O Globo
A decisão estava tomada: mudar de assunto
ao menos neste domingo de inverno, para não agravar ainda mais nosso estoque de
dores e perdas, raiva e desalento. Embalado pelo poema “Um pouco sobre a alma”,
da maravilhosa Wislawa Szymborska, o artigo de hoje tinha a intenção de trazer
leveza. Até porque os versos da Nobel de Literatura, recebidos de véspera de um
amigo querido, haviam me trazido acalento. Foi fácil levantar voo e planar por
algum tempo com o poema que começa assim: “Às vezes temos uma alma./ Ninguém a
tem o tempo todo/ e para sempre. /Dia após dia, /ano após ano/ podem se passar
sem ela. / Às vezes ela só se aninha / por mais tempo/ nos enlevos e medos da
infância. / Às vezes só no espanto de estarmos velhos…”.
Duro foi despencar do universo rarefeito da
poesia, essencial à expressão humana, e voltar a pousar no cotidiano local que
a cada dia se apresenta mais desumano — por doentio e doente. O Brasil está
doente de Covid-19, cuja origem a ciência ainda não desvendou 100%, mas cuja
feroz mortandade, em solo pátrio, já tem responsabilidade e origem escancaradas
— o governo Jair Bolsonaro. Como doenças, mesmo as mais perversas, se curam ou
são combatidas pela ciência, algum dia os sobreviventes do horror atual haverão
de respirar melhor e sem medo, com o resto do mundo.
Já a violência nacional não é doença. É, sim, doentia, cria da própria sociedade e não curável pela ciência. Continuará a ser estrutural até que gerações futuras queiram mudar a história do país.
A semana começou em cavalgada. O desfecho
da caçada ao assassino em série Lázaro Barbosa, com toques de “Götterdämmerung”
tupiniquim, foi o retrato da ostentação policial do Brasil atual. Ao faroeste
cinematográfico somou-se até mesmo uma deputada federal de 72 anos, Magda
Mofatto (PL-GO), que apareceu nas redes sociais a bordo de um helicóptero, como
se rumasse à caça ao bandido. Tinha um fuzil de uso militar em punho e
envergava uniforme de campanha. O simulacro fez sucesso.
Para os moradores de Goiás e do Distrito
Federal, onde o assassino múltiplo disseminara mortes e pânico ao longo de 20
dias, poder aplaudir a ação policial e festejar o fim do medo foi mais do que
compreensível. Já a celebração de vitória por parte do presidente da República,
via Twitter e em maiúsculas —“LÁZARO: CPF CANCELADO” —, ilustra a necropolítica
miliciana do chefe da nação. Segundo registro da Secretaria de Segurança
Pública do Estado de Goiás, Lázaro foi alvejado por 115 disparos: 58 com
pistola Sig Sauer, 32 com pistola Taurus, 25 com fuzil Bushmaster.
Lázaro era um criminoso de alta periculosidade,
talvez até psicótico. Era dever do Estado capturá-lo a todo custo. De
preferência vivo, para melhor explorar suas eventuais conexões e rastros. Mas
ainda não foi desta vez. Sempre foi e continua a ser raríssima no Brasil a
captura com vida de bandidos com a cabeça a prêmio — seja porque morto não
fala, seja porque matar é mais fácil, e rajadas são mais midiáticas. O método
acabou se tornando prática corrente também no abate de pés de chinelo do crime,
ou meros “suspeitos”, ou ainda infelizes moradores pretos, pardos e/ou pobres
no caminho de operações policiais.
Nos últimos tempos, instituições criadas
para proteger o cidadão de ameaças externas (Forças Armadas) e internas
(Polícias Militares) têm dado sinais de desvio de função mais acentuado. À medida
que Bolsonaro se dedica a seduzir o baixo clero do Exército, este pode vir a
sentir algum compadrio com policiais militares. E, à medida que as PMs
estaduais se sabem apoiadas pelo capitão de Brasília, mais elas podem vir a se
aproximar de práticas milicianas. Quanto aos milicianos de raiz, estes já vivem
no país que gostam de chamar de seu. E servem de modelo oculto a “cidadãos de
bem” armados, apreciadores da violência.
A semana iniciada com o esperado desfecho
para o matador em Goiás se encerra numa calçada de São Paulo com o exercício
casual do pequeno poder policial. Na quinta-feira, um rapaz e outras dez
pessoas esquentavam mãos e corpo em torno de uma fogueira no estacionamento de
um varejão da capital. O frio já havia feito 12 mortos por hipotermia no
estado, segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua. Chega uma
viatura de polícia, o grupo se dispersa, mas o rapaz de 18 anos não conseguiu
escapulir. Foi agredido a pauladas de ripas de madeira e socos pelos PMs, e sua
bicicleta foi jogada em cima da fogueira. A cena foi registrada em celular, e a
vítima apresentou queixa na delegacia.
Já, já o Brasil completará 200 anos.
Quantos invernos mais de violência doentia?
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