Valor Econômico
Talvez estejamos numa empreitada
verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos
Bárbaros
Em entrevista concedida a Bob Woodward na
Casa Branca, Donald Trump confessou: “Eu boto a raiva para fora. Eu boto a
raiva para fora. Sempre gostei. Eu não sei se isso é um ativo ou um passivo,
mas seja o que for, eu faço”. Trump exprime o declínio dos valores e das ideias
que inspiraram os Estados Unidos na construção da chamada ordem mundial do
pós-Guerra. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e
antifascistas trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição
da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da
economia destravada.
Nos idos de 2018, Martin Wolf, editor do
Financial Times, denunciou as manobras de Donald Trump para implodir a ordem
mundial. “São características destacadas do comportamento de Trump suas
invenções, sua autocomiseração e sua prática da intimidação: os outros,
inclusive os aliados históricos, estão “zombando de nós” em relação ao clima ou
“nos enganando” em relação ao comércio exterior. A União Europeia, argumenta
ele, “foi implantada para tirar proveito dos EUA, certo? Não mais... Esse tempo
acabou”.
O filósofo Fredric Jameson, no livro “A
Cultura do Dinheiro”, advertia no início do milênio: “Os quatro pilares
ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo - constituições, contratos,
cidadania e sociedade civil - são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre
lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira
situação de penúria”.
O magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade, avaliado em seus próprios termos e objetivos, está fazendo água diante da alucinante e alucinada competição entre as sociedades e suas lideranças para mergulhar o planeta nos esgotos da barbárie.
Não podemos colher outro ensinamento das
imprecações agressivas de Jair Bolsonaro contra os ministros do STF. Ao apontar
sua garrucha velha e enferrujada para Alexandre de Moraes ou Luis Roberto
Barroso, Bolsonaro não pretende atingir as pessoas dos ministros, mas, sim, a
instituição STF. No mesmo diapasão, seus fanáticos, ignaros e ressentidos
apoiadores pretendem destruir as instituições que acompanharam a formação do
Estado Moderno ao longo de séculos, no propósito de substituí-lo pelas regras
das sociedades das cavernas.
A civilização ocidental, disse Gandhi,
teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do
século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem
finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias
burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada
verdadeiramente subversiva em seu paradoxo: a construção da República dos
Bárbaros. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade
contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos
esgares da máquina movida pelo narcisismo dos ressentidos.
Esses deserdados da civilidade simulam
retidão moral para praticar as brutalidades dos homens de bem. Os direitos
individuais e os valores da modernidade são tragados no redemoinho do moralismo
particularista e exibicionista dos amorais. Trump e Bolsonaro exibiram de forma
contundente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A
ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento e a resposta no mesmo tom
são instrumentos da brutalização das consciências.
O expediente de satanizar o adversário
revela indigência mental e despreparo para a convivência democrática. É,
portanto, saudável exorcizar as tentações do maniqueísmo, o bem contra o mal.
Os bárbaros do teclado repercutem nas redes
sociais os impropérios dos líderes truculentos. Manejam com desembaraço a
técnica das oposições binárias, método dominante nas ações e interações entre
os participantes das redes. Nos comentários da internet, vai “de vento em popa”
o que Herbert Marcuse chamou de “automatização psíquica” dos indivíduos. Os
processos conscientes são substituídos por reações imediatas, simplificadoras e
simplistas, quase sempre grosseiras, corpóreas.
Os indivíduos mutilados executam os processos
descritos por Franz Neumann, em Behemoth, seu livro clássico sobre o nazismo:
“Aquilo contra o que os indivíduos nada podem e que os nega é aquilo em que se
convertem”. O que aparece sob a forma farsista de um conflito entre o bem e o
mal, está objetivado em estruturas que enclausuram e deformam as subjetividades
exaltadas. A indignação individualista, a raiva contra os opositores e os
arroubos moralistas são expressões da impotência que, não raro, se
metamorfoseia em desvario autoritário.
Donald Trump e seu discípulo Jair Messias
são fiéis pastores de seus crentes. São fiéis a seus fiéis. Para um contingente
parrudo de americanos e brasileiros, não importam os deslizes de seus Deuses e
Messias. Importa, sim, que os Escolhidos insistam e persistam na afirmação das
crenças, ideologias, visões do mundo, valores que refletem os ressentimentos
dos súditos maltratados pelas frustrações e misérias da vida.
Diante das misérias da vida e de uma vida
de misérias, as vítimas dos deuses mundanos buscam refúgio no Incompreensível.
Nos tempos de cólera, elas fogem das dúvidas e angústias que as atormentam.
Adaptadas, conformadas, até mesmo confortadas e felizes, preferem aceitar que
sua existência é apenas uma permissão dos deuses e de seus procuradores na Terra.
Nos espaços fabricados pelas Novas Crenças
não é possível manter conversações, porque neles a norma não é a argumentação,
mas o exercício da animosidade sob todos os seus disfarces, a prática
desbragada da agressividade a propósito de tudo e de todos, presentes ou
ausentes, amigos ou inimigos.
As redes sociais, prometidas como o espaço
do movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço
policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige
convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve
adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento.
Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. “Estranho ideal
policialesco, o de ser a má consciência de alguém”, diz o filósofo Gilles
Deleuze, também suspeito de patrocinar o marxismo cultural.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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