terça-feira, 14 de setembro de 2021

Míriam Leitão - Os muitos riscos dos indígenas do Brasil

O Globo

Os indígenas brasileiros vivem várias aflições e emergências, enquanto o Brasil, mergulhado em crises, mal tem tempo para refletir. No Supremo, o debate do marco temporal afetará todos os povos. Para o bem ou para o mal. O julgamento será retomado amanhã. Na Funai estão vencendo portarias que protegem áreas onde estão índios isolados. O tempo corre para populações que nem têm entendimento do que se passa neste Brasil conflagrado. Sábado que vem expira a portaria que protegeu uma área em Mato Grosso, onde estão remanescentes dos Piripkura. Há outras. Renová-las é questão de vida ou morte.

— Nós estamos num momento de muito perigo para os índios isolados com a questão das portarias. Nós temos os Piripkura, Katawixi, Pirititi, Ituna Itatá. Se as portarias que protegem as áreas não forem renovadas — e a Funai não parece preocupada — isso vai deixar nossos parentes isolados ainda mais vulneráveis — diz Beto Marubo, representante da União dos Povos do Vale do Javari (Unijava), região onde há mais indígenas isolados no mundo e membro do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados (OPI).

Na questão geral, o STF discute há um mês o princípio do marco temporal. Se for aceito, os indígenas só poderão reivindicar as terras onde estavam em 5 de outubro de 1988. Na semana passada o relator, Edson Fachin, votou contra a tese do marco temporal. Um enorme acampamento indígena acompanha o julgamento. A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) explica que a Constituição de 88 foi um recomeço da relação do país com os indígenas. Antes, eles eram removidos e confinados em reservas. Portanto, estabelecer essa data confirmaria o que houve antes, séculos de violência. Perguntei à deputada como seria o dia seguinte dos indígenas, caso o STF decida em favor do marco temporal:

— Nossa. Eu ainda não parei para pensar. Seria o fim de tudo. Vai abrir conflitos nas comunidades com os que são contra a demarcação. Basta ver o que acontece com a fala do presidente, imagina uma decisão do Supremo. Quando o presidente disse que iria regulamentar garimpo em terra indígena aumentou e muito garimpeiro em terra Ianomami. O receio é de insegurança física mesmo dos indígenas. Muita gente ali está convicta da impunidade, e eles têm armas. Por isso, prefiro pensar no cenário positivo de que o Supremo não vai deixar isso acontecer.

Os indígenas isolados são um problema quase invisível. O Brasil tem 104 registros de populações indígenas que fogem de qualquer contato ou fazem contato muito raramente. Só 26 confirmados. Quando se tem registro de grupos isolados, a Funai, pelo princípio da precaução, reserva a área com a portaria de “restrição de uso”. Cinco dessas estão vencendo. A dos Piripkura, no Mato Grosso, no próximo sábado. Pirititi (Roraima) e Katawixi (Amazonas), em dezembro. Ituna Itatá, no Pará, em 9 de janeiro.

Conversei sobre isso com dois indígenas, Beto Marubo e Francisco Pyanko, do OPI, com o ex-coordenador de grupos isolados Leonardo Lenin e com a advogada Carolina Santana, assessora jurídica do OPI.

— Uma portaria de restrição de uso é uma ferramenta jurídica precária. Porque é um ato do presidente da Funai— disse Carolina.

— Quando há a confirmação da presença dos indígenas, a Funai teria que iniciar a demarcação. No caso de Piripkura, já há confirmação há mais de quatro décadas. Dois foram vistos, e outra indígena, que não vive lá, fala que quando saiu havia 11. A portaria está terminando, e isso numa área, no noroeste de Mato Grosso, região de Colniza e Rondolândia, de muita violência fundiária — conta Leonardo.

Perguntei a uma servidora da Funai o que acontecerá se essas portarias não forem renovadas:

— Se elas não forem renovadas, esses povos nunca mais terão uma segunda chance. Esse povo acabou.

Francisco Pyanko vive no Acre, perto do Peru, onde há um projeto de estrada cortando o Parque Nacional da Serra do Divisor:

— É uma situação de muita tensão para os indígenas aqui e no Peru, pela invasão de madeireiros, garimpeiros, narcotráfico. A gente que vive aqui sente a tensão, imagina os nossos parentes isolados. Estão sendo tirados direitos conquistados com muita luta.

O assunto indígena no Brasil é complexo, profundo. Se vencer o retrocesso que o governo Bolsonaro escolheu, será uma tragédia para os indígenas, mas haverá também um alto custo para o Brasil como um todo. Seremos definitivamente um país pária.

 

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