Para analista, contradições na convocação e carta de Bolsonaro com aceno ao STF esfriaram manifestações contra o governo
Guilherme Caetano / O Globo
SÃO PAULO — As imagens da Avenida Paulista
com uma presença modesta de manifestantes contra Jair Bolsonaro rodaram as
redes, utilizadas à esquerda e à direita como mostra do insucesso do protesto.
Para o cientista político Carlos Melo, do Insper, os organizadores cometeram um
erro ao realizar um ato com baixa adesão — e isso pode cobrar um preço. Mas
isso, diz ele, não representa o potencial eleitoral dos grupos políticos. Melo
diz que o esvaziamento do protesto começou em contradições na própria
convocação e que a carta elaborada por Michel Temer, publicada via Palácio do
Planalto, arrefeceu o sentimento de que seria preciso uma resposta rápida a um
iminente golpe por parte de Bolsonaro. Para o cientista político, a
centro-direita precisa se "fulanizar" em torno de um nome antes de
buscar uma união com a esquerda: "enquanto a chamada terceira via não
tiver um rosto, a dispersão é natural".
A reprovação ao governo
federal é aproximadamente o dobro da aprovação, de acordo com as últimas
pesquisas. Mas o ato do domingo, convocado por MBL, Vem Pra Rua e Livres contra
Bolsonaro, não conseguiu encher mais de duas quadras da Avenida Paulista. Por que
essa dificuldade?
Me parece ter um problema com a convocação
do ato, que desde o princípio foi convocado para ser "nem Lula nem
Bolsonaro". Depois de quarta-feira (pós 7 de Setembro), ele muda sua
natureza, então já tem um problema aí. Estamos falando de apenas quatro dias
(até o domingo da manifestação). Além disso, existiram vetos cruzados em todo
esse antibolsonarismo. Vimos pessoas do PT dizendo que não participariam de
atos junto do MBL, Vem Pra Rua, mas também houve pessoas como o (deputado federal)
Marcel van Hattem (Novo-RS) dizendo que "o ato que era para ser 'nem Lula
nem Bolsonaro' se transformou em 'fora, Bolsonaro' e daqui a pouco vira 'volta,
Lula'". Por fim, houve acordos que não foram cumpridos. O sujeito de
esquerda que se prepara para sair de casa (e ir ao ato) e vê aquele pixuleco
enorme (boneco inflável de Bolsonaro equiparado a Lula), ele não vai mais. Esse
foi um ponto de divergência entre os organizadores.
O protagonismo do MBL, que
tem histórico de ataques à esquerda e engajamento no impeachment de Dilma,
também interferiu na baixa adesão?
Ressentimentos políticos existem e são marcantes, mas eles fazem parte. A superação desses ressentimentos se dá ao longo do tempo e precisa ser operado politicamente. Não é do dia 7 para o dia 12 que esse negócio vai ser feito. Esse processo foi atropelado pelo que decorreu do discurso do Bolsonaro (no 7 de Setembro).
Qual é a influência do recuo
do presidente, expresso em carta, nessa desarticulação?
Em se tratando do Bolsonaro, recuos são
sempre muito precários e duvidosos. Mas a carta tira o sentido de emergência e
de temor de um "golpe já", esfria aquele calor, aquele ambiente do
dia 8, em que havia caminhoneiros nas ruas. Para muita gente, ela veio
como uma espécie de alívio. Dizer que a carta é um fator preponderante (para o
esvaziamento do protesto) talvez seja um exagero.
Bolsonaristas debocharam do
ato de domingo. Vale a pena botar carro de som na rua para encher duas quadras
na Paulista?
Não vale a pena. É um erro que tem
consequências. Cobra um preço político. O que que as pessoas razoáveis fazem
diante dos erros? Avaliam e tentam corrigir. Claro que os adversários vão tirar
sarro dos seus erros. Encontrar a justa medida, o timing certo para sair às
ruas, é uma arte. Agora eles deveriam tentar fazer um balanço sincero, às vezes
doloroso, dos erros que cometeram, e corrigir.
O que esperar dos próximos
protestos antibolsonaro?
Há uma tendência de o próximo ser um
protesto mais vigoroso do que vimos no domingo. Já houve alguns protestos
feitos pela esquerda nos últimos meses, com um número bem razoável de pessoas,
então há uma tendência de você ter protestos maiores. Mas é necessário colocar
as barbas de molho e primeiro construir. Eles (esquerda) não chamaram um
protesto para o dia 19. Chamaram para dia 2 de outubro. Então há 20 dias para
se construir. Segundo lugar, é necessário ter cuidado em não cometer o erro que
Bolsonaro cometeu em dizer que suas manifestações seriam gigantes. Porque
depois, por maiores que elas sejam, há sempre uma frustração perto da
expectativa que se criou. Criar expectativas irreais fazem você pagar um preço
político alto demais por não realizá-las.
O protesto do domingo serviu
para medir a expressividade de um terceiro grupo, a viabilidade eleitoral entre
as esquerdas e Bolsonaro?
Acho que não. Mesmo a manifestação do 7 de
Setembro ficou muito aquém do potencial do bolsonarismo. É um erro acreditar
que Bolsonaro colocou todo o seu potencial ali (no 7 de Setembro). Da esquerda,
a mesma coisa. Não expressa o potencial eleitoral, expressa o setor mais
engajado. O problema desse terceiro grupo é que, enquanto os bolsonaristas e
lulistas têm símbolos, esse não tem. Você olha para o palanque de ontem e vê
vários candidatos disputando a preferência dos presentes, isso é ruim. Enquanto
a chamada terceira via não tiver um rosto, essa dispersão será natural.
Em um dos carros de som na
Paulista, lideranças discursaram contra PT e Lula, equiparando-os a Bolsonaro.
Esse tipo de atitude pode ditar a amplitude dos próximos protestos da oposição?
É claro, isso atrapalha muito a aproximação, mas radicais existem dos dois lados. Como o PCO também é um problema quando a esquerda faz suas manifestações. No primeiro ato antibolsonaro em que o PSDB aderiu, eles foram agredidos pelo PCO.
É possível dissociar o
aspecto eleitoral do cálculo da oposição na articulação desses protestos contra
Bolsonaro?
Infelizmente não, pelo menos até aqui. O
fator eleitoral está presente, mas não deveria estar. Se fosse um candidato de
centro favorito em disputar contra Bolsonaro, será que ele abriria mão de ter
Bolsonaro como adversário? É natural esse cálculo eleitoral, mas quando o que
está em jogo é a própria democracia, isso é um erro.
O ex-presidente Lula lidera
as pesquisas de intenção de voto. O senhor vê indisposição por parte do PT em
derrubar Bolsonaro agora e prejudicar o cenário eleitoral de 2022?
Esse cálculo se baseia no seguinte
princípio: tudo o mais constante, a democracia e as eleições garantidas,
evidentemente parece que para o PT o melhor cenário seria disputar com
Bolsonaro. Mas na percepção de que a democracia de fato não chega até lá, isso
pode de fato colocar outro tipo de cálculo, de racionalidade, para os petistas.
Quanto mais essa percepção se fortalecer, menos tende a se pensar na eleição, e
mais na manutenção da democracia. Quanto mais o sistema político conseguir
produzir conciliações, como a carta do Bolsonaro, quanto maior for a impressão
de que o leão ruge muito alto mas não é feroz, o cálculo eleitoral passa a ter
predominância.
Que tipo de concessão cada um
dos grupos terá de fazer daqui em diante para conseguirem estar nas ruas juntos
pelo impeachment?
Tem uma questão aí que é a agenda
econômica, onde reside boa parte dos problemas. A agenda econômica será
obrigada a ser discutida com uma pauta de políticas públicas que mitiguem todo
o problema social que a gente está vivendo, o desemprego estrutural, o
desalento, a miséria que voltou, inflação. Aí tanto os setores à esquerda que
quiserem dialogar vão ter que encontrar uma possibilidade de complementação de
políticas econômicas que ajudem no desenvolvimento, ao mesmo tempo em que
protejam as pessoas.
E concessões em termos
discursivos, para um lado atrair o outro?
Acho que no caso da esquerda, o movimento do Lula não é só discursivo, é simbólico. É apresentar quem será o coordenador do seu projeto econômico. Seria esse o sinal importante. Mas para o outro lado também vale questionar qual é a opinião dessas pessoas sobre a deterioração do ambiente social no Brasil. O que fazer? Só deixar por conta do mercado... A gente sabe que não resolve. O grande problema é que quando você fala na centro-direita, você fala "tá, mas quem?". Na esquerda você pode "fulanizar". É o Lula. Mas o outro campo ainda não se decidiu. Se ele ainda está internamente fragmentado, como você pode buscar uma união com a esquerda? Como resultado você tem aquela manifestação de domingo.
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