segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Autobiografia de um só dia

No engenho Poço não nasci: 
minha mãe, na véspera de mim, 
veio de lá para a Jaqueira, 
que era onde, queiram ou não queiram, 
os netos tinham de nascer, 
no quarto-avós, frente à maré. 

Ou porque chegássemos tarde 
(não porque quisesse apressar-me, 
e se soubesse o que teria 
de tédio à frente, abortaria) 
ou porque o doutor deu-me quandos, 
minha mãe no quarto-dos-santos, 
misto de santuário e capela, 
lá dormiria, até que para ela, 
fizessem cedo no outro dia 
o quarto onde os netos nasciam. 

Porém em pleno céu de gessos, 
naquela madrugada mesmo, 
nascemos eu e minha morte, 
contra o ritual daquela corte 
que nada de um homem sabia: 
que ao nascer esperneia, grita. 

Parido no quarto-dos-santos, 
sem querer, nasci blasfemando, 
pois são blasfêmias sangue e grito 
em meio à freirice de lírios, 
mesmo se explodem (gritos, sangue), 
de chácaras entre marés, mangues.

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