa, estes já rompidos.
No
Brasil, os eleitos sob patrocínio de líderes fortes nas urnas são conhecidos
como “postes”. Os exemplos do continente mostram a dificuldade dos que chegam
ao poder como “postes” para irradiar luz própria. O traço comum é uma
encruzilhada: ou governam ou se submetem à tutela dos ex-presidentes, cuja
popularidade vem dos tempos da economia turbinada pela valorização das
commodities no início do século.
O
caso argentino é eloquente. Fernández preside, mas Cristina governa, dizem os
peronistas ao definir o comando de um país falido, imerso numa crise social sem
precedentes. Ela foi decisiva para elegê-lo ano passado. Hoje nenhum dos dois
esconde os conflitos na condução do governo — o objetivo dela é controlar o
Judiciário, onde enfrenta várias acusações de corrupção.
Fernández
reestruturou a dívida externa, mas não resgatou a economia, por interferência
atribuída a Cristina, que também preside o Senado e controla a bancada
governista. Foi preciso um Maradona morto para reuni-los em público depois de
semanas distantes. Mesmo assim, se limitaram à cena protocolar na despedida do
craque, quinta-feira na Casa Rosada.
Na
Bolívia, Luis Arce nem completou o primeiro mês de governo, já se sente
obrigado a reafirmar diariamente sua autoridade em relação a Evo Molares, chefe
do MAS, coalizão cocalero-socialista hegemônica no país na última década e
meia. É um tipo de missão quase impossível, ensina a Colômbia de Iván Duque,
onde cada decisão é tomada sob o olhar tenso do “aliado” Álvaro Uribe,
ex-presidente envolvido em escândalos e candidato em 2022.
No
Equador, Rafael Correa tentou a fórmula do “poste” com o vice Lenín Moreno. Deu
errado. Moreno se tornou adversário ao estimular as investigações do braço
local da Lava-Jato. Correa acabou em autoexílio na Bélgica, condenado por
corrupção em obras da Odebrecht. Mas conserva algum prestígio eleitoral e
resolveu tentar de novo: Andrés Arauz será o seu novo “poste” na eleição de
fevereiro.
É
a mais nova aposta eleitoral de um cacique político sul-americano, que mantém
poder sem a responsabilidade do governo. A degradação institucional que deriva
desse personalismo, não raro misturado a escândalos de corrupção, não traz um
bom sinal à democracia no continente.
SP, dedicação integral – Opinião | Folha de S. Paulo
Covas
venceu com atenção a temas locais; votação de Boulos ressalta demandas
A vitória de
Bruno Covas (PSDB), 40, para a Prefeitura de São Paulo, embora
tecnicamente uma reeleição, representa também a sua primeira passagem como
protagonista pelo rito consagrador das urnas num pleito majoritário. Os
desafios a sua frente serão gigantescos.
Não
bastassem os problemas habituais de uma metrópole de 12,3 milhões de
habitantes, ainda longe em sua grande maioria de ostentarem padrões de renda e
bem-estar das capitais do mundo rico, há o impacto sanitário e econômico da
pandemia de coronavírus.
Dentre
os fatores que parecem ter levado à prevalência do tucano neste domingo (29)
—quando se tornou o segundo a ser reeleito na capital— está justamente a
atuação na crise. A melhora da sua popularidade vincula-se à aprovação pela
população das ações municipais contra a onda infecciosa.
Essa
decerto é uma história que ainda está para ser contada em sua totalidade, e os
próximos dias serão decisivos para isso, pois a cidade saberá se as autoridades
retardaram a adoção de medidas restritivas por motivos eleitorais. Ainda assim,
o contraste com a irresponsabilidade e a inépcia do governo do presidente Jair
Bolsonaro diante da pandemia é patente.
Apesar
de relativamente jovem, Bruno Covas teve a oportunidade de observar e conviver
com políticos experientes, com os quais espera-se que tenha aprendido que
lições não se tiram apenas das derrotas, mas também das vitórias.
Cabe-lhe
detectar no bom desempenho de seu adversário, Guilheme Boulos (PSOL), demandas
mal atendidas de largos segmentos da população por mais equidade no desfrute
das facilidades urbanas.
Combater
a desigualdade também significa interferir em dispositivos cegos que produzem
moradias precárias e distantes, além de transporte deficiente, para milhões de
paulistanos. Requer creches de qualidade nas periferias, e não depósitos de
crianças pequenas.
A
segunda lição dessa eleição para Bruno Covas é política. O prefeito poderia ter
tido caminho mais suave nas urnas se dois de seus correligionários e
antecessores no cargo, José Serra (2006) e João Doria (2018), não tivessem
abandonado a prefeitura com menos da metade do mandato cumprido para
candidatar-se ao governo estadual.
São
Paulo é grande e complexa o bastante para exigir do prefeito dedicação integral
à tarefa administrativa. A derrota de Serra na disputa da prefeitura em 2012 e
a grande rejeição a Doria na capital atestam esse fato de modo cristalino.
Quem
assume sem compromisso acaba queimado na grande fogueira de carreiras políticas
que tem sido a prefeitura paulistana. Que Bruno Covas absorva o ensinamento e
faça bom governo.
Mordaça judicial – Opinião | Folha de S. Paulo
Casos
de censura a publicações despertam, felizmente, a reação da democracia
A
Constituição de 1988 proíbe a censura sem margem para nuances. “É vedada toda e
qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”, determina seu
texto. Casos recentes de mordaça judicial, porém, reencenam abusos autoritários
ao violar tal princípio.
Na
semana passada, a Justiça do Rio de Janeiro determinou que o escritor João
Paulo Cuenca deletasse sua
conta no Twitter. O motivo foi Cuenca ter parafraseado Jean Meslier,
autor do século 18, ao publicar que “o brasileiro só será livre quando o último
Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”.
A
censura, além de inconstitucional, fundamenta-se em razões nebulosas. O juiz
Ralph Machado Manhães Junior, da comarca de Campos dos Goytacazes (RJ), decidiu
pelo banimento da conta do escritor por entender que “no caso em tela, há a
extrapolação” da liberdade de expressão.
Quando
o Judiciário se aventura a demarcar na areia os limites da liberdade alheia,
corre o risco de calar aqueles que deveria proteger.
Segundo
sua defesa, Cuenca é alvo de ao menos 134 processos iniciados por religiosos em
cidades de 21 estados. Trava-se uma guerra jurídica na qual perde a democracia.
A
repulsa à decisão do juiz independe de concordar ou não com a a afirmação que a
originou. Sob a alegação de proteção a um sentimento religioso difuso, a medida
tutela, sem respaldo legal, o que pessoas podem dizer e como.
Veículos
de imprensa por vezes são vítimas do mesmo afã censor. Reportagem do Intercept
Brasil, de 13 de novembro, foi retirada
do ar pela Justiça Eleitoral do Amazonas.
Na
peça, contava-se que Ricardo Nicolau, candidato derrotado à Prefeitura de
Manaus, valera-se de acesso privilegiado a um hospital municipal para gravar
vídeo para sua campanha. Relações pouco republicanas entre o Judiciário e
políticos locais, segundo o Intercept, tornam a história ainda mais obscura e
digna de investigação.
Difícil
imaginar que intervenções autoritárias desse tipo possam sobreviver a
instâncias superiores. A justificativa, comum no meio jurídico, de que se trata
de responsabilização posterior, e não censura prévia, é só um eufemismo.
Além
de inconstitucionais, tais arroubos de magistrados se mostram contraproducentes
para os fins imaginados. A censura de um conteúdo tende, isso sim, a aumentar
exponencialmente seu alcance, em feliz reação da democracia.
Agenda fiscal requer urgência do Executivo e do Legislativo – Opinião | Valor Econômico
Sem
votação da LDO, governo não poderá realizar gastos a partir de 1º de janeiro
Independentemente
do resultado do segundo turno das eleições municipais, o governo e o Congresso
a partir de hoje têm o desafio de até o fim do ano dar sinalizações importantes
para os rumos da economia brasileira, em especial da política fiscal.
Os
gastos realizados ao longo desta pandemia elevaram a incerteza envolvendo a
sustentabilidade da dívida bruta, que já supera 90% do Produto Interno Bruto
(PIB). A dívida líquida, que inclui ativos como as reservas internacionais,
também vem subindo e já ultrapassou os 60% do PIB, mais um sinal de perigo.
É
verdade que o aumento no endividamento é um processo generalizado no mundo.
Decorre dos elevados gastos exigidos principalmente nos primeiros meses da
pandemia. Mas também é verdade que o Brasil já partiu de uma posição pior, com
uma dívida alta para países emergentes, o que dá menor margem para acionar
políticas anticíclicas.
Nesse
quadro, faz parte do processo um aumento na inquietação de investidores. E isso
se manifestou na chamada “inclinação da curva de juros”, que ficou mais
“empinada”. Ou seja, com um aumento na distância entre as taxas de curto prazo
e as de longo prazo. Tal situação acaba implicando em maior custo de
financiamento da dívida, empurrando o Tesouro para um processo de encurtamento
de prazos, o que reforça o ciclo de piora na percepção de risco.
Felizmente,
apesar das turbulências e volatilidades recentes, o Tesouro conseguiu fazer um
volume grande de emissões em outubro, aumentando sua posição de caixa. Isso,
somado a medidas como o repasse do lucro do BC, que ainda não foi todo usado
pela União, e à volta das devoluções de recursos do BNDES no ano que vem,
sinaliza que os fortes vencimentos do início de 2021 serão honrados sem maiores
problemas.
Não
há, contudo, motivo para conforto. O terreno ainda está minado e é preciso
solucionar uma série de questões fiscais o mais rápido possível. Por isso,
espera-se que as articulações para a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) sejam retomadas. Esse instrumento precisa ser votado o quanto antes.
É
chocante que parlamentares tenham se enredado em uma briga que impediu, a esta
altura do ano, a criação da Comissão Mista de Orçamento (CMO). Pelo calendário
legal, a LDO deveria ter sido instalada antes do recesso do meio do ano. A
pandemia é uma desculpa muito pobre para isso não ter ocorrido. E usar a CMO
como instrumento de disputa pela presidência da Câmara é algo a se lamentar, em
especial em uma conjuntura como a atual. É importante destacar que sem ela
aprovada o governo não poderá fazer qualquer despesa a partir de 1º de janeiro.
Não há previsão de regra para se executar um Orçamento que não foi aprovado.
Esta,
aliás, é outra medida necessária, embora, se a LDO for votada, a urgência se
torna menor porque pelo menos a execução mínima de despesas estará garantida.
Além
dessa urgência de curto prazo, o governo e o Congresso precisam dar um sinal de
que estão resolvendo a sustentabilidade fiscal de longo prazo. É preciso,
assim, que se avance nas discussões sobre as PECs do Pacto Federativo e
Emergencial. É importante mostrar aos investidores que está se buscando
controlar despesas e ajustar as contas do governo de maneira permanente, também
viabilizando a sustentação do teto de gastos por mais algum tempo.
No
entanto, é preciso pensar também na agenda de crescimento. Há uma dúvida sobre
como será o comportamento da economia a partir de janeiro, quando em tese
deverão ser retirados os estímulos fiscais. A equipe econômica aposta que o
investimento privado virá e dará conta do recado, basta continuar aprovando a
agenda regulatória, mas muitos analistas temem o chamado “abismo fiscal”.
É
difícil saber, ainda mais diante do risco de uma segunda onda do coronavírus no
Brasil. Seria interessante, portanto, que a pasta da Economia abrisse mais
claramente qual seria o tamanho do pacote, caso houvesse a necessidade de nova
atuação do Estado, na hipótese de segunda onda. Nos bastidores, falou-se entre
1% e 2% do PIB, mas não houve qualquer anúncio.
O fato é que há muitas incertezas e é preciso diminui-las. Os congressistas devem, junto com o ministro Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro, entender a urgência de se transmitir sinais firmes sobre esta agenda. Reduzindo-se a incerteza, o cenário não deixará de ser complexo, mas certamente será mais fácil resolver os inúmeros problemas do país.
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