segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Marcus André Melo* - Equidistância política

- Folha de S. Paulo

Como anticomunistas, muito brandos; como antifascistas, muito severos

Em “O Tempo da Memória: De Senectude e outros escritos autobiográficos”, Norberto Bobbio descreve o ambiente político do pós-Guerra italiano em termos que paradoxalmente remete ao debate atual em nosso país. Bobbio refere-se às críticas que eram feitas a setores da esquerda e de centro, com os quais, então, se identificava, e que se engajaram na resistência ao fascismo, de não manterem equidistância quanto aos extremos políticos.

A acusação era de “termos sido, como anticomunistas, muito brandos e, como antifascistas, muito severos. Em uma única palavra, não sermos equidistantes.” Bobbio reconhece em suas memórias a validade da acusação, mas repudiava algumas de suas extensões, em particular a suposta “simetria entre fascismo e antifascismo”, apontando para a “diferença entre um estado de exceção e um estado de direito”. O antifascismo, argumenta, é um simulacro se a crítica tolera posições autoritárias.

A inteligência europeia do pós-Guerra enfrentou esse debate com grande intensidade na década de 50, quando vieram à tona os crimes de Stálin, o que levou a uma forte ruptura entre os intelectuais que continuaram a apoiar o estalismo e o maoísmo e os que se tornaram críticos.

A França foi o palco privilegiado desse debate, que envolveu Sartre, Aron e Camus, entre outros. Sua recepção na opinião pública qualificada européia e no mundo anglo-saxônico em particular levou à forte desprestígio da intelectualidade francesa, como mostrou Tony Judt em seu magnífico panorama em torno do assunto.

Mutatis mutantis, observamos na América Latina transformação similar após a redemocratização dos anos 80 e 90: a rejeição das ditaduras militares produziu forte reação antiautoritária, mas fora de sintonia com o apoio em muitos setores a governos autoritários “populares”. Cuba converteu-se no equivalente funcional da experiência do estalinismo na região.

A dinâmica partidária nas democracias do pós-Guerra até a recente onda populista foi marcada por certa convergência programática centrípeta (mais forte nas democracias majoritárias do que nas consociativas). A irrupção do populismo autoritário quebrou a trajetória: posições extremistas não se deslocam mais ao centro na disputa eleitoral.

O debate em torno de assimetrias e equidistâncias políticas emergiu com força entre nós. Para além da validade empírica da localização de posições no continuum de preferências políticas, o crescente desconforto de setores variados em relação à distribuição de partidos e políticos nas diversa métricas adotadas é benfazejo e deve ser festejado. Ele revela que apoio a regimes autoritários tem custos na disputa política.

*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

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