segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Demétrio Magnoli - A cidade de Crivella

- O Globo

Não há como fugir à constatação de que prefeito venceu no primeiro turno em territórios controlados por uma milícia específica

No primeiro turno das eleições municipais de São Paulo, Bruno Covas (PSDB) obteve 33% dos votos, e Guilherme Boulos (PSOL), seu rival no segundo turno, 20%. A ampla diferença, de 13 pontos percentuais, refletiu-se no triunfo de Covas em todos os distritos da capital paulista. No primeiro turno do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (DEM) conseguiu 37% dos votos, contra 22% de Marcelo Crivella (Republicanos). Mas a diferença, de 15 pontos percentuais, não se traduziu por vitórias de Paes em todos os distritos. O atual prefeito venceu em cinco zonas eleitorais, quatro delas situadas na Zona Oeste. O mapa eleitoral conta uma história sobre o Rio.

Há uma regra sociológica geral, violada pelo mapa do primeiro turno no Rio. No caso de eleições decididas por margens apertadas, é normal que se verifiquem vencedores distintos em diferentes regiões. Contudo, em pleitos muito assimétricos, o primeiro colocado triunfa em todas as grandes regiões. As exceções merecem análise específica, pois decorrem de cisões sociais marcantes. O mapa de Crivella inscreve-se nessa categoria.

A cisão de renda não explica o fenômeno. Certamente, o atual prefeito obteve suas escassas vitórias em áreas pobres da cidade — mas não em todas, nem na maioria delas. O cenário Leblon versus Campo Grande, tão atraente para analistas apressados, distorce radicalmente a realidade eleitoral do primeiro turno. Prova disso está nos triunfos de Paes em diversos bairros ainda mais pobres da própria Zona Oeste.

A influência neopentecostal da Igreja Universal explica apenas um aspecto do fenômeno. A Universal opera com força em quase todas as periferias da cidade, não apenas nos bairros que deram maioria ao prefeito. Não há como fugir à constatação de que Crivella venceu em territórios controlados por uma milícia específica.

A territorialização de grupos armados ilegais percorre duas etapas clássicas. Na primeira, os milicianos estabelecem redes de negócios, explorando o mercado compulsório formado pelos habitantes das áreas sob seu domínio. Na segunda, a fim de consolidar tais atividades econômicas, infiltram-se na esfera política, capturando instituições estatais. O mapa de Crivella evidencia o grau de progresso das milícias cariocas nessa direção.

No Rio, as milícias nasceram no interior da polícia, um aparato estatal, e já operam há tempo na política, elegendo vereadores e deputados. A impunidade prolongada dos grupos de milicianos, bem como a natureza explícita de seus negócios, indica a cumplicidade passiva ou ativa de sucessivos governos estaduais e municipais com essas organizações criminosas. Policiais-milicianos foram celebrados e agraciados por comendas parlamentares. As casamatas das milícias atravessaram, intocadas, o longo período de intervenção militar federal na segurança pública do estado. Hoje, em certas regiões da cidade, como revela o mapa de Crivella, as milícias sequestraram o direito de voto dos cidadãos.

Campo Grande, centro do mapa de Crivella, é a base da Liga da Justiça (hoje Bonde do Ecko), maior milícia carioca, fundada pelos irmãos Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, e Jerominho Guimarães, ex-vereador. A milícia expandiu-se para a Baixada Fluminense e controla negócios variados e bem conhecidos, com um foco especial em condomínios do programa Minha Casa Minha Vida.

As empresas do grupo financiam campanhas eleitorais de inúmeros candidatos. Um inquérito policial apura o envolvimento de milicianos do Bonde do Ecko no assassinato de diversos pré-candidatos rivais às câmaras de vereadores da Baixada Fluminense, do ano passado para cá. Desde as eleições de 2016, a organização criminosa tem candidato a prefeito — e o nome dele é Crivella. A cruz do pastor e a arma do miliciano marcham juntas na Zona Oeste do Rio.

O conceito de “Estado falido” aplica-se aos países em que o poder estatal perdeu, total ou parcialmente, o monopólio da força. O Brasil ainda não pode ser rotulado como “Estado falido”, mas a classificação descreve à perfeição a paisagem de sua segunda maior cidade. O mapa eleitoral não mente.

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