O caminho para esta jornada é o da política que na aparência se mostra fértil para as incursões redentoras, mas basta que elas se iniciem para que se encontrem com os muros das nossas taras congênitas como as do patrimonialismo e do patriarcalismo que sempre o acompanha, engrenagens poderosas treinadas em barrar os processos de mudança, presentes em número expressivo na nossa representação parlamentar. Pois é preciso que se atente para o fato de que o atual governo não deve sua existência apenas à desastrada ação na política dos partidos democráticos, mas a uma concertação – elaborada sem dúvida açodadamente – de setores das elites cujas raízes se vinculam à formula reacionária com que o país veio ao mundo, tal como no caso exemplar das relações entre o secular latifúndio e o moderno agronegócio, uma das peças de sustentação do estado de coisas reinantes.
Tal circunstância, do ponto de vista do
operador político democrático, deve ser levada em conta a fim de reparar na
distância mantida entre as dimensões da política, em que o governo Bolsonaro
mingua com as do social – entendidas aí restritivamente como a malha de
interesses estruturadas a partir das ações das elites econômicas dominantes –
até então confortáveis, em que pesem os desatinos presidenciais, com o terreno
seguro que têm encontrado para a expansão dos seus negócios. Atuar nesse
cenário, no contexto de uma pandemia que imobiliza a sociedade, reclama pela
presença de personagens à altura do desafio de nos reconduzir à plenitude dos
meios democráticos na condução da administração pública, objetivo ao alcance das
mãos se tivermos a sabedoria de alguns dos nossos maiores como Ulisses
Guimarães e Tancredo Neves na articulação de uma ampla coalizão democrática
para a próxima sucessão presidencial, ou antes dela, na melhor das hipóteses.
Faz-se necessário compreender que a
coalizão reacionária no poder, apesar da sua aparência caótica, nasce e
persiste – como se evidencia no comportamento dos senadores governistas na
atual CPI – como um projeto orientado para malbaratar o marco democrático
fixado pala Carta de 1988 com os direitos sociais que consagrou e com seus
procedimentos de controle do poder político. Imprimir um movimento de marcha à
ré nas conquistas acumuladas por parte da sociedade em todas as suas esferas,
das institucionais às culturais e comportamentais, tem sido o leit motiv do
governo que aí está.
Com essa direção enviesada Bolsonaro
arremedou a política retrô em questões internacionais e sobretudo ambientais de
Donald Trump, fragorosamente derrotada nas últimas eleições americanas pela
candidatura de Joe Biden cujo programa defendeu o retorno do seu país ao
cultivo dos seus valores fundacionais. Essa metamorfose da cena internacional,
de óbvio impacto em nosso continente, soma-se às dificuldades internas para que
o “regime” Bolsonaro se reproduza, uma tentativa anacrônica de nos devolver aos
idos do AI-5, especialmente vistas da perspectiva das questões ambientais e
direitos humanos, em maré montante nos EUA e na União Européia, com a força
gravitacional que suas políticas exercem sobre a cena brasileira.
Por dentro e por fora, as pretensões de
continuidade do atual governo se confrontam com o mundo das coisas reais.
Bolsonaro demonstra conhecer as dificuldades à sua frente, e, tal como Trump,
de que é patética caricatura, envereda pelo atalho sinistro da conspiração
contra o processo eleitoral, investindo contra o voto eletrônico, de notória
lisura, atestada por várias investigações especializadas. Ainda como Trump,
Bolsonaro visa melar o processo eleitoral, e, desde agora inicia esse movimento
aliciando a ralé de camadas médias que o acompanha em ridículas passeatas de
motocicletas, quando confessa sem rebuços, como Bonaparte às vésperas do golpe
de 18 Brumário que leva seu nome, que a legalidade é o que nos mata.
Não será sem atropelos que teremos de volta
a democracia livre dessa permanente conspiração que a assedia, para tanto,
contamos com a vacinação massiva da população, agora alavancada pelos debates
suscitados na CPI que esclarecem os motivos obscuros da inação do governo na
obtenção de vacinas e destrancam as vias pelas quais elas podem ser melhor
negociadas, a fim de que afinal, como já acontece em vários países, as ruas se
abram às manifestações populares, que é o que nos falta para nos livrarmos da
tormenta desse pesadelo.
Não é de ciência certa, em política nada é,
mas se conseguirmos a lucidez que nos propicie, por cima dos pequenos apetites
e das idiossincrasias que infestam a nossa política, articular o maior arco de
alianças possível, está ao alcance das mãos trazer de volta a sanidade na
administração pública e uma nova possibilidade para um ajuste necessário com o
que subsiste em nós da herança maldita que recebemos ao vir ao mundo.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
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