A
política americana, tal como personificada por Trump, continua intacta
Donald Trump não
foi repudiado nestas eleições. Não se trata da pessoa Donald Trump, mas do que
ele expressa em suas ações políticas, nesse intrincado jogo no qual o indivíduo
é ao mesmo tempo sujeito (em pequena medida, dirão os historiadores clássicos)
da História e apenas seu mero resultado.
E o que Trump expressa? O fato de que foram destruídos em larga medida os hábitos de moderação – debate aberto e tolerante, a oposição leal – em cima dos quais prosperou o liberalismo americano e seu espírito de comunidade e Nação. Essa destruição ocorreu vigorosamente nos dois “grandes lados” do espectro político.
As
elites de negócios conseguiram transformar o governo e suas agências de
regulação em instrumentos que favorecem interesses paroquiais ou setoriais, em
detrimento de outros. Em parte como resposta a crises financeiras, aprofundaram
desigualdades e desequilíbrios que tem se perpetuado em função de movimentos
demográficos e, principalmente, pelo “big divide” que é o acesso à educação (um
dos grandes definidores de “elite”).
De
outro, cresce a força de um tipo de idealismo utópico (que tem expressão mais
recente no “woke”) que substituiu direitos individuais por “direitos de
grupos”, e pretende substituir igualdade de oportunidades por igualdade de
resultados. O termo nasceu como jargão de rua em comunidades negras
significando “fique alerto, se liga” frente à brutalidade policial e racismo,
mas ampliou-se e atualmente é empregado para designar uma enorme abrangência de
ideologias e políticas com foco em justiça social.
Essa
breve descrição de polos antagônicos na “guerra cultural” é necessariamente
crua e simplificada, mas ajuda a entender essa percebida “irracionalidade” no
debate político americano (mas não só). É o fato de que o oponente é visto como
inimigo a ser destruído, como adversário irreconciliável, e isto num ambiente
no qual grande afluência e consumo ligados à enorme progresso tecnológico
causam paradoxalmente insegurança e desconfiança nas instituições (como
acreditar em princípios e valores comuns, por exemplo) que deveriam servir de
freio para o escorregão rumo à insensatez coletiva.
Nesse
contexto é que Trump virou a personificação e figura de identificação para
milhões que se sentem perdidos e sozinhos, com a solidão ironicamente reforçada
pelo apego a redes sociais. O que não diminui de maneira alguma suas
“qualidades”, como a de fazer do espetáculo um capital político. Como toda
figura política de amplitude nacional, Trump tem significados diferentes para
grupos diferentes em função de motivações diversas – mas nenhum o escolheu por
apego a “virtudes civis”, como os clássicos gostavam de elogiar as qualidades
da democracia americana.
Ficou
escancarado como na presente corrida eleitoral os concorrentes descreveram
resultados em favor do adversário como “abismo” e “precipício” sem volta. Não é
mera retórica eleitoral. É como segmentos importantes da sociedade americana se
encaram, e se estranham. São universos vivendo ao lado e ao mesmo tempo em
enorme distância um do outro. Esse “nacionalismo branco” representado por Trump
aflorou como uma característica que não desaparece com um resultado eleitoral.
Nesse
sentido, Trump não foi repudiado pois não é possível repudiar uma sociedade
histórica. Ela simplesmente existe. As eleições não deram sinal claro de que os
americanos estejam reconstruindo a confiança nas suas instituições, que
rejeitem política baseada na mentira e na distorção e que reencontrem o tal
“espírito coletivo” capaz de sobreviver a divergências e se alimente da
diversidade.
Em outras palavras, o retorno às tais “virtudes civis” não depende só de derrotar uma figura política.
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