terça-feira, 11 de maio de 2021

Maria Clara R. M. do Prado - A pobreza escancarada

- Valor Econômico

Com o auxílio aprovado, a pobreza atingirá este ano 61,1 milhões de brasileiros, seis vezes a população de Portugal

Todos conhecem a predominância da renda mal distribuída na economia brasileira. É, talvez, a sua característica mais marcante e duradoura. Ganhou impulso a partir do final da década de 60 com a política de “fazer crescer o bolo (da renda)” para reparti-lo depois e acentuou-se com o aumento vertiginoso da inflação na década de 80 até meados de 1994, quando o Plano Real conseguiu finalmente estabilizar os índices de preços sem que fosse, porém, viabilizada a redistribuição.

A pandemia da covid-19, que colocou o mundo de cabeça para baixo, afetou a renda de todos os países, com sérias implicações distributivas, impacto negativo na educação e aumento generalizado de pobres. O Banco Mundial estima que o mundo seja vítima do aumento dos níveis de extrema pobreza pela primeira vez depois da continuada queda verificada ao longo de 25 anos, até o ano passado.

No entanto, a fatalidade do vírus afetou os países de forma diferente, do ponto de vista econômico e social. Não fosse o auxílio distribuído no ano passado a famílias de baixa renda, no total de quase R$ 300 bilhões, os números da pobreza no Brasil teriam cravado o status de calamidade. O nível de pessoas pobres, considerando a renda per capita por domicílio de R$ 469 por mês (valor de hoje) segundo critério do Banco Mundial, caiu em meados de 2020 quando comparado ao ano anterior. Isso ajudou a sobrevivência das famílias de renda mais baixa que perderam empregos e ocupações e impulsionou a economia, que se retraiu à metade daquilo que era previsto no início da pandemia.

Para surpresa geral, 2021 chegou a cavalo de uma segunda onda da pandemia muito mais forte do que a anterior. Apesar disso, o auxílio emergencial concebido para este ano foi minguado a ponto do total não passar de R$ 45 bilhões. O resultado da redução para a sétima parte do montante destinado a aliviar a perda da renda dos mais pobres está à vista, escancarada na fisionomia dos brasileiros que imploram por comida nas esquinas das grandes cidades. Nunca as classes média e alta do país estiveram frente a frente com a pobreza de forma tão ostensiva.

Na tentativa de amenizar a fome, o setor privado, através de inúmeras iniciativas, tem se mobilizado intensamente na distribuição de cestas de alimentos nos bairros de renda mais baixa. É o recurso derradeiro para evitar o acúmulo de famintos que se somam ao acúmulo dos doentes e de mortos pela covid, mas não é, obviamente, suficiente para aplacar a pobreza.

No texto “Gênero e Raça em Evidência durante a Pandemia no Brasil: o impacto do auxílio emergencial na pobreza e extrema pobreza”, as pesquisadoras Luiza Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Anna Luiza Matos de Oliveira, do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP) estimam que, com os valores do auxílio emergencial aprovados para 2021, a pobreza no Brasil atinja este ano 61,1 milhões de brasileiros, entre os quais 19,3 milhões estarão fadados a viver na extrema pobreza (renda de R$ 162 por mês).

É muita gente. Representa quase um terço da população brasileira, seis vezes a população de Portugal e pouco menos do total de pessoas que vive no território da França.

Mais importante é o fato de que a quantidade de brasileiros que tende a ser empurrado para a pobreza neste ano, beneficiados com um auxílio emergencial bem menor do que no ano passado, será significativamente maior em comparação com os 51,9 milhões que padeciam na pobreza em 2019, sendo que destes 13,9 milhões eram extremamente pobres. O estudo, de abril último, mostra ainda que, desagregado por gênero, as simulações apontam o seguinte panorama da pobreza em 2021: 38% de mulheres negras, 36% de homens negros e 19%, respectivamente, de mulheres e homens brancos. Fica claro que a ajuda do governo neste ano está longe de compensar o desemprego causado pela retração econômica.

Não se pode perder de vista o pano de fundo que retrata as situações da pobreza e da má distribuição de renda para além dos efeitos recessivos provocados pela pandemia. Em um país onde quem tem rendimento de R$ 4 mil por mês (ou cerca de US$ 764,81 ao câmbio de ontem no segmento comercial) está estatisticamente na faixa dos 10% mais ricos, a realidade mostra que não só a renda é mal distribuída como é baixa, de modo geral. O Brasil está hoje na 85ª colocação em termos de renda per capita.

Mais grave ainda, como tem destacado o economista da FGV-Rio, Marcelo Neri, em suas pesquisas sobre a situação dos jovens brasileiros no mercado de trabalho, é a dramática desigualdade de renda na faixa etária dos 15 aos 29 anos que em cinco anos, até 2019, teria perdido, em média, 14% de renda. Os jovens pobres foram mais afetados, com perda média de 24% da renda, enquanto que os analfabetos perderam 51% da renda naquele período.

Visto por outro ângulo, o prognóstico para as futuras gerações de brasileiros não é nada alentador. Segundo o Índice de Capital Humano (HCI - Human Capital Index do Banco Mundial), o Brasil cravou a posição medíocre de 0,5515 na avaliação feita em 2020. Está muito abaixo de países da mesma região, como o México (0,6129) e o Chile (0,6516), e de outros emergentes como a China (0,6531), a Rússia (0,6814) e a Turquia (0,6493), para não falar dos europeus como a Irlanda (0,7926) e a Noruega (0,7711) e muito menos em Singapura (0,8791).

Aquele índice mede o montante de capital que uma criança nascida hoje pode esperar reter quando chegar aos 18 anos de idade, dados os riscos de deterioração da educação e da saúde no país em que vive. Tenta chamar a atenção sobre como as melhorias necessárias naquelas duas áreas podem definir a produtividade da próxima geração de trabalhadores, assumindo que as crianças nascidas hoje tendem a experimentar nos próximos dezoito anos as mesmas oportunidades educacionais e os riscos de saúde que as crianças daquela faixa de idade enfrentam atualmente.

Para mudar um quadro tão viciado, só mesmo uma transformação na maneira de encarar a má distribuição de renda no país que fuja das amarras dos antecedentes históricos e caia na visão objetiva de que quanto mais poder aquisitivo tiver a população, mais a economia tende a crescer e prosperar.

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