quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Medicina à deriva

Folha de S. Paulo

Casos Prevent Senior e Hapvida expõem falhas de entidades; CFM sai apequenado

Hospitais são estruturas extremamente complexas e, por isso, sujeitam-se à fiscalização de uma legião de entidades, aí incluídos o Corpo de Bombeiros, órgãos de vigilância sanitária nos três níveis de governo e comitês de ética.

Têm papel importante, também, os conselhos profissionais em suas versões nacionais e regionais. Fala-se aqui do Conselho Federal de Medicina (CFM), dos CRMs (regionais), do Cofen e dos Corens (na área de enfermagem) e de seus congêneres para farmacêuticos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, psicólogos e dentistas.

Há ainda, obviamente, os órgãos fiscalizadores genéricos, como o Ministério da Saúde, os ministérios públicos e, no caso de hospitais públicos ou que utilizem verbas públicas, os tribunais de contas.

A esta altura, pode-se perguntar como, havendo tantos agentes de regulação e monitoramento, não se evitou o festival de abusos agora sob investigação nos casos da Prevent Senior e da Hapvida durante a pandemia. A profusão de atores é parte da resposta.

Um bom modo de não responsabilizar ninguém consiste em multiplicar o número de fiscais. Ainda que as esferas de atuação de cada órgão estejam razoavelmente bem definidas, sobram zonas cinzentas.

Protocolos de atendimento sem respaldo na ciência (leia-se a hidroxicloroquina e os outros sais do que ficou conhecido como kit Covid) poderiam ter sido contestados tanto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) como pelos conselhos de medicina.

As condutas questionáveis nos experimentos são um tema dividido entre os comitês de ética e os conselhos profissionais, ainda que os últimos dependam de alguma denúncia para agir. A adulteração de declarações de óbito é caso de polícia e dos conselhos médicos.

Só uma investigação profunda permitirá atribuir as responsabilidades de forma adequada, mas já se pode afirmar que a regulação médica se mostrou falha em muitos níveis. Estudar bem esses casos e propor mudanças na forma de fiscalizar é um imperativo.

Também cabe adiantar que um dos órgãos a sair mais apequenado dessa crise é o Conselho Federal de Medicina. Ao permitir até hoje a prescrição de drogas inócuas contra a Covid-19, o CFM renunciou à sua obrigação de promover a medicina baseada em evidências.

Só isso já seria grave. Muito pior será, entretanto, se na conduta da entidade pesaram simpatias ideológicas de conselheiros pelo presidente da República. Em qualquer hipótese, de todo modo, o dano à credibilidade do conselho é real.

Fantasmas da igreja

Folha de S. Paulo

Mais uma investigação, agora na França, mostra acobertamento de abusos sexuais

Embora nas últimas décadas uma profusão de episódios de abuso sexual cometidos por membros da Igreja Católica tenha vindo a lume, não deixam de causar estarrecimento os números revelados por um relatório sobre o tema recém-divulgado na França.

Conduzido desde 2018 por uma comissão independente, o documento aponta que, de 1950 a 2020, 216 mil menores de idade, a maioria meninos de 10 a 13 anos, sofreram abuso por parte de integrantes do clero francês.

Se forem considerados também casos envolvendo leigos que trabalhavam para a igreja ou eram afiliados a ela, como professores de catequese, a quantidade de vítimas chega a nada menos que 330 mil. Mais da metade deles ocorreu nas décadas de 1950 e 1960.

O relatório, que busca responder às pressões de vítimas e familiares num momento de diminuição das congregações católicas naquele país, estimou ainda que algo entre 2.900 e 3.200 padres estiveram envolvidos nesses episódios acabrunhantes.

Para chegar a esses dados, a comissão de investigação analisou depoimentos escritos e orais de 6.500 vítimas ou pessoas próximas a elas e vasculhou arquivos públicos, de igrejas e da imprensa.

Mais do que trazer números, o relatório buscou descrever como a hierarquia eclesiástica francesa se esforçou para abafar os casos surgidos nas últimas sete décadas.

De acordo com o chefe da comissão, em vez de defender as vítimas de abusos, a igreja optou por fechar os olhos para as denúncias e proteger a si própria, agindo com “indiferença profunda, total e até cruel durante anos”.

Esse véu de silêncio deliberado e institucional também foi observado em outros países onde apurações do gênero foram conduzidas, como Irlanda, Polônia, EUA, Alemanha e Austrália, entre outros.

Reconheça-se que, sob o papa Francisco, a igreja passou a se empenhar muito mais do que no passado para romper essa cultura de silenciamento e enfrentar o gigantesco passivo acumulado.

Em 2019, o pontífice publicou normas que obrigam padres e bispos a relatar suspeitas de abuso sexual. Mais recentemente, endureceu as punições para clérigos que cometerem tais atos. Só o tempo atestará a efetividade das medidas.

Quanto ao caso francês, mais do que a reparação às vítimas e treinamento rigoroso aos clérigos que tenham crianças sob cuidado, como recomenda o relatório, é crucial garantir que, a partir de agora, todas as denúncias cheguem às autoridades policiais e judiciárias.

Mentira como negócio

O Estado de S. Paulo

Alguma forma de regulação das redes sociais se faz necessária. Não se pode deixar que uma empresa estimule a disseminação de mentiras para ampliar seus lucros

Desde que surgiu, o Facebook proclama que sua missão é “tornar o mundo mais aberto e conectado”, o que presume valorização das relações pessoais e de laços sociais. Seus algoritmos, contudo, foram programados basicamente para gerar o máximo de engajamento, o que tende a privilegiar a publicação e o compartilhamento frenético de conteúdos muitas vezes nocivos à saúde e à democracia. 

Esse modelo de negócios foi denunciado no dia 5 passado por uma ex-programadora do Facebook, Frances Haugen, em depoimento ao Congresso dos EUA. Segundo ela, entre os conteúdos que geram mais interação no Facebook estão os que “fazem mal às crianças, alimentam a divisão e enfraquecem a nossa democracia”.

A suspeita é antiga. Frances Haugen tornou públicos documentos internos do Facebook que comprovariam que a empresa tinha evidências desses impactos, e não só não fez nada para reduzi-los, como pode tê-los maximizado. A se confirmar a veracidade da denúncia, ficará claro que o Facebook não se importa com o fato de que os conteúdos tóxicos que seu sistema favorece ajudam a tornar o mundo mais fechado e dividido, desde que esse engajamento lhe dê lucro e colabore para consolidar seu monopólio.

O Facebook alega que promove a responsabilidade social removendo conteúdos danosos, mas os documentos mostram que a empresa tomou medidas contra apenas uma pequena fração das publicações contendo discursos de ódio e incitação à violência.

Em 2018, o Facebook anunciou que, a fim de mitigar a radicalização, priorizaria publicações de amigos e família. Seus pesquisadores, no entanto, coletaram evidências do efeito oposto: “A desinformação, a toxicidade e o conteúdo violento prevalecem desordenadamente nos compartilhamentos”. Os documentos mostram ainda que pesquisadores do Instagram – uma das redes do Facebook, assim como o WhatsApp – mensuraram que, para 13,5% das adolescentes, a plataforma agravou ideações suicidas e para 17%, suas desordens alimentares.

Cientistas da Equipe de Integridade – da qual Haugen fazia parte – trabalharam em uma série de potenciais mudanças para reverter a tendência dos algoritmos a premiar ultrajes e mentiras. Mas os memorandos revelam que Mark Zuckerberg, o dono do Facebook, resistiu a várias dessas soluções, porque poderiam diminuir o engajamento dos usuários. 

Em um artigo recente na revista The Atlantic, os psicólogos Jonathan Haidt e Tobias Rose-Stockwell fizeram uma recensão da literatura científica evidenciando que as redes contribuem para a ansiedade e depressão entre adolescentes e para a polarização política. Reunindo as melhores recomendações dessas pesquisas, os autores sugerem maneiras de remediar esses males.

Uma seria reduzir a frequência e a intensidade das performances públicas. As mídias criam mais incentivos a arroubos moralistas do que à comunicação autêntica. Reduzir a valorização do engajamento, hoje absoluta, seria um modo de induzir os usuários a julgar as publicações por seu mérito, ao invés de submetê-los a uma contínua disputa por popularidade. Outra possibilidade é reduzir o contágio da desinformação, por exemplo, utilizando a Inteligência Artificial para identificar conteúdos tóxicos e advertir os usuários.

A questão em relação a essas e outras ferramentas é quem as implementaria: os governos, as próprias redes, os usuários? O problema ganhou nova dimensão graças às denúncias de Frances Haugen. Nos EUA, já se discute uma expansão da Lei de Privacidade Infantil Online, tornando ilegal computar informações pessoais de crianças. Outra possibilidade é limitar a prerrogativa das redes sociais de não serem responsabilizadas por conteúdos publicados por seus usuários, mesmo quando moderados por elas.

Sejam quais forem as soluções encontradas, o fato é que alguma forma de regulação se faz necessária. Não se pode, a pretexto de preservar a livre-iniciativa, deixar que uma empresa construa um gigantesco monopólio, estimule a disseminação de mentiras para ampliar seu lucro e concentre poder de maneira assustadora sem que seja submetida a limites democraticamente estabelecidos.

A resistência das instituições

O Estado de S. Paulo

O ICJ, da FGV, mostra que voltou a aumentar a confiança da população no Poder Judiciário

Em plena crise entre as instituições, causada pelas reiteradas afrontas feitas ao Judiciário pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início de seu governo, qual é a percepção que a sociedade brasileira tem desse Poder, como instância de resolução de conflitos sociais, políticos e econômicos?

Para responder a essa pergunta, a Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo retomou o Índice de Confiança da Justiça (ICJ) no Brasil, que foi por ela elaborado durante 2009 e 2017 e que teve de ser suspenso nos últimos dois anos. Coordenada pelos pesquisadores Luciana Ramos, Luciana Gross, Fabiana de Oliveira e Joelson Sampaio, a nova edição do Índice de Confiança da Justiça se baseia em dados do início de 2021 e traz informações importantes sobre a percepção da população brasileira com relação ao Judiciário, de modo geral, e ao Supremo Tribunal Federal (STF), de modo específico. 

Principal alvo das críticas de Bolsonaro, que após a pandemia passou a acusar a Corte de não o deixar governar, a avaliação surpreendeu – 42% dos entrevistados disseram confiar no STF, ante 24% na edição de 2017. O estudo também mostrou que quatro em cada dez brasileiros consideram a atuação do Supremo ótima ou boa nas ações relacionadas à pandemia de covid. Mais importante ainda, a pesquisa apontou que oito em cada dez brasileiros acham que é injustificável o fechamento do STF pelo presidente da República. 

Segundo o ICJ de 2021, o Judiciário aparece como uma instituição confiável em termos de eficiência, isenção e imparcialidade. Partindo da premissa de que essas informações dão a medida da legitimidade das instituições judiciais, afetando com isso o desenvolvimento econômico do País e a solidez de seu regime democrático, os pesquisadores entrevistaram 1.650 pessoas em sete Estados, além do Distrito Federal. A conclusão foi de que, com relação à última edição do ICJ, a confiança da população na Justiça cresceu significativamente. Segundo o estudo, o nível de confiança na Justiça em 2021 chegou a 40% – ante apenas 29% na última versão do índice.

Entre os motivos que levaram os entrevistados a aumentar sua confiança no Poder Judiciário destacam-se, pela ordem, os litígios relativos ao direito do consumidor, a relações de trabalho, a relações com a administração pública, ao direito de família, à judicialização da saúde, às relações de vizinhança e à prestação de serviços. Isso dá a medida da consciência que a sociedade brasileira hoje tem da importância dos tribunais para garantir a segurança do direito na resolução de litígios da vida cotidiana. Apesar de os entrevistados terem reclamado da morosidade dos tribunais e dos altos custos para litigar, o levantamento mostrou uma significativa melhora na avaliação de sua independência com relação aos demais Poderes, principalmente o Executivo.

Abaixo do Poder Judiciário, estão no ICJ de 2021 as igrejas evangélicas (38%), as emissoras de televisão (34%) e os sindicatos (32%). Entre as instituições mais confiáveis acima do Poder Judiciário estão as Forças Armadas, com um índice de 63%, a Igreja Católica (53%), as grandes empresas (49%), a imprensa escrita (47%), o Ministério Público (45%) e a Polícia (44%). Na outra ponta da linha, as instituições vistas como menos confiáveis foram a Presidência da República (29%), as redes sociais (19%), o Congresso Nacional (12%) e os partidos políticos (6%). O estudo também aponta que a imprensa escrita e as grandes empresas obtiveram em 2021 o maior porcentual desde que a Escola de Direito da FGV de São Paulo iniciou esse tipo de levantamento. Já a queda mais expressiva foi com relação ao índice de confiança das redes sociais, que despencou de 37% para 19%, no período de dois anos.

Os números indicam que, por mais ruidosa que seja a gritaria bolsonarista contra as instituições e por mais ardilosa que seja a ofensiva bolsonarista para desmoralizar a verdade dos fatos, uma parte expressiva dos brasileiros comuns devota respeito tanto pelo Judiciário quanto pela imprensa profissional, para desespero dos liberticidas.

Ganhando com os preços externos

O Estado de S. Paulo

Cotações favorecem superávit comercial, mas pressionam custo de vida interno

Favorecido pela alta dos preços internacionais, o Brasil acumulou superávit comercial de US$ 56,4 bilhões de janeiro a setembro – valor 38,3% maior que o obtido nos nove meses correspondentes de 2020. As exportações totalizaram US$ 213,2 bilhões, superando por 36,9% a receita de um ano antes. A despesa com importações cresceu 36,4% e chegou a US$ 156,8 bilhões. Os índices de preços aumentaram 28,9% nas vendas e 9,5% nas compras. Os dois movimentos tiveram reflexos na inflação interna, complicando a vida das famílias, principalmente das mais pobres, as mais afetadas pela piora do mercado de trabalho e mais dependentes da escassa ajuda governamental.

A alta das cotações internacionais alterou tanto os custos de produção, afetados pelo encarecimento das matérias-primas e dos bens intermediários, quanto os preços pagos no varejo pelos consumidores. Nem todo aumento de custos foi repassado aos compradores finais, mas os danos causados até agora estão muito claros nos índices de inflação e na piora das condições de vida.

Todos os grandes setores da exportação dependeram principalmente dos preços para aumentar o faturamento no comércio exterior. No ano, o volume exportado pela agropecuária foi 8,7% menor que o de janeiro a setembro de 2020, mas as cotações foram 23,7% mais altas. O caso mais notável foi o das indústrias extrativas, com ganho de 2,2% no índice de quantidade e de 70,5% no de preços. A indústria de transformação exportou 9% em volume e obteve preços 15% maiores. No conjunto, o volume exportado cresceu 4,7%, enquanto os produtos encareceram 28,9%.

Do lado das importações, os indicadores de volumes e preços tiveram os seguintes aumentos de um ano para outro: nas indústrias extrativas, variação de 29,1% na quantidade e de 14,1% no custo; nas indústrias de transformação, altas de 26,6% e 9%; na agropecuária, elevações de 3,8% e 21,2%; no total, acréscimos de 26,5% e 9,5%.

A Ásia se manteve como o destino regional mais importante para as exportações brasileiras e proporcionou 48,3% da receita. China, Hong Kong e Macau importaram produtos no valor de US$ 73,2 bilhões, 34,3% das vendas do Brasil. A Europa absorveu 17,3% das vendas brasileiras (US$ 37 bilhões), continuando em segundo lugar. Com 14% das compras, a América do Norte continuou em segundo lugar, em posição sustentada pelos US$ 22,3 bilhões importados pelos Estados Unidos, segundo maior na lista dos países clientes. O terceiro lugar entre os países foi novamente ocupado pela Argentina, compradora de US$ 8,7 bilhões.

Cada um com suas características, todos os parceiros são importantes e a diplomacia econômica tem de ser competente para entender suas peculiaridades, suas demandas e seus interesses legítimos, mas houve falhas muito perigosas, nesse trabalho, desde o começo de 2019. Incidentes com a China, mal entendidos com países muçulmanos e tensões com os europeus marcaram o período bolsonariano, pondo em risco operações no valor de dezenas de bilhões de dólares.

Com a substituição de Donald Trump por Joe Biden na Casa Branca, a política antiecológica promovida pelo presidente Jair Bolsonaro passou a pesar também no relacionamento com os Estados Unidos. O risco de erros ambientais é especialmente preocupante, no Brasil, porque parte dos empresários do agronegócio apoia as atitudes do presidente, embora ele nada tenha feito pela modernização e pelo crescimento do setor, alcançados graças a políticas de governos anteriores.

Mesmo em relação ao Mercosul houve erros diplomáticos importantes, com destaque, nesse caso, para atitudes e declarações desastradas do ministro da Economia, Paulo Guedes. A troca na chefia do Ministério de Relações Exteriores tem permitido um entendimento melhor com vários parceiros. Não se deve, no entanto, menosprezar o risco de novos erros, num governo chefiado pelo presidente Bolsonaro e sujeito a intervenções inoportunas de seus filhos, tão despreparados quanto o pai e igualmente dispostos a dar péssimos palpites em todos os setores da administração pública.

Não há saída simples para a escalada de preços da energia

Valor Econômico

No Brasil, proposta de mudar o cálculo do ICMS pode manter preços em nível alto mesmo que o petróleo caia no curto prazo

Quando o governo da China, segunda maior economia do mundo, diz que sua meta é obter energia custe o que custar, as chances de um choque global de preços no setor se consolidar subiram muito. As cotações de todos os combustíveis dispararam, em uma corrente que começou com o carvão, estendeu-se ao gás liquefeito de petróleo, gás natural e ao óleo. Com a proximidade de um inverno que se prevê rigoroso no Hemisfério Norte, a demanda cresceu bem à frente da oferta e um aumento decisivo do fornecimento, capaz de equilibrar o jogo, foi sumariamente descartado pela Opep+, cartel dos produtores que, ao incluir a Rússia, domina mais de 50% da produção.

As causas dos desacertos no mercado de energia não diferem das que têm provocado distúrbios nas cadeias globais da indústria: uma queda abrupta de produção, com a pandemia, seguida de recuperação muito rápida. Mas há peculiaridades. O engajamento maior de vários países no combate ao aquecimento global, em especial a China, materializou-se no desestímulo à produção de carvão, a fonte mais poluidora, que tem peso relevante na produção chinesa e é a base das termelétricas indianas, que compõem 66% da oferta energética na Índia. O aperto foi intenso também na Europa e o resultado foi que a demanda por energia subiu ao mesmo tempo em que a disponibilidade de carvão declinava, levando às alturas o preço do insumo.

A China, que cresce a uma velocidade de 8,5% no ano, só perdendo para a Índia (9,5%), buscou abastecer-se com importações de gás liquefeito, espalhando pressões altistas pela Europa e EUA. A alternativa de suprimento então se deslocou para o gás natural, cujos preços na Europa se multiplicaram por 10 desde o início do ano. No mercado europeu e do Reino Unido, seu preço atingiu US$ 200 o barril de óleo equivalente, duas vezes e meia o custo do petróleo, ele também em sua maior alta desde 2014.

O choque dos preços de energia realimentou outros choques em ação, como o dos fretes marítimos, e se transmitiu velozmente. A inflação está subindo em todos os países desenvolvidos (exceto Japão) e na maioria dos países emergentes, reduzindo o fôlego do crescimento global. O temor de estagflação cresceu, embora a estagnação ainda pareça distante, mas a inflação está presente e subindo.

Grandes mercados consumidores convivem ainda com problemas geopolíticos. A Europa depende em boa parte do gás russo cujo fornecimento se reduziu neste período crítico. Ontem o presidente Vladimir Putin disse que pode aumentar a oferta da Gazprom, fazendo pressão para o início do escoamento pelo gasoduto Nord Stream 2, que segue traçado político desviando-se da Ucrânia até chegar à Alemanha. Putin fez os preços do gás caírem.

Nos EUA, a produção de shale oil está sendo desencorajada pelo governo democrata, após recuar bastante antes devido a preços pouco compensadores. A oferta não avançará com a Opep aumentando sua produção, ainda que a 400 mil barris adicionais por mês e é quase certo que o shale não ocupará mais o papel que teve na década passada, por motivos ambientais.

As ações pela descarbonização da economia se tornaram parte do problema e há quem veja na atual crise a primeira de várias que terão o combate ao aquecimento global como um dos estopins. O desestímulo aos combustíveis fósseis cortou a oferta sem que em seu lugar entrasse, em proporções compatíveis, as energias alternativas. Em tempos normais não ocorreria todo esse estrago, mas em escassez aguda, contribuiu para a escalada de preços.

Não há muito a fazer para conter os preços, fora reduzir o consumo. No Brasil, a proposta de governistas para mudar o cálculo do ICMS para o preço médio de 2 anos, em vez de 15 dias, alivia pouco e manterá os preços altos mesmo que as cotações do petróleo comecem a cair a curto prazo. Já a liberação de recursos orçamentários para custear o gás de cozinha à população pobre pode ser um auxílio importante em uma época difícil.

A China decidiu elevar em 25% o preço da energia apenas para a indústria e só nos horários de pico. O governo fixou teto para aumentos para impedir que a pressão inflacionária desague no índice ao consumidor, obrigando o BC a elevar os juros, o que causaria uma infinidade de problemas, a começar pelo já tumultuado setor imobiliário e aumentaria preços de exportação de brinquedos, têxteis e componentes para máquinas, dos quais é um dos líderes em oferta. A China exportaria então inflação, algo que os demais países já possuem hoje em nível preocupante.

Congresso deveria aprovar PEC 110 com urgência

O Globo

Proposta de emenda à Constituição ataca dois grandes problemas: a complexidade da estrutura tributária e a cumulatividade de impostos

Todos os brasileiros interessados no crescimento da economia devem apoiar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 110 em tramitação no Senado. A proposta é hoje a melhor chance de o país começar a deixar para trás a barafunda de regras que tornam o sistema tributário brasileiro motivo de vergonha nacional e, pior de tudo, freio ao desenvolvimento.

A PEC 110 ataca dois grandes problemas: a complexidade da estrutura tributária e a cumulatividade de impostos. O texto propõe a criação de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que, nas palavras do economista Bernard Appy, um dos maiores especialistas na questão tributária, põe o Brasil em linha com as melhores práticas mundiais.

Aprovada a proposta, o IVA simplificará o sistema ao fundir vários impostos. PIS e Cofins, os dois federais, se tornarão a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). O ICMS, estadual, e o ISS, municipal, uma vez juntos, serão chamados de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O IPI será substituído por um imposto seletivo, como forma de desincentivar o consumo de produtos nocivos à saúde ou ao meio ambiente, caso de cigarro ou poluentes.

Para conciliar os interesses federativos e facilitar a tramitação no Congresso, a PEC 110 ficou aquém da ambiciosa PEC 45, projeto que previa uma simplificação ainda maior. Nesta PEC reformulada, o IVA ficou estabelecido de modo dual, uma parcela arrecadada para a União, a CBS, outra para estados e municípios, o IBS. Mesmo assim, ao estabelecer uma legislação nacional para o ICMS (imposto estadual) e ao determinar a cobrança no lugar de destino, não mais na origem, ela põe fim à guerra fiscal que distorce as decisões de investimento e alocação de recursos no país. Vai muito além da proposta original do governo, que previa apenas a unificação dos impostos federais e uma reforma alongada em fases.

As consequências da aprovação do texto não se encerram aí. A unificação de impostos diminuirá o tempo dedicado pelas empresas a entender o que devem pagar e a manter os tributos em dia — o Brasil é o país onde elas gastam mais tempo apenas para processar o pagamento de impostos, mais de 1.500 horas por ano segundo o Banco Mundial. É também de esperar que os litígios que se avolumam na Justiça diminuam — o Brasil também tem o maior contencioso tributário do mundo, 75% do PIB segundo estudo do Insper.

Outro ponto positivo é a eliminação da cumulatividade. Hoje, muitos impostos pagos no meio de uma cadeia produtiva não são recuperados pelas empresas. Isso afeta as decisões de investimento e reduz nossa competitividade.

O texto do Senado não abrange todas as deficiências do nosso sistema. Deixa intocados benefícios como a Zona Franca de Manaus e não se debruça sobre regimes especiais, como o Simples. Ao mesmo tempo, prevê que as exceções nas alíquotas estadual e municipal serão definidas mais tarde em lei complementar. Isso exigirá atenção da sociedade a pressões setoriais. É, porém, a decisão mais acertada, por priorizar o mais importante e deixar os detalhes para o Congresso eleito em 2022. Já contando com o apoio de estados e da maioria dos municípios, a PEC 110 deve ser aprovada com toda a urgência que o tema exige.

 

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