sábado, 2 de outubro de 2021

Demétrio Magnoli - Corpos numa exposição

Folha de S. Paulo

'Corda do pluralismo' baseia-se na concorrência de visões de mundo diferentes

 “Mãe, Filha e Boneca”, da iemenita Boushra Almutawakel, é uma sequência de nove fotografias que retratam o progressivo “desaparecimento” dos corpos femininos sob camadas cada vez mais espessas de tecidos.

A obra, uma crítica sem véu do fundamentalismo islâmico, está na exposição “A Identidade Humana”, no CaixaForum de Madri. Mas o texto explicativo que a acompanha, escrito pela curadoria, distorce seu sentido, apresentando-a como uma reflexão sobre os “enfoques antagônicos” acerca da exibição do corpo das mulheres nas sociedades muçulmanas.

Os curadores não temem a ira de regimes fundamentalistas, com escassa influência nos meios intelectuais europeus. Não querem é atrair a fúria santa dos arautos do multiculturalismo que poderiam acusá-los de desrespeito à “cultura muçulmana”. Sabem que o esporte da moda é exigir a supressão do discurso público destoante dos artigos de fé dos pregadores da nova religião hegemônica.

Num passado ainda recente, pedir a cabeça de colunistas de opinião era uma prática restrita a políticos sem noção, amplamente ridicularizada no ambiente da imprensa.

Hoje, transformou-se em hábito de alguns colunistas de opinião, que almejam sanitizar o jornal no qual escrevem. Thiago Amparo é um deles, talvez o mais persistente. Pela segunda vez, dedo em riste, reclama a eliminação dos textos de Leandro Narloch, alertando que “a corda do pluralismo esticou a tal ponto que nos enforcará” (Folha, 29.set).

Costumo discordar das colunas de Narloch —e, por sinal, também das de Amparo. No caso, porém, trata-se de uma boa resenha do livro “As Sinhás Pretas da Bahia”, do antropólogo Antonio Risério, que investiga a ascensão social de mulheres escravizadas entre os séculos 17 e 19 (Folha, 29.set). No seu auto de condenação, Amparo, o Censor, nem mesmo menciona a obra de Risério (terá lido?). Tudo se passa como se o argumento do colunista tivesse surgido de um céu sem nuvens.

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Na coluna sentenciada, ou no livro resenhado, não há traço de racismo e ninguém busca “legitimar a escravidão” –mas, nos tempos que correm, a calúnia sai de graça.

No lugar da crítica ao argumento (que, insisto, originalmente é de Risério, não de Narloch), o Censor prefere descrever suas reações fisiológicas e emocionais à leitura. Sua mensagem: o jornal torna-se “conivente com o racismo” ao publicar textos que lhe provoquem “ânsia de vômito”, “repugnância” ou “desânimo”.

Risério não caiu no conto da chamada “teoria crítica da raça” –ou seja, a ideia de que a dinâmica das sociedades modernas deve ser decifrada exclusiva ou predominantemente por meio da chave do racismo.

Os adeptos da tese, como Amparo, dispõem de todo o espaço editorial do mundo para defendê-la, divulgando suas narrativas históricas moralizantes e caricaturais.

Mas a “corda do pluralismo”, que também os abrange, baseia-se no conceito de concorrência de visões de mundo diferentes. Falar sozinho –isto é, enforcar as vozes dissonantes na corda da Verdade Revelada– é o sonho dos pretendentes a tiranos, que existem tanto à direita quanto à esquerda.

A eclética exposição do CaixaForum inclui uma estátua de Eros desfigurada e mutilada, de meados do século 4 a.C., proveniente da Acrópole de Atenas.

Os cristãos antigos arrancaram a genitália e cinzelaram o abdômen e os mamilos do deus do amor e do desejo, pois queriam abolir o culto aos deuses tradicionais, além de considerarem a nudez ignominiosa. Não foram atos de coragem ou rebeldia: à época dos vandalismos, posterior à conversão de Constantino, o cristianismo já se tornava religião oficial do Império Romano.

Os mutiladores rejeitavam a pluralidade de deuses, ou seja, a diversidade de lentes pelas quais conferimos sentido à história. É que a “corda do pluralismo” só foi fabricada muito mais tarde, junto com a deslegitimação moral da escravidão.

 

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