E
o tal decreto libertador do autocrata Jair Bolsonaro? Onde está? Aquele que já
estaria pronto, mas que o presidente — numa ameaça cansada, covarde até para os
padrões retóricos bolsonaristas — não sabe se usará. Cadê? (Talvez esteja
guardado no mesmo cofre fantástico em que vão depositadas as provas de fraude
contra a eleição de 2018.) Cadê? Aquele decreto por meio do qual o populista
sustaria — sem contestação, como se imperador na República — decretos dos
tiranos governadores-prefeitos, os cerceadores do trabalho, usurpadores do
sagrado direito de ir e vir. Onde?
Quem
sabe esteja na mesma gaveta imaginária em que avança o lockdown no Brasil? O
decreto do amanhã: obra — bravata — de um governante fraco, isolado e acuado,
cujo futuro, no mundo real, depende de Arthur Lira e Valdemar da Costa Neto;
sem os quais não haveria “meu Exército” que acudisse. (O Exército do presidente
forma com Pazuello, Ramos, Braga Netto e Heleno; tudo cobra fumante dentro das
quatro linhas da Constituição.)
No mundo real: enquanto brinca de rolezinho de moto (e promete vídeo com ministros confessando o uso de cloroquina; cadê?), Bolsonaro expande a Codevasf — chegou mesmo ao Amapá — para abrigar toda a mamata que tinha acabado. (Quem dera se ele transpusesse águas assim.)
O
decreto do valente do futuro: obra — bravata — de um governante que, desde sua
condição de líder sectário, precisa, num terreno fantasioso a cada dia mais
comprimido pelo mundo real, dar respostas, a cada vez mais histéricas, aos três
quarteirões que foram às ruas autorizá-lo, pressioná-lo, ao golpe. E então:
blá-blá-blá.
Não
que lhe falte o ímpeto golpista. Não que não teste brechas e embocaduras. E não
que a pregação rompedora não imponha graves lacerações na musculatura
republicana. No mundo real, contudo, sem apoio para ser Hugo Chávez, a ruptura
é a possível, a que pode reelegê-lo em 2022: a de fronteiras, para que os vales
do São Francisco e do Parnaíba se alargassem de modo a contemplar os tratores
do sócio Centrão. No mundo real: sem apoio para ser Chávez, colhe o apoio de
Eduardo Gomes e Wellington Roberto para ser Bolsonaro mesmo.
No
mundo real: sobrepreço para aquisição de maquinário agrícola a partir de um
orçamento secreto. (Afinal, mamata não vista, mamata não é.) No mundo dos
patriotas contra o lockdown imaginário: a projeção de decreto — que tribunal
nenhum contestará — para enquadrar entes destruidores da economia e supressores
de empregos. Assim se equilibra o homem. Golpista, sim. Mas também empreendedor
de sucesso, alguém que ergueu pujante empresa familiar nas bordas gordas do
Estado.
A
turma que foi às ruas bradou o #euautorizopresidente;
e o mito não sabia o que fazer. Ou melhor: sabia que só poderia produzir e
difundir seus caôs. Um balanço delicado, com margens de operação muito
apertadas. A resposta — satisfação e alimento aos seus — foi essa tosquice. A
galera curtiu. O decreto destemido da gaveta quimérica. Contra o establishment
que não o deixa agir (o mesmo que o banca), o próprio manifesto de frustração
do golpista. O decreto prometido ao povo!, demandado pelo povo!; o povo, claro,
segundo a compreensão totalitária de Bolsonaro — o povo sendo aquele que o
apoia-autoriza.
No
mundo real: Ciro Nogueira. No mundo real: o sistema que ora o sustenta sendo o
mesmo que lhe reduz a natureza golpista a essas milongas. E dá-lhe aglomeração,
e cloroquina, e China, e guerra química, e eleição auditável, e decreto quem sabe um dia. O Centrão
autoriza.
No
mundo real: o tratorão;
e o Bolsonaro sabedor de que não pode decretar seu delírio. Sabedor de que os
decretos de governadores e prefeitos, submetidos a constante controle de
constitucionalidade, têm o aval do Supremo. E de que, se decretasse para
derrubá-los, passaria vergonha. Seria desmoralizado. O STF a lhe cassar a
determinação. E então: o decreto pronto — que não sabe se usará.
No
mundo real, pois, para enganar seu mundo da fantasia, o Bolsonaro bravateiro.
Que, inconformado, sabe que não teria — ao contrário do que disse — apoio do
Congresso para suas fanfarronices golpistas. O Brasil não é El Salvador, lá
onde o Parlamento — para júbilo invejoso do bolsonarismo — destituiu a Suprema
Corte. No mundo real: o Brasil é o MDB conforme Fernando Bezerra; o capaz de
embarcar na canoa do Bolsonaro eleito, jamais na do Bolsonaro onipotente.
Tratorão: sim. Tratorando: não.
No
mundo real: seria o presidente investir contra o STF — e o faria caso
decretasse sua bravura de gaveta — para perder a maioria parlamentar defensiva
que cultiva terceirizando orçamento de ministério.
As chances de porvir para Bolsonaro derivam da mesma força que o limita. Os sócios do Centrão compõem curiosa modalidade de proteção à estabilidade institucional, habituados que estão — décadas já de máquina calibrada — a prosperar na democracia. Não estão a fim de mudanças. Mas são tolerantes. E autorizam: o presidente pode ser Ustra no cercadinho, desde que seja Rogério Marinho no Planalto.
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