quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Carlos Alberto Sardenberg - Que susto, hein?

- O Globo

Bolsonaristas vão dizer que Trump foi roubado, assim como Bolsonaro acha que foi roubado numa eleição que ganhou

Quando Donald Trump derrotou Hillary Clinton em 2016, fazendo jogo sujo, fazia sentido supor que isso tivesse acontecido por falta de conhecimento. Os americanos conheciam Trump como apresentador de TV e, digamos, um milionário metido a besta.

Era razoável supor também que boa parte dos eleitores estivesse farta da velha política, ali representada pela figura de um clã. Ok, Bill Clinton havia sido um bom presidente, Hillary tinha uma carreira pessoal de muito sucesso, mas de novo?

Também dava para imaginar que, depois de Obama, os americanos estariam decididos a experimentar uma virada à direita, como acontecia noutras partes do mundo.

Mas tudo isso se pensou depois da eleição. Porque, antes, era difícil imaginar que, depois de eleger o primeiro presidente negro, com o nome Barack Hussein, os americanos passassem para Trump.

Passaram, ganharam o benefício da dúvida.

Mas, passados quatro anos e Trump confirmando todo o jogo sujo que se esperava dele — e sendo agora amplamente conhecido como político —, admito que me surpreendi com a competitividade dele.

E, mais ainda, com alguns números apanhados nestes primeiros momentos, com dados do “New York Times”. Por exemplo: em comparação com 2016, Trump perdeu votos entre homens brancos com e sem diploma universitário. Em compensação, ganhou votos entre latinos de Miami (ok, são cubanos, em geral), mas também entre os mexicanos do Arizona. Os mexicanos, aqueles que foram simplesmente xingados por Trump.

De outro lado, Biden foi pior que Hillary entre negros (homens e mulheres) e latinos (também homens e mulheres). Era de imaginar o contrário, depois de tudo o que Trump e seu pessoal haviam feito.

As primárias mostraram um Partido Democrata bastante dividido num amplo espectro político. Sim, há socialistas na esquerda democrata, embora não haja um programa propriamente claro. Não há ninguém propondo a expropriação dos meios de produção, mas há muita gente contra o “grande capital”. Isso até vem de longe: Al Gore fez campanha contra o Big Pharma e o Big Oil.

Biden, talvez para atender a essa esquerda, criticou o Big Oil e propôs algum tipo de controle de preços ou distribuição social de remédios. Tudo na direção de evoluir o Obamacare, que não pode ser chamado de socialista, talvez nem de social-democrata.

Mas isso, em parte do eleitorado americano, deu alguma credibilidade às acusações de Trump de que há uma conspiração socialista e anticristã que precisa ser varrida dos EUA e do mundo.

Aliás, Trump voltou à ideia quando se declarou vencedor e disse que estava sendo roubado — não se importando nem um pouco em criar uma crise institucional de proporções inimagináveis.

Por outro lado, há republicanos do bem, gente que quer reorganizar o país. Biden foi senador por muitos anos, presidiu o Senado quando foi o vice de Obama, conhece republicanos. Pode, portanto, ser uma fonte de entendimento na direção do centro.

Mas tanto os republicanos quanto os democratas também elegeram seus radicais. Permanecerão nos seus partidos ou haverá divisões?

De todo modo, para o mundo, a quarta-feira terminou melhor do que começou. Biden muda para melhor o panorama global. Com ele, os EUA voltam ao Acordo de Paris, à OMS, à Aliança Atlântica. Claro que continua a disputa com a China pela hegemonia econômica, militar e tecnológica, mas será uma disputa, digamos, mais inteligente e com muito menos chance de descambar para algum conflito.

Mas que há muita confusão política/ideológica nos EUA e no mundo, disso não há dúvida.

E, para terminar, uma vitória de Biden deixa Bolsonaro inteiramente isolado nas Américas. E será bem feito. A tal amizade com Trump não trouxe nada de significativamente lucrativo para o Brasil.

Mas os bolsonaristas continuam por aí. Vão dizer que Trump foi roubado, assim como Bolsonaro acha que foi roubado numa eleição que ganhou.

Aliás, tem uma ironia aí. As nossas urnas eletrônicas saíram-se muito bem, obrigado.

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