O Globo / O Estado de S. Paulo
Maior falha de Bolsonaro na compra de
vacinas é dar sensação à opinião pública de que não avaliou corretamente o tipo
de problema que havia, que era grave
Tentei escapar, mas é quase inevitável
falar sobre a CPI e os fatos que levam a ela. Não gosto de personalizar e menos
ainda, por motivos óbvios, quando se trata do presidente. Tratarei de não o
fazer, embora seja difícil.
O caso parecia banal: uma tentativa de
gastar dinheiro público, sem critério. Mas não era. Não só porque há certa
irritação no país com relação ao desvio de finalidades no uso do dinheiro dos
contribuintes, mas porque, no caso, trata-se de um governo que se jacta de ser
cuidadoso nessa matéria (obrigação de qualquer presidente que se preze). E
também porque os fatos em tela se dão no âmbito de uma pasta, a da Saúde,
diretamente ligada à luta contra a pandemia, a qual torna a vida de cada um de
nós arriscada. Portanto, o olhar da opinião pública fica ainda mais atento para
tudo o que se passa em seu âmbito e no dos setores do governo a ele ligados.
Não quero dizer que se deva generalizar o
que aconteceu, nem deixar de reconhecer o efeito, louvável, de o governo
prestar atenção ao que ocorre com os fundos públicos. Não deveria agora desviar
o olhar. E não se trata só do presidente, mas do conjunto da administração: o
chefe dela paga o preço de erros dos quais sequer toma conhecimento. Quem está
na chuva, se molha, como eu me molhei, mesmo não sendo responsável direto por
alguns erros...
Por isso mesmo, pasma ver quanta incompetência e descaso na administração de coisas tão importantes como o que ocorre com recursos do Ministério da Saúde. Pior, chega a assustar o pouco caso inicial da autoridade máxima com os eventos que ocorreram naquela pasta. A alegação de desconhecimento pode até ser verdadeira (recordo-me do caso do apagão, quando eu, entusiasmado com a construção de novas hidroelétricas, não me dei conta de outros problemas de distribuição de energia que já atormentavam o povo e terminaram por “balançar o coreto”).
Sei, por ter ocupado as funções que ocupei,
que o responsável maior não pode saber o que se passa em cada setor da
administração, nem a ele se pode atribuir “culpa” por desvio de recursos que
não maneja diretamente. Mas, uma vez sabidos os casos, há que mostrar irritação
e há que jogar ao mar os “culpados”, pois é forte a reação que eles provocam em
quem deles não participou e é sua vítima: o eleitorado. Foi nisso,
principalmente que falhou o presidente. Deu sensação à opinião pública de que
não avaliou corretamente o tipo de falha que havia, que era grave.
Fica-se sempre com a sensação: se ocorrem
desvios na Saúde, por que não em outros casos? E é por aí que os governos podem
se perder. A memória coletiva forma-se assim nessa matéria. O povo já pensa, em
geral, que los de arriba de outra coisa não cuidam que de seus
interesses pessoais ou no de seus familiares e amigos. E logo agora quando
temos um governo no qual os filhos, embora alguns eleitos, têm tanta presença.
O fato só parece confirmar a crença antecipada do povo.
Não há, portanto, como considerar mero
equívoco a pouca atenção inicial dada pelos altos círculos políticos aos
acontecimentos. A mídia estará sempre pronta — é seu dever — para fazê-los
recordar, seja insistindo em matéria já sabida, seja indicando caminhos que
podem levar a outros tropeços.
Não torço por impeachments, nem por novos
desvios de dinheiro público, mesmo que nos levem a isso. Já votei por um
impeachment e acompanhei outro, quando já não era mais senador. O custo para a
memória democrática é sempre elevado. Mas... o que fazer? Se o próprio
presidente não cuidar de inibir os atos capazes de favorecerem a ação do
Congresso nesse sentido, ela acaba ocorrendo. Ainda há tempo para consertar o
rumo. Mas, com a proximidade das eleições, o jogo político voltará a
pressionar. Não adianta jogar a culpa na mídia ou “nos políticos”: trata-se de
um sinal de alerta a ser devidamente compreendido pelos que exercem o poder. E
o poder é cruel. Principalmente quando alguém é dele retirado pelo voto dos
congressistas e não pelo voto do povo.
Por tudo isso, presidente, atue enquanto há tempo. Um pouco mais que ele transcorra e já será tarde. Quando acontecer o inevitável, se não houver reação prática de sua parte, de pouco adiantarão os queixumes. Ação já, é o que o país espera. Quem elege o presidente é o povo. Este, às vezes erra. Paciência. É melhor aguentar o quanto possível do que tentar usar o bisturi do Congresso para “acelerar” a história. Não digo isso “da boca para fora”. Resisti quanto pude a impeachments de presidentes; até que... chega a hora. Estamos longe dela e espero que não ocorra. Mas, reafirmo: abra os olhos presidente. Querendo ou não, se for tarde, as lágrimas podem não ser de crocodilo, mas não serão suficientes para evitar o que por ora parece ser longínquo.
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