domingo, 4 de julho de 2021

Míriam Leitão - Clarice conversa com a História

O Globo

Um grito cortou a ordem dada por agentes de segurança do Exército, presentes à cerimônia fúnebre. “Não! Não enterrem.” Era a voz de Clarice exigindo que os militares, que queriam se livrar do corpo de Vladimir Herzog, esperassem a chegada da mãe do jornalista, Zora. Eles obedeceram. O tom era imperioso. E era 1975. Zuenir Ventura me contou sobre outro momento em que a voz dela se levantou: “Foi quem disse primeiro ‘mataram o Vlado’”. E ela seguiu dizendo isso. Em 2017, a voz de Clarice foi ouvida na Corte Interamericana de Justiça, quando o advogado Alberto Toron defendia, em nome do governo Temer, que o caso Herzog já tinha sido julgado e prescrito. “Não é nada disso”, disse alto Clarice.

No dia primeiro de julho, Clarice Herzog fez 80 anos. Ela nunca desistiu da verdade no país que decidiu não encarar a realidade do que houve na ditadura. Clarice nos leva, inevitavelmente, à reflexão sobre a História do Brasil, na qual a verdade tem sempre que ser resgatada das falsificações. São quase 46 anos desde o martírio do Vlado. O Brasil é hoje governado por Jair Bolsonaro, que defende a ditadura e glorifica torturadores. Tem sido áspero o caminho de Clarice, mas ela marcou a História.

A frase “Mataram o Vlado” foi dita por ela, pela primeira vez, antes que lhe contassem que ele havia morrido. Ela viu os diretores da TV Cultura, onde ele era diretor de jornalismo, chegando à noite em sua casa e intuiu a tragédia. Foi ela que comunicou à família, aos amigos, à História do Brasil que ele havia sido assassinado no II Exército. Era a voz de uma mulher contra o regime de força que impunha a mentira do suicídio.

Clarice cuidou de tudo naqueles dias terríveis. Decidiu que seria uma cerimônia judaica, esteve na preparação da Missa Ecumênica na Catedral da Sé. Devastada pela morte do homem amado, pai dos filhos, ela não perdeu o fio da História que lhe coube conduzir. Entrou na Justiça para responsabilizar a União, sem pedir compensação financeira. “Não estava atrás de um dinheiro sujo de sangue.” Ela queria que o governo fosse considerado culpado. Por que entrar na Justiça em plena ditadura? Perguntei isso a ela. A resposta: “Fui à Justiça porque era Justiça. Eles estavam matando as pessoas. Queria mostrar que isso estava acontecendo no país. Eu tinha que fazer por mim, meus filhos e o país. Eu tinha que provar que ele fora assassinado.” Escrevi um texto sobre ela para o livro “Heroínas desta História”, com vários perfis de mulheres, lançado em 2020 pelo Instituto Vladimir Herzog.

A atitude de Clarice, em plenos anos 1970, quando a ordem militar pairava opressiva sobre todos os poderes, inclusive o Judiciário, conversa com a decisão de pessoas escravizadas que, no Brasil escravocrata, recorreram à Justiça nas chamadas Ações de Liberdade. Muitos venceram. O governo militar proibiu o juiz João Gomes Martins, da 7ª Vara Federal, de proferir sua sentença, e o aposentou compulsoriamente. O juiz substituto, com dois anos de magistratura, Márcio José de Moraes, não se intimidou e condenou a União. A sentença histórica saiu em 27 de outubro de 1978, três anos após o dia do enterro de Vlado. O governo militar descumpriu a ordem judicial. Ela continuou brigando. “Eu sou briguenta, não me amedronto”, ela me disse.

Em 2018, o Brasil foi condenado, em San José, pela Corte Interamericana de Justiça. Ao depor naquele tribunal, ela narrou os eventos, desde o ponto em que os pais do Vlado, judeus perseguidos, fugiram da Iugoslávia, ocupada pelos nazistas, atravessando a fronteira a pé com o filho pequeno nos braços, até a morte desse filho sob tortura aos 38 anos num quartel do Exército brasileiro.

No julgamento de San José, me impressionou a juventude das defensoras da Advocacia-Geral da União (AGU) que sustentavam, junto com o perito contratado pelo governo brasileiro, Alberto Toron, que as reparações haviam sido feitas. Jamais um sequer dos torturadores foi punido, seus nomes foram protegidos pelo Exército, o legista Harry Shibata, que escreveu o laudo mentiroso, morou durante anos a 500 metros de Clarice. Em um país que não encara a verdade histórica —e por isso corre, ainda hoje, o risco de cair na mesma armadilha autoritária — uma voz corajosa e insistente como a de Clarice tem um valor incalculável. Ela é uma heroína.

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