Biden
se preocupa em fortalecer a representação sindical e o trabalhador, enquanto
Bolsonaro ignora a lei contra o trabalho escravo
O
ministro da Economia, Paulo Guedes, usa o termo “invisíveis” para identificar
um enorme batalhão de trabalhadores informais brasileiros, que não têm carteira
assinada nem trabalho fixo. São pessoas que diariamente saem de casa para fazer
algum “biscate”, vender água, paçoca e outras guloseimas nas ruas. São os
cidadãos mais prejudicados pela pandemia, porque se obrigam a arriscar a vida
para ganhar algum dinheiro que lhes permita viver.
Entende-se
a boa intenção do ministro, que parece gostar do termo que adotou, pensando em
pessoas desamparadas, mas a palavra é inadequada. Esses homens e mulheres,
muitos menores de idade, são na verdade os trabalhadores mais “visíveis” do
país. Não estão dentro de escritórios com ar condicionado, nem nas fábricas,
nem escondidos do vírus da covid-19 em seus “home offices”. Estão nas ruas, nas
praias, em toda parte.
Talvez o ministro, ao usar o termo, tenha se inspirado nos “intocáveis” da Índia, ou “dálits”, grupo formado por trabalhadores braçais, o mais baixo degrau do sistema de castas do país. Por influência religiosa, são considerados impuros, vivem nas ruas fazendo pequenos trabalhos avulsos e praticamente ninguém repara neles. Por isso, são tidos como invisíveis.
Ao
anunciar e comemorar os dados sobre a contratação de mão de obra formal, que
incluiu no sistema 184 mil trabalhadores em março, o ministro estimou que os
“invisíveis” somam 40 milhões no Brasil. E prometeu lançar um programa de
proteção e incentivo à formalização desses trabalhadores. Já deu até nome ao
programa - Bônus de Inclusão Produtiva (BIP), que não está definido, mas parece
ser dedicado aos “nem-nem”, jovens que não estudam nem trabalham.
A
ideia deve ser elogiada, embora tenha surgido da preocupação eleitoreira do
presidente Jair Bolsonaro, porque esse tipo de medida tem apoio popular. É
difícil, porém, acreditar que Guedes, liberal confesso, tenha a convicção de
que é necessário conduzir a economia brasileira para uma fase em que a
distribuição mais igualitária da renda seja uma prioridade.
Mais
uma vez, o articulista precisa se expor aqui à crítica habitual: nem tudo o que
é bom para os Estados Unidos é bom para Brasil. Mas, ao olhar o que se passa lá
na América, podemos aprender alguma coisa. Passou sem muito destaque no Brasil
uma declaração feita em março pelo presidente dos EUA, Joe Biden, sobre o
sindicalismo. Ele disse: “A América não foi construída por Wall Street. Foi
construída pelas classes trabalhadoras, e as classes trabalhadoras construíram
a classe média. Os sindicatos colocaram poder na mão dos trabalhadores. E eles
nivelaram o jogo. (...) A Lei Geral de Relações com o Trabalho não diz apenas
que os sindicatos podem existir, mas que devemos encorajá-los a existir”.
Biden
está preocupado com o enfraquecimento dos sindicatos nos EUA. Na década de 1950,
cerca de 30% dos trabalhadores eram sindicalizados. Hoje, apenas 10%. Entre
parêntesis, observe-se que essa tendência se dá hoje no Brasil. Quase 1 milhão
de trabalhadores deixaram de ser sindicalizados de 2018 para 2019, último dado
divulgado pelo IBGE. Depois da reforma trabalhista de 2017, que acabou com a
obrigatoriedade do recolhimento do Imposto Sindical, os sindicatos, incluídos
os patronais, perderam 96% de suas receitas. Caíram de R$ 3,6 bilhões em 2017
para R$ 128,3 milhões em 2019.
Voltando
aos EUA, quando Biden diz que a América não foi construída por Wall Street, ele
no fundo está dizendo que a prosperidade americana precisa voltar a ser
compartilhada por toda a população.
Nos
últimos 40 anos, desde o governo neoliberal do republicano Ronald Reagan, todo
o ganho de renda per capita produzido pelo capitalismo americano foi apropriado
por uma parcela equivalente a 1% da população. Ou seja, 99% dos americanos
tiveram sua renda praticamente estagnada nesse longo período.
Biden,
explicitamente, quer mudar essa tendência e vai tentar fazer isso por meio de
taxações dos mais ricos e com investimentos em educação, saúde etc. É difícil
saber se o plano de Biden vai passar no Congresso. Certamente haverá
resistências das alas mais conservadoras, mas ele está propondo, ao mesmo tempo
em que apoia a indústria de baixo carbono, uma tremenda mudança na economia. Se
funcionar, é possível que se encerre um longo período de concentração e comece
outro de distribuição das riquezas geradas no país.
No
Brasil, onde a classe média também não foi construída pela Faria Lima, o
declínio da representação sindical está excluído até das reflexões. O 1º de
maio, Dia do Trabalhador, é tradicionalmente comemorado com grandes
manifestações públicas que já levaram às ruas mais de 1 milhão de pessoas.
Neste ano, por causa da pandemia, as centrais sindicais optaram, corretamente,
por eventos virtuais. E as ruas em uma dezena de capitais foram tomadas
predominantemente por manifestações bolsonaristas que ignoraram a data.
Bolsonaro
preferiu reunir-se, no Dia do Trabalhador, com produtores rurais. E aproveitou
a data para prometer a revisão da emenda constitucional 81, que permite
expropriação de propriedades autuadas por trabalho escravo, uma emenda ainda
nem regulamentada. “Com certeza, não será no nosso governo”, disse.
Nos
eventos virtuais das centrais sindicais, três ex-presidentes da República (FHC,
Lula e Dilma) se manifestaram em discursos corretamente centrados na
necessidade do combate à covid-19. Nem eles, porém, se lembraram do tema
levantado por Biden sobre o lento e gradual esvaziamento das representações
sindicais, o que não é bom para o capitalismo nos EUA, no Brasil ou em qualquer
outro lugar - porque os sindicatos “nivelam o jogo [entre capital e trabalho]”,
na expressão de Biden.
Em todo o mundo, os efeitos globais devastadores da pandemia para as classes menos favorecidas levam a uma inevitável reflexão mais ampla. Para manter certa coesão social e o próprio poder, as classes dominantes terão de ceder parte de suas riquezas, aceitar a implantação de planos nacionais de renda mínima, oferecer programas de saúde pública e restabelecer regulamentações e direitos trabalhistas para “visíveis” e “invisíveis”. Biden já está em ação. Na vizinha Colômbia, em plena pandemia, as ruas já gritam.
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