EDITORIAIS
Vacina permite vislumbrar fim da pandemia
O Globo
A queda na média diária de mortes pela Covid-19 no Brasil trouxe um vislumbre
de que a pandemia poderá ter fim. É verdade que o patamar, acima de 1.500
mortos todo dia, ainda é alto, superior ao do ano passado inteiro, por isso não
justifica relaxamento prematuro nas medidas de restrição à circulação ou no uso
de máscaras. Apesar disso, o avanço da vacinação, que já alcançou mais de 12%
dos brasileiros, permite, sim, termos uma esperança de que o pesadelo deverá um
dia acabar. E autoriza imaginar como será a vida normal depois que o contágio
estiver sob controle.
É importante entender que o Sars-CoV-2 não
desaparecerá, nem deixará de evoluir para novas cepas que poderão eventualmente
driblar as vacinas disponíveis (algo que não ocorreu ainda). Mas ele tenderá a
se tornar um vírus endêmico. Com o alívio na pressão sobre o sistema de saúde,
mesmo que surja alguma variante resistente, os cientistas desenvolverão novas
vacinas, como fazem com doenças sazonais.
É certo que a pandemia ainda está longe de acabar. A característica que marcará o fim será provavelmente uma variante com alta taxa de contágio, mas que, mediante a proteção das vacinas e a ação dos tratamentos disponíveis, resulte em letalidade bem mais baixa. Será o equilíbrio na disputa evolutiva entre o coronavírus e nós, seres humanos. Nos países de vacinação avançada, a tendência já é perceptível. No Reino Unido, onde predomina a variante delta, bem mais contagiosa que as demais, a letalidade para quem pega Covid-19 gira hoje em torno de 0,1% — similar à de uma gripe —, quando já foi de oito a dez vezes isso. Nos Estados Unidos, 99% dos mortos nas últimas semanas não haviam sido vacinados.
A vacina tem permitido que a vida retorne
ao normal nesses lugares. A revista britânica The Economist criou até um
“índice de normalidade” para avaliar quanto as atividades já voltaram ao nível
anterior à pandemia em 50 países. Se, antes do vírus, esse índice era 100, ele
caiu ao mínimo de 35 no primeiro semestre de 2020. Hoje está em 66 na média
global, acima de 90 em países como Hong Kong e Nova Zelândia e perto de 60 no
Brasil. Na maioria dos países, há uma relação estatística entre o retorno das
atividades ao normal e a evolução da vacinação neste ano.
É uma situação que põe ainda mais em
evidência o custo das políticas desastrosas adotadas pelo Brasil no combate à
pandemia. Tivéssemos um governo minimamente competente para coordenar uma
estratégia nacional de vacinação, testagem, rastreamento e financiamento para
garantir o distanciamento social, certamente a história seria outra.
Provavelmente estaríamos chorando algo como 107 mil mortos, em vez de 520 mil
(concentramos 13,2% das mortes com 2,7% da população global). E poderíamos
talvez já ter retomado atividades de modo mais seguro, não com a
irresponsabilidade que tem marcado a relação do brasileiro com a pandemia mais
letal em pelo menos um século.
É provável que, até o final deste ano, o
avanço da vacinação traga para o Brasil a normalidade que já toma conta das
ruas noutros países. Será um alívio poder voltar a respirar com um pouco mais
de liberdade, voltar a conviver de perto com entes queridos, viajar, ir ao
cinema, teatros e restaurantes sem medo. Mas a dor das perdas não se dissipará
tão cedo. A vida recobrará a aparência de normalidade, mas jamais será a mesma.
‘Superpedido’ de impeachment não terá
efeito almejado pelos autores
O Globo
É compreensível a percepção de que Jair Bolsonaro não deveria ocupar a
Presidência da República. Sua incompetência fica patente em todas as áreas para
onde se olhe no governo — do meio ambiente à educação, das relações exteriores
à segurança pública, da timidez nas reformas econômicas à exuberância dos
arroubos antidemocráticos, da intimidação dos opositores ao flerte com a
ruptura institucional. Para não falar no desdém, na inépcia e na
irresponsabilidade com que, desde o início, trata a pandemia que já matou mais
de 520 mil brasileiros.
Tudo isso levou até o momento a nada menos
que 123 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. O último deles, apresentado
nesta semana, foi alcunhado de “superpedido”. Com 46 signatários— entre líderes
de partidos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e
bolsonaristas arrependidos —, elenca em 271 páginas acusações de sete naturezas
contra o presidente, que os autores consideram configurar “crimes de
responsabilidade”.
O essencial a entender, como já ensinava o
jurista Paulo Brossard, é que o impeachment é uma instituição de natureza
dupla: metade jurídica, metade política. Brossard considerava, por isso,
infeliz a expressão “crime de responsabilidade”, usada na Constituição para
definir os casos em que um presidente poderia ser retirado do cargo. Segundo
ele, a palavra “crime” transmite uma impressão enganosa, pois parece definir
uma violação à lei. Brossard preferia usar o termo “infração política”. O
objetivo do impeachment, dizia, nunca foi punir criminosos (isso cabe à
Justiça), mas sim proteger o Estado.
Não deve haver impeachment, portanto,
quando não houver consenso político para condenar o acusado. As barreiras a
superar precisam ser altas (dois terços dos votos nas duas casas legislativas),
justamente para que não haja abuso. Impeachment de presidente da República
precisa, necessariamente, ser evento excepcional.
No caso específico de Bolsonaro, primeiro
um pedido teria de ser aceito pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
que já declarou reiteradas vezes julgar inoportuno um processo dessa
envergadura (como fazia seu antecessor, Rodrigo Maia). Em seguida, teria de
passar por uma Comissão Especial, em que bolsonaristas certamente teriam voz.
Finalmente, teria de ser aprovado num plenário em que Bolsonaro ainda tem apoio
para vetá-lo (bastam 172 votos).
A verdade, independentemente da gravidade
das acusações ou do que um tribunal criminal teria a dizer sobre elas, é que
são ínfimas — para não dizer nulas — as condições políticas para que qualquer
processo de impeachment prospere no Congresso. O efeito do “superpedido” deverá
ser outro.
As últimas denúncias já tornaram Bolsonaro mais dependente, para sua sobrevivência política, dos aliados do Centrão. Com o “superpedido”, a oposição e os signatários tratam de reforçar essa dependência. Entregam nas mãos de Lira e do Centrão uma mercadoria que decerto saberão valorizar em suas barganhas políticas com o governo.
Delibere, Arthur Lira
Folha de S. Paulo
Pedido que reúne razões para impeachment
não deveria ficar sem resposta rápida
Se a regra no Estado democrático de Direito
é evitar concentração demasiada de poder em funções singulares, algo não corre
bem quando a responsabilização do chefe de Estado, nos crimes punidos com
cassação do mandato, depende absolutamente do arbítrio do presidente da Câmara
dos Deputados.
A solução para o futuro, como
já defendeu esta Folha,
é o estabelecimento de prazo legal para que o deputado incumbido de presidir a
Casa delibere sobre os pedidos de impeachment, seja para negar a instalação do
procedimento, seja para aprová-la. Qualquer decisão estaria sujeita a ser
revertida por maioria absoluta do plenário.
No curto prazo, o que resta é instar Arthur
Lira (PP-AL) a deixar de lado o cinismo e dar satisfação à sociedade sobre
gravíssimas acusações contra o presidente Jair Bolsonaro dormentes em seu
gabinete.
Essa pilha com mais de uma centena de
petições não respondidas cresceu nesta quarta-feira (30) com a apresentação de
uma extensa
peça condensando diversas acusações de crime de responsabilidade.
A iniciativa, que reuniu políticos de
esquerda, centro e direita, lista uma impressionante quantidade de ofensas, por
parte de Bolsonaro, à Constituição e à Lei 1.079, de 1950, que regula o
impeachment.
A negligência com o direito à saúde da
população, a participação em atos antidemocráticos, a incitação ao
descumprimento de leis, as interferências abusivas em instituições de Estado,
as invectivas contra o Supremo Tribunal Federal, o levantamento de suspeitas
infundadas de fraude eleitoral e os múltiplos atentados ao decoro exigido para
o exercício do cargo configuram razões jurídicas abundantes para iniciar o
processo de responsabilização presidencial.
Ao deputado Arthur Lira, na condição de
presidente da Câmara, assiste o direito de discordar dessa interpretação, como
parece ser o caso. O que destoa da solenidade esperada de um chefe de Poder é o
modo informal e hipócrita com que vem tratando esse tema.
No dia em que foi protocolada a nova
petição contra Bolsonaro, Lira ironizou a CPI da pandemia, no Senado, instância
que diverge da complacência do deputado alagoano e do procurador-geral da
República e cumpre o papel de buscar a responsabilização de agentes públicos
pelo descalabro sanitário.
O presidente da Câmara também reclamou mais
materialidade nos pedidos de impeachment —talvez espere uma confissão pública
de culpa do chefe do governo.
Que Lira coloque seus argumentos em papel
oficial, como é sua obrigação, e dê-se ao trabalho de refutar as imputações
contra Bolsonaro. A procrastinação interesseira não serve ao país, só a quem
mercadeja apoio a presidente fraco.
Feitos da vacina
Folha de S. Paulo
Apesar da sabotagem presidencial, impacto
da imunização já chega a sexagenários
Chegou
a vez dos sexagenários. Depois de o Brasil ter assistido a uma forte redução
nas internações e mortes por Covid-19 de profissionais de saúde, nonagenários,
octogenários e septuagenários, começamos a ver a diminuição da morbimortalidade
na população com mais de 60 anos e menos de 70.
A responsável pelo feito é a vacina —ou, mais
precisamente, as vacinas, já que utilizavam-se três delas no país no período em
que os sexagenários foram maciçamente imunizados: Coronavac, Oxford/AstraZeneca
e Pfizer/BioNTech.
Todas elas funcionam e, em conjunto,
conseguiram fazer com que esse grupo etário, que representava 23% dos
hospitalizados e 29% dos mortos em meados de abril, passassem respectivamente a
11% e 16% nas primeiras semanas de junho. Em números absolutos, na última
semana de março morreram 5.737 pacientes de Covid-19 na casa dos 60 e apenas
865 na segunda semana de junho.
É possível avançar ainda mais, ampliando a
cobertura vacinal e fazendo a busca ativa daqueles que perderam a segunda dose.
Incorre apenas em leve exagero retórico
quem qualifica vacinas como um milagre. No caso da Covid-19, aliás, um duplo
milagre, dado que elas funcionaram surpreendentemente bem para uma primeira
geração de imunizantes e foram desenvolvidas no estonteante prazo de menos de
um ano desde a decretação da pandemia.
Muito se louvam os avanços da medicina, com
drogas e terapias cada vez mais eficientes. As loas sem dúvida são merecidas,
mas cabe apontar que quase todo o avanço que a humanidade experimentou no
último século e meio em termos de expectativa de vida se deve a dois conjuntos
de intervenções: saneamento básico e vacinas.
Assim se reduziram dramaticamente as taxas
de mortalidade infantil, elevando a esperança de vida ao nascer. A média
mundial desse indicador saltou de 31 anos em 1900 para 72,6 anos em 2019.
Diante desse histórico de realizações, menosprezar
vacinas constitui um ato de insanidade; já atacá-las, como frequentemente faz o
presidente Jair Bolsonaro, é uma irresponsabilidade mortal.
Se se confirmarem suspeitas de que o Ministério da Saúde atrasou deliberadamente a aquisição de alguns imunizantes para favorecer esquemas viciados, entretanto, estamos diante de um dos crimes mais repulsivos que governantes e autoridades podem cometer.
A lei e a família
O Estado de S. Paulo
O Estado deve investigar com isenção todos
os fatos suspeitos. Não existe imunidade ou impunidade por parentesco, sejam
quais forem os envolvidos.
OEstado Democrático de Direito exige a
investigação de fatos suspeitos e indícios de crime. Ninguém está acima da lei.
Para isso, é fundamental que as instituições possam, dentro de suas respectivas
competências, funcionar de forma independente. O governo Bolsonaro atua em
sentido contrário à elucidação dos fatos, seja negando qualquer possibilidade
de corrupção no governo federal – daí que toda investigação seria por princípio
desnecessária –, seja tentando que as instituições operem dentro de uma lógica
de lealdade pessoal. O critério já não seria apenas a lei, mas principalmente
as relações pessoais.
Tal modo de agir do governo Bolsonaro não é
nenhum segredo. Ao explicar no ano passado a escolha que havia feito para o
Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Bolsonaro foi explícito: “Kassio
Nunes já tomou muita tubaína comigo. (...) A questão de amizade é importante, né?”.
Diante desse exercício do poder
despudoradamente antirrepublicano, são especialmente relevantes duas recentes
decisões do Supremo, determinando o prosseguimento de investigações que
envolvem o presidente Jair Bolsonaro e três de seus filhos.
No dia 28 de junho, os senadores Randolfe
Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (RedeES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO)
enviaram ao STF notícia-crime pedindo a abertura de inquérito para investigar
se o presidente Bolsonaro cometeu crime de prevaricação no caso da negociação
da vacina indiana Covaxin. De forma um tanto esquisita, tendo em vista a
gravidade dos fatos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não tomou nenhuma
providência. Disse que era preciso esperar o término da CPI da Pandemia.
Diante dessa passividade – muito
conveniente, por sinal, aos interesses do Palácio do Planalto –, a ministra
Rosa Weber foi contundente. “No desenho das atribuições do Ministério Público,
não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República. Até
porque a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito não inviabiliza a
apuração simultânea dos mesmos fatos por outros atores investidos de
concorrentes atribuições, dentre os quais as autoridades do sistema de justiça
criminal.”
Na decisão, a ministra Rosa Weber
determinou a reabertura de vista dos autos à PGR. Então, só então, o
vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu a
abertura de inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro a respeito da acusação
de prevaricação. Vê-se como é importante insistir na defesa do Direito.
O segundo caso em que o Supremo precisou
contornar o desinteresse da PGR em contrariar Jair Bolsonaro refere-se à
investigação dos atos antidemocráticos. Apesar de a Polícia Federal ter
encontrado indícios de crime, a PGR pediu o arquivamento do Inquérito (INQ)
4.828, que apurava a realização e o patrocínio desses atos.
Em deferência às atribuições do Ministério
Público, o ministro Alexandre de Moraes acolheu o pedido da PGR, arquivando o
INQ 4.828. No entanto, na mesma decisão, o ministro determinou a abertura de um
novo inquérito com o objetivo de investigar grupos que atacam a democracia.
“A análise dos fortes indícios e
significativas provas apresentadas pela investigação realizada pela Polícia
Federal aponta a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte
atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político
absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inquérito 4.781, com a
nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito”,
escreveu Alexandre de Moraes.
Na decisão, os três filhos mais velhos do
presidente – Flávio, Carlos e Eduardo – são mencionados na condição de
arrolados pela Polícia Federal como possíveis integrantes de organização
criminosa destinada a atacar a democracia.
O Estado deve ser capaz de investigar com isenção todos os fatos suspeitos, sejam quais forem os envolvidos. Não existe imunidade ou impunidade por parentesco. Numa República, todo cidadão é responsável perante a lei pelos seus atos, sem discriminações nem privilégios.
Brasil, vendedor de commodities
O Estado de S. Paulo
Alta tecnologia é pouco presente nas exportações do setor industrial
Os dólares necessários à segurança externa
da economia brasileira continuam garantidos pelo agronegócio, pela mineração e
por outros segmentos produtores de commodities – matérias-primas e mercadorias
de baixa elaboração. Graças a esses exportadores, o País acumulou superávit
comercial de US$ 37,50 bilhões no primeiro semestre, com saldo recorde de US$
10,37 bilhões em junho. Bons preços externos, sustentados pela recuperação
internacional, especialmente do mercado chinês, principal cliente do Brasil, têm
favorecido as exportações nacionais.
A indústria de transformação responde por
metade ou pouco mais das vendas externas brasileiras, segundo a classificação
oficial. O resto se divide entre agropecuária e indústria extrativa, isto é,
atividade mineradora. Essa classificação obscurece o peso das commodities na
geração da receita comercial e do superávit mantido regularmente há muitos
anos. De janeiro a junho a agropecuária faturou US$ 32,28 bilhões com as vendas
ao exterior. A indústria extrativa obteve US$ 38,123 bilhões. A indústria de
transformação chegou a US$ 65,66 bilhões, 48% de toda a receita comercial. Mas
é preciso olhar alguns detalhes para ter visão mais precisa dos ganhos
conseguidos com as vendas externas.
Nove dos dez principais grupos de produtos
exportados pela indústria de transformação, no primeiro semestre, foram
commodities, como açúcares e melaços, farelos de soja e outros alimentos para
animais, carne bovina fresca, refrigerada ou congelada e óleos combustíveis de
petróleo. Esses nove grupos proporcionaram receita de US$ 29,13 bilhões, valor
correspondente a 39,80% do total faturado com as vendas da indústria de
transformação. Um exame mais detalhado indicaria uma participação maior.
Em junho, nove produtos do agronegócio
renderam US$ 4,36 bilhões de receita comercial. O faturamento obtido com seis
outros tipos de commodities, como produtos semiacabados de ferro, cal, cimento
e alumina, chegou a US$ 2,12 bilhões. Somados os dois grupos, a receita
contabilizada com essas commodities atingiu US$ 6,48 bilhões, 58% dos US$ 12,70
bilhões conseguidos com as vendas da indústria de transformação.
Essa indústria exportou, é claro, produtos
muito mais elaborados e mais complexos, como aeronaves e equipamentos (US$
304,90 milhões), automóveis (US$ 278,55 milhões), instalações e equipamentos de
engenharia civil (US$ 211,84 milhões), geradores elétricos e componentes (US$
130,14 milhões) e muitos outros, como máquinas, aparelhos elétricos, veículos rodoviários,
calçados, tecidos e vestuário. Mas o peso das commodities nas exportações da
indústria de transformação é indisfarçável. É ótimo ser competitivo em
commodities, mas é preciso ambicionar mais que isso.
A indústria de média e alta tecnologia tem,
portanto, participação restrita nas exportações, apesar da presença relevante
dos segmentos aeronáutico, automobilístico e de equipamentos mecânicos e
elétricos. Além disso, parte importante das vendas industriais está concentrada
no mercado sul-americano. A maior parte das exportações do setor
automobilístico depende do Mercosul, especialmente da Argentina.
O baixo dinamismo dos segmentos de
tecnologia média e alta – sempre com as exceções mais evidentes – tem sido
apontado por entidades do próprio setor industrial, como a Confederação
Nacional da Indústria (CNI). O alto custo Brasil e a pobreza das políticas de
desenvolvimento tecnológico e de estímulo à inovação têm sido incluídos com
destaque entre as explicações. Não se pode ignorar, nessa discussão, a
importância da baixa integração global da economia brasileira. O protecionismo
é parte do problema, certamente, mas uma política eficaz tenderia a combinar a
abertura comercial com maior participação em acordos internacionais e programas
de aumento de competitividade.
Pouco se fez para estimular a modernização, a inovação e a competitividade nos últimos 20 anos. Essa falha se agravou a partir de 2019, quando até a noção de planejamento sumiu da pauta governamental.
Valores sustentáveis
O Estado de S. Paulo
Com o engajamento das novas gerações, práticas sustentáveis estão se tornando irreversíveis
Este ano é crucial para a sustentabilidade
global. No Brasil, há um complicador: o governo.
Há muitas razões pelas quais o ano de 2021
é considerado crucial para a sustentabilidade global, a começar pelo choque
econômico e social da pandemia. A presidência de Joe Biden nos EUA também
impulsionará uma agenda mais progressista, e há uma pressão difusa para que a
conferência sobre o clima da ONU, a COP-26, avance em pautas que ficaram
indefinidas nos últimos anos, como a regulação do mercado de carbono.
No Brasil há um complicador: a hostilidade
do governo a causas ligadas à sustentabilidade, como a defesa do meio ambiente
ou das minorias. Isso coloca ainda mais em pauta a atuação do setor privado.
Felizmente, as condições globais são favoráveis, tanto no ecossistema do
investimento como no do consumo. Essas condições ficaram evidentes no Summit
ESG, promovido pelo Estado.
Uma pesquisa do UBS BB Global Banking com
mais de 5 mil investidores mostrou que 70% gostariam que seus investimentos
fossem alinhados a valores sustentáveis. Segundo o Barômetro de Confiança
Edelman, 97% dos consumidores esperam marcas engajadas na solução de problemas
sociais. No Brasil, as questões mais apontadas foram a pobreza (58%); o
bem-estar (53%); segurança (52%); questões trabalhistas (52%); mudança
climática (51%); e racismo estrutural (51%).
O movimento é irreversível, ainda mais
quando se considera o engajamento das novas gerações. Mas há desafios a serem
vencidos. Um deles é a regulação das “finanças verdes”. Para os especialistas
ouvidos no Summit, o Brasil precisa avançar muito na criação de incentivos à
cadeia sustentável. Em contrapartida, não se pode correr o risco de adotar
padrões que sufoquem as empresas com exigências descabidas, prejudicando sua
competitividade.
Outro problema é o chamado greenwashing – o
emprego de uma retórica sustentável para efeitos de marketing que não
corresponde às reais práticas das empresas. Não faltam boas métricas globais de
sustentabilidade. Os especialistas, contudo, também apontam a carência no
Brasil de bons sistemas de informações e critérios de adaptação à realidade
local.
Mas, além destas externalidades, há
desafios intrínsecos à teoria e à prática do ESG. Idealmente e a longo prazo, é
fácil vislumbrar que os interesses ambientais e sociais convergem – não pode
haver prosperidade em um planeta ambientalmente degradado. Mas, na prática e a
curto prazo, pode haver conflitos e a necessidade de transacionar perdas e
ganhos.
Assim como grandes programas de
infraestrutura, por exemplo, podem gerar crescimento e empregos, mas com danos
ambientais, exigências ambientais excessivas sobre o setor energético ou
agrícola podem encarecer demais os preços básicos, onerando os mais pobres e
agravando desigualdades.
Analogamente, do ponto de vista ideal, os
interesses dos acionistas (“shareholders”) podem e devem ser harmonizados aos
dos chamados “stakeholders” (as “partes interessadas”, como empregados,
fornecedores, consumidores ou comunidades locais). Mas, de novo, a curto prazo
as empresas podem ser obrigadas a fazer escolhas em prejuízo da sua
lucratividade. Negar esses possíveis conflitos é contraproducente para a causa
ESG. Reconhecê-los implica estabelecer estratégias de curto, médio e longo
prazos.
Do ponto de vista dos investidores, por exemplo, nem sempre o boicote ou o desinvestimento é a melhor opção. Eles podem também usar seu voto em conselhos e assembleias para orientar o comportamento das empresas rumo a compromissos sustentáveis de longo prazo – mas assumindo que isso pode significar menos lucros no curto prazo. Do ponto de vista da sociedade civil e seus ativistas, é preciso calibrar as exigências feitas às empresas com a clareza de que as melhores ferramentas para garantir a defesa do meio ambiente e o progresso econômico são a ação democrática e o Estado de Direito, que permitem, entre outras coisas, estabelecer redes de proteção social, regras de transparência ou taxas de emissão de carbono. A responsabilidade das empresas e o dever do Estado não são excludentes, ao contrário. Mas é importante ter claro quais são as respectivas prioridades.
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