domingo, 4 de julho de 2021

Merval Pereira - Nossos dilemas democráticos

O Globo

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem se mostrado uma barreira firme contra as tentativas de grupos radicais , estimulados pela postura do presidente da República, de ir contra a democracia, mas está desmontando toda a estrutura jurídica de combate à corrupção.

Uma posição vai de encontro à outra, pois não teremos uma democracia enquanto a corrupção for considerada um delito menor, especialmente a corrupção política, que se transformou do dia para a noite em mero crime eleitoral.

A respeito do pedido da Procuradoria Geral da República de abertura de investigação contra Bolsonaro por prevaricação, o Palácio do Planalto soltou uma nota de um cinismo absoluto, na qual diz que o Executivo não se pronuncia sobre outros poderes. Bolsonaro deve se sentir um simples blogueiro, e não um presidente, porque, pela boca dele, a Presidência fala todos os dias.

Afronta as instituições, chama de bandidos os senadores opositores da CPI da COVID, fala mal do STF, ameaça com uma “comoção social” se não houver voto impresso, e o mínimo que diz é que não passará a faixa presidencial se for “derrotado por fraude”.  Ainda bem que o STF está impondo as regras da lei, porque se deixar Bolsonaro sem controle, ele vai avançando.

O presidente não tem capacidade de entender o que é, ou não gosta da democracia, acha que o sistema de pesos e contrapesos é prejudicial ao seu governo, à sua falsa pretensão de salvar o Brasil da corrupção. Mas o fato é que o governo está cheio dela, e os valores morais agora começam a ser questionados pelos próprios bolsonaristas.

Um blogueiro aliado dispara fogo amigo ao divulgar que supostamente a ministra Damares teve um caso com um homem casado, fazendo com que o pastor Malafaia, um dos “conselheiros” de Bolsonaro, já queira que ela deixe o governo, caso se confirme a “infidelidade”. Quanta hipocrisia.

O pedido da PGR de abertura de inquérito contra o presidente só aconteceu porque não havia alternativa, e depois de muita pressão por uma decisão da ministra Rosa Weber. Assim como a investigação aberta pelo ministro Alexandre de Moraes contra bolsonaristas por organização criminosa é uma resposta à PGR, que, agindo claramente em defesa de Bolsonaro, pediu o arquivamento do inquérito sobre os atos antidemocráticos, tentando barrar as investigações que atingem o presidente e seus aliados.

O STF está dando a resposta devida. É um bom sinal de que a instituição democrática fundamental está agindo. O voto impresso está encontrando resistência dentro do Congresso graças ao trabalho do ministro Luiz Roberto Barroso, presidente do TSE, que encontrou apoio em Alexandre de Moraes, Luiz Fux, presidente do STF e Gilmar Mendes. Já os componentes da Segunda Turma continuam no trabalho de demolição do arcabouço jurídico que permitiu o maior combate à corrupção já ocorrido no país.

Considerar “suspeito” o ex-juiz Sergio Moro, ação comandada por Gilmar Mendes, acabou tornando-se a chave para liberar praticamente todos os acusados durante a Operação Lava-Jato. O ministro Ricardo Lewandowski, ao proibir o uso da delação da Odebrecht contra Lula, no caso do Instituto que leva seu nome, ampliou o escopo da decisão, assim como Gilmar Mendes já fizera ao estendê-la liminarmente contra todos os processos contra o ex-presidente, anulando-os.
Lewandowski entendeu que, ao considerar Moro incompetente para julgar Lula em Curitiba, considerou “implicitamente” a incompetência dos integrantes da força-tarefa responsáveis pelas investigações e apresentação da denúncia. Já a Segunda Turma anulou a condenação do ex-governador de Minas Eduardo Azeredo, que passou a ser apenas um “crime eleitoral”.

Os bilhões devolvidos, roubados à Petrobras e outras estatais, as delações premiadas, as investigações, tudo está indo por água abaixo na interpretação dos ministros da Segunda Turma. Nesse ritmo, logo, logo, o Supremo terá acabado com a corrupção no Brasil na base da canetada. E seremos felizes para sempre.

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