Folha de S. Paulo
'Corda do pluralismo' baseia-se na
concorrência de visões de mundo diferentes
“Mãe,
Filha e Boneca”, da iemenita Boushra
Almutawakel, é uma sequência de nove fotografias que retratam o progressivo
“desaparecimento” dos corpos femininos sob camadas cada vez mais espessas de
tecidos.
A obra, uma crítica sem véu do fundamentalismo
islâmico, está na exposição “A Identidade Humana”, no CaixaForum de Madri.
Mas o texto explicativo que a acompanha, escrito pela curadoria, distorce seu
sentido, apresentando-a como uma reflexão sobre os “enfoques antagônicos”
acerca da exibição do corpo das mulheres nas sociedades muçulmanas.
Os curadores não temem a ira de regimes
fundamentalistas, com escassa influência nos meios intelectuais europeus. Não
querem é atrair a fúria santa dos arautos do multiculturalismo que poderiam
acusá-los de desrespeito à “cultura muçulmana”. Sabem que o esporte da moda é
exigir a supressão do discurso público destoante dos artigos de fé dos
pregadores da nova religião hegemônica.
Num passado ainda recente, pedir a cabeça de colunistas de opinião era uma prática restrita a políticos sem noção, amplamente ridicularizada no ambiente da imprensa.
Hoje, transformou-se em hábito de alguns
colunistas de opinião, que almejam sanitizar o jornal no qual escrevem. Thiago
Amparo é um deles, talvez o mais persistente. Pela segunda vez, dedo em riste,
reclama a eliminação dos textos de Leandro Narloch, alertando que “a
corda do pluralismo esticou a tal ponto que nos enforcará” (Folha, 29.set).
Costumo discordar das colunas de Narloch
—e, por sinal, também das de Amparo. No caso, porém, trata-se de uma boa
resenha do livro “As Sinhás Pretas da Bahia”, do antropólogo Antonio Risério,
que investiga a ascensão social de mulheres escravizadas entre os séculos 17 e
19 (Folha,
29.set). No seu auto de condenação, Amparo, o Censor, nem mesmo menciona a obra
de Risério (terá lido?). Tudo se passa como se o argumento do colunista tivesse
surgido de um céu sem nuvens.
[ x ]
Na coluna sentenciada, ou no livro
resenhado, não há traço de racismo e ninguém busca “legitimar a escravidão”
–mas, nos tempos que correm, a calúnia sai de graça.
No lugar da crítica ao argumento (que,
insisto, originalmente é de Risério, não de Narloch), o Censor prefere
descrever suas reações fisiológicas e emocionais à leitura. Sua mensagem: o
jornal torna-se “conivente com o racismo” ao publicar textos que lhe provoquem
“ânsia de vômito”, “repugnância” ou “desânimo”.
Risério não caiu no conto da chamada
“teoria crítica da raça” –ou seja, a ideia de que a dinâmica das sociedades
modernas deve ser decifrada exclusiva ou predominantemente por meio da chave do
racismo.
Os adeptos da tese, como Amparo, dispõem de
todo o espaço editorial do mundo para defendê-la, divulgando suas narrativas
históricas moralizantes e caricaturais.
Mas a “corda do pluralismo”, que também os
abrange, baseia-se no conceito de concorrência de visões de mundo diferentes.
Falar sozinho –isto é, enforcar as vozes dissonantes na corda da Verdade
Revelada– é o sonho dos pretendentes a tiranos, que existem tanto à direita
quanto à esquerda.
A eclética exposição do CaixaForum inclui
uma estátua de Eros desfigurada e mutilada, de meados do século 4 a.C.,
proveniente da Acrópole de Atenas.
Os cristãos antigos arrancaram a genitália
e cinzelaram o abdômen e os mamilos do deus do amor e do desejo, pois queriam
abolir o culto aos deuses tradicionais, além de considerarem a nudez
ignominiosa. Não foram atos de coragem ou rebeldia: à época dos vandalismos,
posterior à conversão de Constantino, o cristianismo já se tornava religião
oficial do Império Romano.
Os mutiladores rejeitavam a pluralidade de
deuses, ou seja, a diversidade de lentes pelas quais conferimos sentido à
história. É que a “corda do pluralismo” só foi fabricada muito mais tarde,
junto com a deslegitimação moral da escravidão.
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