Revista Veja
O que precisamos são líderes pautados por
ideias e um senso de responsabilidade republicana, não por uma eterna guerra de
posições
Dias atrás tivemos o caso da Tabata Amaral.
“Se encontro na rua, soco até ser preso”, diz um desses fanáticos digitais. Em
seguida ela publicou um artigo listando frases de ódio de que tem sido vítima
nos últimos tempos. Madeleine Lacsko fez isso também, e mais gente devia fazer,
de preferência dando nome aos agressores. Há quem diga que tudo isso é um lixo
irrelevante. O.k., é verdade. Mas é também um sintoma do mal-estar da cultura
política atual. A ponta de um imenso iceberg que joga sombra sobre nossas
democracias.
O ódio político vem de longe. Robert Darnton escreveu um livro sedutor, O Diabo da Água Benta, mostrando como funcionava a indústria dos libelos de difamação na Europa do século XVIII. Eles vinham da Grub Street, em Londres, e seguiam para atormentar a vida de padres e marqueses na França absolutista. O fenômeno é muito mais antigo. No século XVI, o sátiro Pietro Aretino fazia uso da estátua de Pasquino, que ainda se pode ver, em Roma, “difamando a cada dia um dos cardeais candidatos a papa”. Nosso “Pasquino”, hoje, é a internet inteira, para ver a enrascada em que nos encontramos.
Ódio político não tem ideologia. Ninguém até agora inventou um “odiômetro” para medir de que lado vem o maior volume de lixo retórico. Ele também não atende a essa ou aquela categoria, sejam grupos de raça, gênero ou religião. Seu foco frequente são os “poderosos”, e sua maior motivação é política. Seu alvo em essência é um só: o divergente. De todos, o pior é o “ódio do bem”. O ódio de O’Brien, do 1984, que torturava Winston Smith para lhe abrir os olhos. O mal que se faz por razões estranhamente virtuosas, dessas que o inferno está cheio.
Gosto de ver tudo isso como um subproduto
da tribalização da vida atual. Os algoritmos da internet podem ter alguma coisa
a ver com isso, mas a verdade é que nós mesmos nos “algoritizamos”. Fazemos
isso criando um mundo fechado de referências, em uma lógica de combate que
alguém já definiu como “modo twitter de ser”. Jonathan Haidt identificou esse
fenômeno dizendo que é enorme a chance de qualquer um de nós ser tragado por
uma “tribo moral”. “Nos agrupamos em torno de valores sagrados (…) achamos que
o outro lado é cego à verdade, à ciência e ao bom senso. Mas a verdade é que
todos ficam cegos quando se trata de seus objetos sagrados.”
Vivemos uma época em que “ponderar” se
tornou um ato algo subversivo, e os moderados andam fora de moda. O que é uma
pena. O moderado é um tipo que faz bem à democracia. Ele é alguém que pode
mudar de ideia, diante de um bom argumento. É também o tipo capaz de fazer as
perguntas inconvenientes. O presidente não tinha sido eleito para combater o
“sistema”, e agora anda abraçado ao Centrão? Não havíamos banido a censura
prévia, no Brasil, mas agora aplaudimos quando ela atinge os “outros”?
Perguntas incômodas, mas necessárias. Sem elas, e sem que as pessoas pudessem
refletir, reconhecer erros próprios e acertos alheios, e uma vez ou outra mudar
de ideia, para que serviria mesmo o debate público?
“A mistura de fanfarrice e ódio político
pode levar a impasses perigosos”
Quando penso nessas coisas me conforto à
sombra de Montaigne. Ele viveu em uma época de extremos, infinitamente mais
violenta do que a nossa, em especial nos anos que se seguiram aos massacres da
noite de São Bartolomeu, em 1572. Aos 38 anos abandonou a vida pública de
Bordeaux e foi viver cercado de livros e camponeses, e escrever seus Ensaios, na torre de seu castelo.
Numa época em que as bruxas ardiam e protestantes tinham as cabeças cortadas,
sem cerimônia, na França, Montaigne se pôs calmamente contra a tortura,
manifestou seu “intenso horror à crueldade” (inclusive contra os animais),
defendeu que os problemas civis nada tinham a ver com a religião e pregou a
ideia quase impossível, à época, da liberdade de consciência.
Em meio ao caos, preservou sua humanidade.
E muito além disso, sugeriu uma maneira de viver, cujo elemento definidor era a
ideia da moderação. “As vidas mais belas”, disse, “são aquelas capazes de
observar o padrão humano comum e a ordem, sem milagre ou excentricidade”. Seu
ponto de partida era o reconhecimento da fragilidade da razão humana. Somos
movidos pelos influxos das paixões e coisas do mundo, em sua infinita
variedade. Daí toda nossa inconstância e o sentido de preservar um saudável
ceticismo em relação a si mesmo. Mais do que uma posição teórica, um estilo de
vida. O viver com os outros, o diálogo ameno, a “disposição amistosa” com os
diferentes, o riso solto, a curiosidade permanente e um certo gosto pelo agora.
Um “ensaiar-se” na vida, como um dançarino dado a improvisações. Alguém capaz
de dizer, diante de todo horror de sua época, que não havia encontrado “mais
evidente monstruosidade e milagre nesse mundo do que eu mesmo”. E que parecia
dispor, como disse Sarah Bakewell, de um “termostato interno que o desligava
automaticamente quanto a temperatura ultrapassava certo ponto”.
Na política atual tivemos casos notórios de
gente moderada que deixou sua marca. Vem a minha mente Václav Havel, comandando
a transição checa do palco do Lanterna Mágica, no centro de Praga. Com sua fala
tranquila e o inseparável cigarro na boca, liderou a Revolução de Veludo, que
levou o país pacificamente à democracia. Houve Barack Obama e sua insistência
em que “não havia a América negra ou a América branca”, contra os radicais de
seu próprio lado.
Alguém poderia perguntar se esse é mesmo o
caminho a seguir, se o moderado não tende, no fundo, à complacência, e se não
precisamos mesmo é de alguém capaz de dar um pontapé na porta e esmagar as
“forças do atraso”. Não acho. O que precisamos são líderes pautados por ideias
e um senso de responsabilidade republicana, não por uma eterna guerra de
posições. O mundo político não se resume a uma luta do bem contra o mal. É
feito de yin e yang, provoca Haidt. Há gente boa em ambos os lados e que “tem
algo importante a dizer”.
Há por fim um tema de ordem prática. A
fúria política pode dar vazão a nossos demônios, e por vezes funciona, nas
eleições. Mas não vale grande coisa quando há consensos a construir e reformas
difíceis a aprovar no Congresso. Nossa história recente mostra como a mistura
de fanfarrice e ódio político pode levar a impasses perigosos e perda de
credibilidade nas instituições. Além de ser muito, mas muito cansativa.
De forma que precisamos fazer melhor. O
caminho de Montaigne, de volta a sua torre, pode nos ensinar alguma coisa,
individual e coletivamente. A moderação pode voltar a ocupar algum lugar na
nossa vida pública. Não tanto um novo caminho, mas um novo jeito de caminhar.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 6 de outubro de
2021, edição nº 2758
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