terça-feira, 14 de setembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A democracia não é uma foto

O Estado de S. Paulo

O dia 12 de setembro mostrou que o caminho não está deserto e pessoas de diferentes correntes ideológicas decidiram trilhá-lo

O presidente Jair Bolsonaro queria uma foto no dia 7 de setembro. Sua expectativa era de que uma imagem pudesse contradizer as pesquisas de opinião, que vêm constatando o crescimento da rejeição e da desaprovação de seu governo. Bolsonaro obteve a foto com seus apoiadores na Avenida Paulista, mas a indesmentível realidade permanece. O presidente nunca teve tão pouco apoio popular e, principalmente, continua a negligenciar os gravíssimos problemas do País.

Já as manifestações do domingo passado talvez tenham frustrado quem queria obter com elas uma foto da oposição a Jair Bolsonaro. A rejeição aos abusos, negacionismos e irresponsabilidades do governo federal é inequivocamente maior do que a imagem obtida com os eventos do dia 12 de setembro. De toda forma, o que ocorreu no último domingo revela dois importantes fatos para o futuro da democracia brasileira.

Houve uma inédita reunião de forças políticas, bastante divergentes entre si, em torno de uma causa comum. Deixando de lado evidentes diferenças ideológicas, lideranças da sociedade se uniram em defesa da democracia. Um mesmo palanque recebeu pessoas muito diferentes, que estavam ali por um único motivo: expressar sua insatisfação com o autoritarismo de Jair Bolsonaro.

Se o número de manifestantes pode dar margem a que bolsonaristas desdenhem dos atos de 12 de setembro, a reunião inédita na história recente do País de pessoas com propostas políticas tão diferentes revela uma novidade que não convém desprezar. A comparação meramente quantitativa entre os eventos de terça-feira e de domingo não é apenas injusta pela disparidade de recursos empregados e pela diferença entre o apoio a um político e a defesa de uma causa cívica. Ela é incapaz de captar a dimensão social e política do que ocorreu no domingo passado: um efetivo pluralismo de ideias e propostas em torno de uma causa comum.

O segundo fato, inegável e explícito, é que o PT não está interessado na defesa da democracia. Sua percepção de democracia é uma só: Luiz Inácio Lula da Silva de volta ao poder. Nesse sentido, ao PT não interessa o impeachment de Jair Bolsonaro, tampouco a união das forças políticas em torno de uma causa comum. A causa petista é a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, e ponto final.

É muito natural, portanto, que o PT não tenha participado das manifestações de 12 de setembro. O cenário ideal para Lula – que nada tem a ver com o cenário ideal para o País – não é apenas que Jair Bolsonaro seja um candidato expressivo nas eleições presidenciais de 2022, mas que o bolsonarismo esteja no segundo turno.

A presença de Lula nas eleições de 2022 é fundamental para Jair Bolsonaro. Sem ter nada a mostrar sobre o que fez ao longo do governo, Jair Bolsonaro, com o líder petista na disputa, poderá levantar os fantasmas de sempre: a ameaça comunista, a perversão dos valores tradicionais, o aparelhamento das estatais, a corrupção. Ainda que critique o Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro sabe que tem muito a agradecer à Corte por ter suspendido os efeitos da Lei da Ficha Limpa sobre Lula.

Da mesma forma, ainda que critique Bolsonaro, Lula tem muito a agradecer pelas manifestações do 7 de Setembro. O fantasma do bolsonarismo – o medo de mais quatro anos de irresponsabilidade, confusão e negacionismo no Executivo federal – é por ora o caminho mais fácil para Lula voltar ao Palácio do Planalto. Assim, Lula não terá de enfrentar os temas que expõem sem disfarce a natureza do lulopetismo: os escândalos de corrupção, a crise social e econômica causada por Dilma Rousseff, a ausência de propostas responsáveis para o País.

As manifestações de 12 de setembro podem ter frustrado quem contava com um resultado imediato, pois o caminho da democracia e da responsabilidade com o bem comum é longo, repleto de percalços, dificuldades e necessários aprendizados. Mas há uma notícia especialmente relevante. Esse caminho não está deserto. Pessoas de diferentes correntes ideológicas decidiram trilhá-lo e estão convidando outros a trilharem também.

Inconstitucional, inepta e inoportuna

O Estado de S. Paulo

MP que restringe os poderes de moderação das redes precisa ser devolvida pelo Senado

No dia 6, o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) 1.068, que impede as redes sociais de excluir conteúdos, “exceto por justa causa”, tal como definida no documento. Como toda MP, esta passou a valer na data da publicação, mas precisa ser aprovada pelo Congresso em 120 dias. O presidente do Senado tem, contudo, a discricionariedade de devolvê-la, caso considere que viola a Constituição, anulando imediatamente seus efeitos. Espera-se que o faça, porque, além de inconstitucional, ela é inepta e inoportuna.

Não que a questão dos limites à moderação de conteúdos por parte das redes não seja relevante, tanto que vem sendo debatida em todo o mundo. Se, por um lado, as plataformas não são responsabilizadas pelos conteúdos publicados, a contrapartida é que mantenham sua neutralidade enquanto veículo para que os usuários expressem sua opinião. Segundo o governo, a MP visa a impedir a “remoção arbitrária e imotivada” de perfis e conteúdos a partir de critérios que “impliquem censura de ordem política, ideológica, científica, artística ou religiosa”.

Muitos juristas apontaram no documento vícios materiais, cujo principal efeito seria inviabilizar o combate à disseminação de notícias falsas. Mas não é preciso entrar no mérito. O art. 62 da Constituição estabelece que as medidas provisórias poderão ser adotadas “em caso de relevância e urgência”. Não é o caso. O Brasil construiu o Marco Civil da Internet, que estabelece os princípios de neutralidade e isonomia da rede e os critérios para regular a moderação de conteúdos. Sem dúvida, o Marco é passível de aperfeiçoamento, mas, após sete anos de laboriosa deliberação, consolidou um equilíbrio de interesses que não pode ser alterado no improviso.

Diante disso, uma série de partidos impetrou na Suprema Corte uma ação pedindo a suspensão da medida. O procurador-geral, Augusto Aras – que pode ser acusado de tudo menos de ser hostil ao governo –, foi favorável à suspensão, dada a “complexidade do contexto social e político atual, com demanda por instrumentos de mitigação de conflitos, aliada a razões de segurança jurídica”. Aras lembrou que tramita no Congresso o projeto de lei das fake news, sendo “prudente” aguardar a sua definição, “após amplo e legítimo debate, na seara apropriada”.

A MP é inoportuna, porque oportunista: foi publicada nas vésperas das manifestações bolsonaristas do 7 de Setembro, como um aceno de Bolsonaro a aliados que tiveram conteúdos removidos não só por iniciativa das plataformas (como no caso da desinformação a respeito de vacinas ou medicamentos), mas por determinação de órgãos como o Tribunal Superior Eleitoral e a própria Suprema Corte (no caso de acusações fraudulentas ao sistema eleitoral ou ameaças a ministros).

Decerto Bolsonaro espera um tratamento diferenciado após contemporizar as tensões fabricadas por ele mesmo em sua Declaração à Nação. Mas, se o presidente recuou de sua belicosidade, não fez mais do que a obrigação, e isso não significa que as instituições recuarão de seus deveres. 

De tempos em tempos, Bolsonaro fala em costurar um “pacto” entre os Poderes. Esse pacto já existe: é a Constituição. Supostos acordos não servirão para que as instituições se acovardem ou cedam a interesses. Conforme suas atribuições constitucionais, o Legislativo continuará a legislar e o Judiciário, a julgar. Assim como o STF deve avaliar os inquéritos levados à Corte, o Senado precisa analisar a constitucionalidade das medidas provisórias apresentadas ao Congresso.

A devolução de uma MP é uma medida constrangedora para o Executivo. Tanto que só foi empregada quatro vezes desde 1988. A última foi no ano passado, quando o então presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu a MP que mudava os critérios de escolha de reitores de universidades federais. A MP 1.068 merece o mesmo destino. E por mais indigesto que ele seja para o presidente Bolsonaro, a prova de que a sua declaração de respeito às instituições não é letra morta será aceitá-lo como quem aceita um remédio amargo, mas salutar. 

A preocupante saúde escolar

O Estado de S. Paulo

Pesquisa do IBGE traz números preocupantes sobre os adolescentes e jovens brasileiros

Elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar apresenta um quadro preocupante dos adolescentes e jovens do País. Segundo o estudo, um em cada sete adolescentes já sofreu abuso sexual e quase um quarto dos estudantes brasileiros afirmou ter sofrido bullying de colegas.

O IBGE ouviu 188 mil estudantes de 4.361 escolas em 1.288 municípios. Quando a pesquisa foi feita, o Brasil tinha cerca de 11,8 milhões de estudantes na faixa etária de 13 a 17 anos. Entre outras constatações, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar registrou que dois terços dos estudantes entrevistados informaram que ingeriram algum tipo de bebida alcoólica – e, desse total, um em cada três o fez antes de completar 14 anos. O levantamento também apontou que 47% dos estudantes disseram ter passado por pelo menos um episódio de embriaguez. 

Com relação ao comportamento dos estudantes brasileiros, chamam a atenção na pesquisa os dados relativos a algum tipo de abuso sexual. Segundo o IBGE, quase 9% das meninas já foram obrigadas a manter relação sexual contra a vontade – entre os garotos foram 3,6%. Além disso, 14,6% dos entrevistados responderam que já foram tocados, manipulados, beijados por pelo menos uma vez ou passaram por situações de exposição de partes do corpo contra a vontade. Entre as meninas entrevistadas, 20,1% enfrentaram esse problema – entre os meninos foram 9%. 

Além de detectar que na maioria dos casos de abuso sexual o crime envolveu um adulto da família, a pesquisa apontou que 35,4% dos estudantes entrevistados já tiveram sua iniciação sexual. Mostrou, ainda, que apenas 63,3% usaram preservativo em sua primeira relação e que 40,9% não o utilizaram na última relação. 

Ainda com relação ao comportamento dos estudantes brasileiros de 13 a 17 anos, a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar identificou outro problema dramático – este relativo a drogas e entorpecentes. Segundo o levantamento, 13% dos entrevistados confessaram ter consumido algum tipo de drogas ilícitas e 22,6% afirmaram fumar cigarro. Em ambos os casos, o problema foi mais recorrente nas escolas da rede pública de ensino básico do que nos colégios da rede particular. 

Tão ou mais grave é a expectativa que os estudantes entrevistados têm com relação à satisfação e felicidade. Um em cada cinco (21,4%) respondeu que a vida não valia a pena ser vivida nos 30 dias anteriores ao início da pesquisa. Em outras palavras, isso mostra não só o estado emocional dos jovens e adolescentes, mas, igualmente, a falta de uma perspectiva de futuro pessoal, familiar ou trabalhista. Essa informação vai ao encontro do que já havia sido detectado há quase três meses por um levantamento promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Fundação Getulio Vargas. Realizado em parceria com o projeto Atlas da Juventude, ele revelou que os jovens brasileiros estão insatisfeitos, céticos, descontentes com o sistema de ensino e incapazes de pensar em algum projeto de vida. 

Por fim, o estudo revelou que 21% dos entrevistados afirmaram ter sido agredidos pelo pai, pela mãe ou pelo responsável nos últimos 12 meses antes de receberem o questionário do IBGE. Como esse questionário foi distribuído antes da pandemia, esses números aumentaram ainda mais com a propagação da covid-19, pois as crianças, os adolescentes e os jovens cujas escolas foram fechadas tiveram duas vezes mais risco de sofrer violência doméstica do que aqueles cujas escolas permaneceram funcionando, como foi revelado por outras pesquisas. 

Os números sombrios da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar são fundamentais para a formulação de políticas públicas voltadas à formação e qualificação dos adolescentes e jovens brasileiros. Infelizmente, porém, as áreas que mais necessitam dessas informações para elaborar seus programas – os Ministérios da Educação e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – estão sob controle de gestores tão ineptos que talvez não saibam nem mesmo interpretar esses números. 

Cada ator político age segundo seu interesse eleitoral

O Globo

A resposta às manifestações do 7 de Setembro vista domingo nas ruas do Brasil foi tímida, mas trouxe um ingrediente novo: representantes de partidos ideologicamente antagônicos deixaram de lado as diferenças e se uniram em nome do embate contra o inimigo comum, Jair Bolsonaro. A aliança improvável reuniu nomes do PCdoB, Novo, PDT, PSDB e até dissidentes do PSOL.

Não atraiu, porém, o maior partido de oposição brasileiro, o PT. Petistas alegaram que não se uniriam a um protesto que começara sob o mote “nem Lula, nem Bolsonaro” e fora inicialmente convocado por movimentos que no passado defenderam o impeachment de Dilma Rousseff, a Operação Lava-Jato e até hoje atacam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se de um pretexto apenas. Na realidade, a divisão em torno do comparecimento às ruas revela cálculos políticos distintos dos diferentes atores.

Para todos os pré-candidatos associados à terceira via entre Lula e Bolsonaro — caso de Ciro Gomes, João Doria, Eduardo Leite ou Luiz Henrique Mandetta —, o apoio ao impeachment tem lógica. Sem o nome de Bolsonaro na urna eletrônica, qualquer um que desponte como líder do grupo poderia aglutinar os votos antipetistas e teria mais chance de derrotar Lula.

Para Lula e o PT, a lógica é outra. Não lhes interessa a eleição sem Bolsonaro. Pelo motivo recíproco. Como Lula é favorito segundo todas as pesquisas, se beneficiaria naturalmente da presença de Bolsonaro na eleição, pois aglutinaria em torno de si os antibolsonaristas. Por mais que esbravejem contra o presidente, nem Lula nem o PT querem o impeachment de Bolsonaro.

Não é nenhuma surpresa, portanto, que cada ator político aja de acordo com seus interesses eleitorais. Também nada há de errado nisso. Se erro houve, foi um erro tático cometido pelos candidatos da terceira via. Incapazes de levar gente às ruas em quantidade compatível com as manifestações de 7 de Setembro, só contribuíram para afastar ainda mais o próprio objetivo — o impeachment —, já tornado improvável depois da nota de recuo de Bolsonaro na semana passada.

Erro que deriva de uma interpretação equivocada, embora comum: julgar a força política dos grupos pela capacidade de levar gente às ruas. Quem decide eleições não é a minoria barulhenta que costuma ir a protestos, comícios e fica o dia todo debatendo nas redes sociais. É, na expressão popularizada pelo presidente americano Richard Nixon, a “maioria silenciosa”. Nixon venceu de lavada a eleição de 1972, apesar de ser diuturnamente atacado em protestos contra a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate.

A melhor ferramenta de que dispomos para avaliar preferências políticas são as pesquisas de opinião. De acordo com elas, postos diante de apenas três opções, mais de 40% dos eleitores preferem Lula. Os dois demais grupos — os bolsonaristas e aqueles que não querem nenhum dos dois — têm aproximadamente o mesmo tamanho, algo como um quarto do eleitorado.

Isso significa que a manifestação bolsonarista do 7 de Setembro transmitiu uma impressão de força maior que a realidade. Com os protestos de domingo, ocorreu o contrário: mais brasileiros preferem a terceira via do que as ruas deram a entender. Ainda é cedo para descartar qualquer possibilidade. No ano que vem, o resultado poderá pender para qualquer lado.

TSE faz bem em apertar o cerco contra mentiras sobre as eleições

O Globo

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) realizou em dois municípios fluminenses, no último fim de semana, testes para ver se o voto digitado é contado corretamente nas urnas eletrônicas. Ao fim, como esperado, não foi registrado um só erro. Mais uma vez, as urnas eletrônicas demonstraram funcionar perfeitamente. O resultado é apenas a última demonstração de como são delirantes as teorias conspiratórias sobre irregularidades no voto impresso.

Silva Jardim e Santa Maria Madalena, no estado do Rio, são dois dos cinco municípios brasileiros que realizaram eleições suplementares para prefeito no domingo. Isso ocorre quando o mandato de todos os eleitos é cassado ou quando o registro de candidatura é negado por determinação da Justiça Eleitoral. No sábado, o TSE sorteou urnas que seriam usadas no dia seguinte e as transferiu para a sede do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE/RJ), onde foram auditadas no mesmo horário do pleito, com transmissão ao vivo por uma rede social.

Presente ao TRE/RJ, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, ressaltou a importância da transparência e da participação de partidos políticos, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Desde que foram adotadas, há 25 anos, as urnas eletrônicas gozaram de credibilidade entre os eleitores brasileiros. Passaram duas décadas livres de acusações de fraudes e sempre foram motivo de orgulho nacional. Isso começou a mudar quando o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores iniciaram uma campanha insidiosa de desinformação contra o processo eleitoral brasileiro — acusações jamais acompanhadas de provas.

Ciente da necessidade de rebater com informação a campanha de descrédito contra as urnas eletrônicas, o TSE dará início no dia 4 de outubro aos testes anteriores às eleições presidenciais de 2022. Em evento a que foram convidados os presidentes de partidos políticos e integrantes da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), haverá visita à sala onde estarão acessíveis para inspeção os códigos dos programas que fazem as urnas funcionar.

Criada no dia 9 de setembro, a CTE é formada por integrantes de instituições e órgãos públicos, além de especialistas em tecnologia. Sua missão é analisar os planos de transparência do TSE e fiscalizar os sistemas eleitorais e de auditoria. Em discurso na semana passada, Barroso afirmou que “uma das manifestações do autoritarismo pelo mundo afora é a tentativa de desacreditar o processo eleitoral para, em caso de derrota, poder alegar fraude e deslegitimar o vencedor”.

Feito o diagnóstico, o TSE não perderá tempo em combater essa ameaça à democracia brasileira, com testes ampliados e também com divulgação de seus resultados para toda a população. Faz muito bem o tribunal em apertar o cerco contra as mentiras, de modo a prevenir qualquer contestação ao resultado caso Bolsonaro seja derrotado.

Incertezas reduzem interesse dos investidores externos

Valor Econômico

A cautela em relação ao mercado brasileiro aumentou com as decepções em relação aos ajustes e reformas econômicos

Mais uma gigante entre as multinacionais está deixando o Brasil. A maior fabricante global de cimento, a suíça Holcim, vendeu suas operações no país para a CSN Cimento, na semana passada. A Holcim era a terceira maior do país, desde que comprou a francesa Lafarge em 2014, e sai em um momento de aumento do consumo. Após amargar uma crise de 2014 a 2018, o mercado interno de cimento voltou a crescer: 11% em 2020, em plena pandemia, com expectativa de crescer mais 6% neste ano.

As justificativas oficiais da Holcim não são claras. O grupo fala em reduzir o endividamento e diversificar os negócios. Mas seguirá com operações em outros países da América Latina -Argentina, México e Equador. A intenção de deixar o Brasil havia sido externada já em abril e agora o grupo arrumou um comprador por US$ 1,025 bilhão. A intenção era conseguir até US$ 1,5 bilhão.

Em janeiro, outra multinacional, a Ford, anunciou a saída do Brasil. Antes dela a também emblemática Mercedes Benz revelou a retirada. É inegável que a cautela em relação ao mercado brasileiro aumentou com as decepções em relação aos ajustes e reformas econômicos. Agora, o sentimento é intensificado com a antecipação da disputa eleitoral de 2022 desencadeada pelo presidente Jair Bolsonaro. Como analisou o ex-presidente do Banco Central (BC) Pérsio Arida, “estamos com um mundo com taxas de juros baixíssimas, com excesso de capitais, com um volume enorme de recursos destináveis a infraestrutura e a políticas ambientais adequadas. [Esse fluxo de investimentos] não se materializa no Brasil porque o Brasil é visto como um pária” (Valor, 13/9).

Os dados mais recentes do BC registram que os investimentos estrangeiros diretos no país (IDP) somaram US$ 31,8 bilhões até julho neste ano, dos quais US$ 27,1 bilhões são participação no capital. Compõem o restante operações intercompanhias, que embutem na maioria das vezes empréstimos de matriz para filiais, devolvidos depois na forma de remessas de lucros e dividendos. Essas remessas atingiram US$ 3,1 bilhões em julho, surpreendendo o BC. No acumulado até julho, somam US$ 12,7 bilhões, quase o dobro dos US$ 7,8 bilhões do mesmo período de 2020.

Dos US$ 27,1 bilhões em participação do capital registrados no ano até agora, US$ 20,3 bilhões ingressaram efetivamente no país (a conta inclui reinvestimento de resultados). Chama a atenção detalhamento do BC mostrando que esses investimentos novos são pulverizados. Até agora, não há ingressos acima de US$ 1 bilhão. A maior parte (30,4%) varia de US$ 100 milhões a US$ 500 milhões; percentual expressivo de 18% envolve operações até US$ 10 milhões; e 15% vão de US$ 20 milhões a US$ 50 milhões.

Ainda assim, o Brasil deve superar o resultado de 2020, quando teve o pior volume de investimento estrangeiro em duas décadas. Foram US$ 25 bilhões, de acordo com levantamento da Unctad, compilados pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). O desempenho fraco foi principalmente atribuído à pandemia, mas o investimento estrangeiro caiu muito mais no Brasil do que na média mundial: 62% em comparação com 35%. Em consequência, o Brasil também recuou no ranking da Unctad, do sexto lugar entre países mais atraentes para o capital externo para o 11º lugar, atrás de emergentes como o México (9º) e da Índia (5º).

Se tem alguém vendendo, tem alguém comprando, diz o consenso popular. As instalações da Mercedes Benz em Iracemápolis (SP) foram adquiridas pela jovem montadora chinesa Great Wall, atraída por incentivos fiscais não tão generosos quanto os oferecidos a sua antecessora, mas ainda sedutores. A iniciativa da Great Wall pode ser considerada uma exceção. Os investimentos chineses no Brasil mostraram recuo desde 2020, movimento atribuído inicialmente à pandemia, mas que podem também ter sido afetados pelas críticas do governo Bolsonaro a Pequim. Em 2020, os investimentos no país caíram 74% em relação a 2019, somando US$ 1,9 bilhão, menor valor desde 2014.

A cautela do investidor estrangeiro abre espaço para a expansão das empresas brasileiras. Levantamento da Dealogic mostrou recorde de US$ 59,4 bilhões em fusões e aquisições no mercado brasileiro no ano até o início de agosto, volume superior aos US$ 52,7 bilhões, de 2017. Muitas delas saíram às compras após terem fortalecido o caixa em operações de abertura de capital ou oferta de ações neste ano. Além disso, já estão acostumadas às turbulências domésticas.

Armas no STF

Folha de S. Paulo

Corte precisa derrubar normas que contrariem o espirito do estatuto aprovado em 2003

Após um pedido de vista que durou cinco meses, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, enfim liberou para julgamento o conjunto de ações propostas por partidos de oposição que questiona quatro decretos, editados em fevereiro por Jair Bolsonaro, para facilitar o acesso da população a armas de fogo.

Está em vigor, por exemplo, a presunção de veracidade da declaração para efetiva necessidade de posse de armas. O STF já conta com dois votos contrários ao texto, que inverte a lógica da legislação: hoje se toma como verdadeira a necessidade, cabendo ao Estado a tarefa de provar o contrário.

Entre outras providências contidas nos decretos estão a permissão para que cidadãos utilizem armamentos equivalentes ou superiores aos de policiais, além de liberar fuzis para atiradores; o enfraquecimento do rastreamento e da marcação de munições; o aumento do prazo para renovação de registro dos produtos.

Tudo isso contraria os propósitos do Estatuto do Desarmamento, uma lei aprovada em 2003. Decretos presidenciais, como se sabe, são instrumentos normativos inferiores, que não podem conflitar com regra aprovada pelo Legislativo —e é por isso que o Supremo precisa examinar a questão.

Sem apoio político para fazer avançar a quase totalidade de sua pauta ideológica, Bolsonaro conseguiu ir além da retórica no armamentismo, em especial graças a normas que não precisam passar pelo crivo dos parlamentares.

Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que em dezembro de 2020 havia 1.279.491 registros de armas no sistema da Polícia Federal, o que representa o dobro da quantidade observada em 2017 (637.972). Os números cresceram em todos os estados, e a alta no Distrito Federal chegou a assustadores 562%.

Além disso, segundo documento da entidade, saltou de 200,2 mil, em 2019, para 286,9 mil o número de pessoas credenciadas no Exército como caçadores, atiradores desportivos e colecionadores. Há mais 561,3 mil armas em poder desse grupo.

Amparada em normas de legalidade mais que duvidosa, essa política de Bolsonaro carece também de fundamentação racional. Especialistas em segurança pública apontam que a maior circulação de revólveres, pistolas e outros artefatos favorece a violência e cria oportunidades para criminosos.

“Povo armado jamais será escravizado”, declarou recentemente o mandatário, o que dá sinal de seu alheamento da realidade.

Resquício patriarcal

Folha de S. Paulo

Serviços de saúde não podem exigir consentimento de maridos para implantar DIU

Certas notícias soam inacreditáveis pelo mero fato de surgirem no século 21. Como esta: postos de saúde de São Paulo pedem autorização do marido para inserção de dispositivo intrauterino (DIU), como revelou a Folha. E não só porque a prática é ilegal.

Tudo se passa como se profissionais de saúde e suas pacientes vivessem em 1821, e não em 2021. Por incrível que pareça, houve um tempo em que mulheres não podiam nem votar, menos ainda decidir o que é melhor para elas e seu próprio corpo, hoje uma obviedade na maior parte das nações.

Não em certas partes do Brasil. Pelo menos sete unidades básicas de saúde paulistanas pedem a assinatura do parceiro nos formulários de consentimento; em agosto, outra reportagem revelara que se exige o mesmo de clientes de alguns seguros de saúde.

O DIU, dispositivo em formato de T posicionado no útero, impede a fecundação ou a fixação de um óvulo fecundado, de maneira a impedir a gestação. Tem perto de 99% de eficiência e pode ser removido a qualquer tempo, se a mulher decidir engravidar.

Por ser reversível, o método não se enquadra na categoria dos contraceptivos com efeitos permanentes, como vasectomia ou ligadura tubária. Nesses dois casos, a lei 9.263/96, sobre planejamento familiar, prevê a exigência de consentimento do cônjuge para a realização da intervenção cirúrgica.

A provisão legal poderá funcionar como incentivo para que casais cheguem a desejável consenso. Em havendo algum desacordo entre mulher e marido, contudo, pode-se argumentar que a exigência, apesar de legal, exorbita na limitação da autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo.

Parece provável que muito dessa inclinação autoritária mostrada por certos provedores de serviços de saúde deriva de concepções morais particulares, se não de fundo religioso, que funcionários e instituições se julgam no dever de impor a usuários.

Trata-se, em verdade, de um abuso. O acesso a contraceptivos constitui um direito que não pode e não deve ser dificultado, seja pela exigência de consentimento de outrem, seja pela interposição burocrática de outras barreiras, como consultas de aconselhamento psicológico ou familiar.

Não basta o poder público reconhecer falhas e prometer suspensão da prática no caso do DIU, como fez a Prefeitura de São Paulo; é mandatório que se inicie uma campanha para esclarecer servidores e outros profissionais de saúde sobre a ilegalidade da exigência.

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