O Globo
Os indígenas brasileiros vivem várias
aflições e emergências, enquanto o Brasil, mergulhado em crises, mal tem tempo
para refletir. No Supremo, o debate do marco temporal afetará todos os povos.
Para o bem ou para o mal. O julgamento será retomado amanhã. Na Funai estão
vencendo portarias que protegem áreas onde estão índios isolados. O tempo corre
para populações que nem têm entendimento do que se passa neste Brasil
conflagrado. Sábado que vem expira a portaria que protegeu uma área em Mato
Grosso, onde estão remanescentes dos Piripkura. Há outras. Renová-las é questão
de vida ou morte.
— Nós estamos num momento de muito perigo para os índios isolados com a questão das portarias. Nós temos os Piripkura, Katawixi, Pirititi, Ituna Itatá. Se as portarias que protegem as áreas não forem renovadas — e a Funai não parece preocupada — isso vai deixar nossos parentes isolados ainda mais vulneráveis — diz Beto Marubo, representante da União dos Povos do Vale do Javari (Unijava), região onde há mais indígenas isolados no mundo e membro do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados (OPI).
Na questão geral, o STF discute há um mês o
princípio do marco temporal. Se for aceito, os indígenas só poderão reivindicar
as terras onde estavam em 5 de outubro de 1988. Na semana passada o relator,
Edson Fachin, votou contra a tese do marco temporal. Um enorme acampamento
indígena acompanha o julgamento. A deputada Joenia Wapichana (Rede-RR) explica
que a Constituição de 88 foi um recomeço da relação do país com os indígenas.
Antes, eles eram removidos e confinados em reservas. Portanto, estabelecer essa
data confirmaria o que houve antes, séculos de violência. Perguntei à deputada
como seria o dia seguinte dos indígenas, caso o STF decida em favor do marco
temporal:
— Nossa. Eu ainda não parei para pensar.
Seria o fim de tudo. Vai abrir conflitos nas comunidades com os que são contra
a demarcação. Basta ver o que acontece com a fala do presidente, imagina uma
decisão do Supremo. Quando o presidente disse que iria regulamentar garimpo em
terra indígena aumentou e muito garimpeiro em terra Ianomami. O receio é de
insegurança física mesmo dos indígenas. Muita gente ali está convicta da
impunidade, e eles têm armas. Por isso, prefiro pensar no cenário positivo de
que o Supremo não vai deixar isso acontecer.
Os indígenas isolados são um problema quase
invisível. O Brasil tem 104 registros de populações indígenas que fogem de
qualquer contato ou fazem contato muito raramente. Só 26 confirmados. Quando se
tem registro de grupos isolados, a Funai, pelo princípio da precaução, reserva
a área com a portaria de “restrição de uso”. Cinco dessas estão vencendo. A dos
Piripkura, no Mato Grosso, no próximo sábado. Pirititi (Roraima) e Katawixi
(Amazonas), em dezembro. Ituna Itatá, no Pará, em 9 de janeiro.
Conversei sobre isso com dois indígenas,
Beto Marubo e Francisco Pyanko, do OPI, com o ex-coordenador de grupos isolados
Leonardo Lenin e com a advogada Carolina Santana, assessora jurídica do OPI.
— Uma portaria de restrição de uso é uma
ferramenta jurídica precária. Porque é um ato do presidente da Funai— disse
Carolina.
— Quando há a confirmação da presença dos
indígenas, a Funai teria que iniciar a demarcação. No caso de Piripkura, já há
confirmação há mais de quatro décadas. Dois foram vistos, e outra indígena, que
não vive lá, fala que quando saiu havia 11. A portaria está terminando, e isso
numa área, no noroeste de Mato Grosso, região de Colniza e Rondolândia, de
muita violência fundiária — conta Leonardo.
Perguntei a uma servidora da Funai o que
acontecerá se essas portarias não forem renovadas:
— Se elas não forem renovadas, esses povos
nunca mais terão uma segunda chance. Esse povo acabou.
Francisco Pyanko vive no Acre, perto do
Peru, onde há um projeto de estrada cortando o Parque Nacional da Serra do
Divisor:
— É uma situação de muita tensão para os
indígenas aqui e no Peru, pela invasão de madeireiros, garimpeiros,
narcotráfico. A gente que vive aqui sente a tensão, imagina os nossos parentes
isolados. Estão sendo tirados direitos conquistados com muita luta.
O assunto indígena no Brasil é complexo,
profundo. Se vencer o retrocesso que o governo Bolsonaro escolheu, será uma
tragédia para os indígenas, mas haverá também um alto custo para o Brasil como
um todo. Seremos definitivamente um país pária.
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