Com
o auxílio aprovado, a pobreza atingirá este ano 61,1 milhões de brasileiros,
seis vezes a população de Portugal
Todos
conhecem a predominância da renda mal distribuída na economia brasileira. É,
talvez, a sua característica mais marcante e duradoura. Ganhou impulso a partir
do final da década de 60 com a política de “fazer crescer o bolo (da renda)”
para reparti-lo depois e acentuou-se com o aumento vertiginoso da inflação na
década de 80 até meados de 1994, quando o Plano Real conseguiu finalmente
estabilizar os índices de preços sem que fosse, porém, viabilizada a
redistribuição.
A
pandemia da covid-19, que colocou o mundo de cabeça para baixo, afetou a renda
de todos os países, com sérias implicações distributivas, impacto negativo na
educação e aumento generalizado de pobres. O Banco Mundial estima que o mundo
seja vítima do aumento dos níveis de extrema pobreza pela primeira vez depois
da continuada queda verificada ao longo de 25 anos, até o ano passado.
No entanto, a fatalidade do vírus afetou os países de forma diferente, do ponto de vista econômico e social. Não fosse o auxílio distribuído no ano passado a famílias de baixa renda, no total de quase R$ 300 bilhões, os números da pobreza no Brasil teriam cravado o status de calamidade. O nível de pessoas pobres, considerando a renda per capita por domicílio de R$ 469 por mês (valor de hoje) segundo critério do Banco Mundial, caiu em meados de 2020 quando comparado ao ano anterior. Isso ajudou a sobrevivência das famílias de renda mais baixa que perderam empregos e ocupações e impulsionou a economia, que se retraiu à metade daquilo que era previsto no início da pandemia.
Para
surpresa geral, 2021 chegou a cavalo de uma segunda onda da pandemia muito mais
forte do que a anterior. Apesar disso, o auxílio emergencial concebido para
este ano foi minguado a ponto do total não passar de R$ 45 bilhões. O resultado
da redução para a sétima parte do montante destinado a aliviar a perda da renda
dos mais pobres está à vista, escancarada na fisionomia dos brasileiros que
imploram por comida nas esquinas das grandes cidades. Nunca as classes média e
alta do país estiveram frente a frente com a pobreza de forma tão ostensiva.
Na
tentativa de amenizar a fome, o setor privado, através de inúmeras iniciativas,
tem se mobilizado intensamente na distribuição de cestas de alimentos nos
bairros de renda mais baixa. É o recurso derradeiro para evitar o acúmulo de
famintos que se somam ao acúmulo dos doentes e de mortos pela covid, mas não é,
obviamente, suficiente para aplacar a pobreza.
No
texto “Gênero e Raça em Evidência durante a Pandemia no Brasil: o impacto do
auxílio emergencial na pobreza e extrema pobreza”, as pesquisadoras Luiza
Nassif-Pires, Luísa Cardoso e Anna Luiza Matos de Oliveira, do Centro de
Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo
(Made-USP) estimam que, com os valores do auxílio emergencial aprovados para
2021, a pobreza no Brasil atinja este ano 61,1 milhões de brasileiros, entre os
quais 19,3 milhões estarão fadados a viver na extrema pobreza (renda de R$ 162
por mês).
É
muita gente. Representa quase um terço da população brasileira, seis vezes a
população de Portugal e pouco menos do total de pessoas que vive no território
da França.
Mais
importante é o fato de que a quantidade de brasileiros que tende a ser
empurrado para a pobreza neste ano, beneficiados com um auxílio emergencial bem
menor do que no ano passado, será significativamente maior em comparação com os
51,9 milhões que padeciam na pobreza em 2019, sendo que destes 13,9 milhões
eram extremamente pobres. O estudo, de abril último, mostra ainda que,
desagregado por gênero, as simulações apontam o seguinte panorama da pobreza em
2021: 38% de mulheres negras, 36% de homens negros e 19%, respectivamente, de
mulheres e homens brancos. Fica claro que a ajuda do governo neste ano está
longe de compensar o desemprego causado pela retração econômica.
Não
se pode perder de vista o pano de fundo que retrata as situações da pobreza e
da má distribuição de renda para além dos efeitos recessivos provocados pela
pandemia. Em um país onde quem tem rendimento de R$ 4 mil por mês (ou cerca de
US$ 764,81 ao câmbio de ontem no segmento comercial) está estatisticamente na
faixa dos 10% mais ricos, a realidade mostra que não só a renda é mal
distribuída como é baixa, de modo geral. O Brasil está hoje na 85ª colocação em
termos de renda per capita.
Mais
grave ainda, como tem destacado o economista da FGV-Rio, Marcelo Neri, em suas
pesquisas sobre a situação dos jovens brasileiros no mercado de trabalho, é a
dramática desigualdade de renda na faixa etária dos 15 aos 29 anos que em cinco
anos, até 2019, teria perdido, em média, 14% de renda. Os jovens pobres foram
mais afetados, com perda média de 24% da renda, enquanto que os analfabetos
perderam 51% da renda naquele período.
Visto
por outro ângulo, o prognóstico para as futuras gerações de brasileiros não é
nada alentador. Segundo o Índice de Capital Humano (HCI - Human Capital Index
do Banco Mundial), o Brasil cravou a posição medíocre de 0,5515 na avaliação
feita em 2020. Está muito abaixo de países da mesma região, como o México
(0,6129) e o Chile (0,6516), e de outros emergentes como a China (0,6531), a
Rússia (0,6814) e a Turquia (0,6493), para não falar dos europeus como a
Irlanda (0,7926) e a Noruega (0,7711) e muito menos em Singapura (0,8791).
Aquele
índice mede o montante de capital que uma criança nascida hoje pode esperar
reter quando chegar aos 18 anos de idade, dados os riscos de deterioração da
educação e da saúde no país em que vive. Tenta chamar a atenção sobre como as
melhorias necessárias naquelas duas áreas podem definir a produtividade da
próxima geração de trabalhadores, assumindo que as crianças nascidas hoje
tendem a experimentar nos próximos dezoito anos as mesmas oportunidades
educacionais e os riscos de saúde que as crianças daquela faixa de idade
enfrentam atualmente.
Para mudar um quadro tão viciado, só mesmo uma transformação na maneira de encarar a má distribuição de renda no país que fuja das amarras dos antecedentes históricos e caia na visão objetiva de que quanto mais poder aquisitivo tiver a população, mais a economia tende a crescer e prosperar.
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