EDITORIAIS
As pedaladas de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Em manobra vergonhosa, Congresso autorizou uso de “propostas legislativas em tramitação” como fonte de compensação para criação ou aumento de despesas
Com as pedaladas fiscais, Dilma Rousseff
descumpriu a lei orçamentária e, em conformidade com as disposições da
Constituição e da Lei 1.079/50, foi condenada por crime de responsabilidade, o
que lhe acarretou a perda do mandato. O processo de impeachment de Dilma
Rousseff foi uma vigorosa recordação da relevância, para um Estado Democrático
de Direito, do cumprimento das leis relativas ao uso do dinheiro público.
Diante da burla petista das leis fiscais, as instituições reagiram, com
destaque para a atuação responsável do Congresso.
O atual governo prometia ser radicalmente antipetista. No entanto, observa-se agora o mesmo desleixo com a responsabilidade fiscal que se viu nos tempos do PT no Palácio do Planalto, com a agravante de que Jair Bolsonaro vem cooptando as instituições, em especial, o Congresso, para o desmonte das leis fiscais. O presidente Bolsonaro tenta assegurar a impunidade de seus atos, mas os efeitos da irresponsabilidade fiscal continuam recaindo sobre a população: inflação, desemprego e retração dos investimentos, entre outros.
No dia 27 de setembro, em célere votação –
Câmara e Senado apreciaram o tema no mesmo dia –, o Congresso aprovou o Projeto
de Lei (PL) 12/2021, de autoria do Executivo, que altera a Lei de Diretrizes
Orçamentárias (LDO) de 2021. Em manobra vergonhosa, que mina um dos pilares da
organização fiscal do Estado, autorizou-se o uso de “propostas legislativas em
tramitação” como fonte de compensação para criação ou aumento de despesa
obrigatória para programas de transferência de renda apresentados pelo Poder
Executivo federal.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, Lei
Complementar 101/2000) proíbe a criação de despesas permanentes no Orçamento
sem a previsão das receitas correspondentes. É uma regra básica para o
equilíbrio das contas públicas: antes de gerar novos gastos é preciso indicar
quais os recursos que vão bancar esses gastos.
O PL 12/2021 burla a LRF, estabelecendo uma
exceção para o Executivo federal. Ao propor novos gastos, o Palácio do Planalto
não precisa mais indicar receitas reais, que existam de fato. Basta assinalar
possíveis receitas oriundas de “proposições legislativas em tramitação”.
Em vez de cumprir o seu dever e buscar
fontes reais de financiamento para o programa Auxílio Brasil, o governo federal
propôs para si uma exceção na legislação orçamentária. Quer autorização para
criar gastos sem indicar receitas. Como o nome indica, “proposições
legislativas em tramitação” ainda não foram aprovadas, ou seja, eventuais
receitas provenientes desses projetos ainda não existem no mundo dos fatos. O
Congresso não poderia ter aprovado tal artifício contábil.
Infelizmente, o ardil do PL 12/2021 não é
caso isolado. O governo Bolsonaro vem acumulando medidas que não apenas
enfraquecem a responsabilidade fiscal, mas recordam as piores práticas do
passado – de um poder público que, ignorando seus deveres e obrigações, atende
apenas aos interesses do governante de plantão. Veja-se o imbróglio dos
precatórios. O governo Bolsonaro propõe soluções equivocadas que partem de
diagnósticos igualmente equivocados.
A liquidação dos precatórios não é uma
opção do poder público. O precatório corresponde a uma obrigação já atrasada,
reconhecida pela Justiça e transitada em julgado. Nesse caso, o credor foi
prejudicado e precisou ir à Justiça para conseguir a reafirmação de seu direito.
Qualquer iniciativa para negar ou contornar esse direito é tentativa de
calote.
Como se sabe, a equipe econômica quer fixar
um limite anual para a liquidação dos precatórios, com base nos valores de
2016. Para piorar, o governo propõe que uma parte do pagamento dos precatórios
não seja incluída no cálculo do teto dos gastos. Ou seja, quer pagar pouco (ou
mesmo não pagar) a quem deve, mas deseja manter margem para outros gastos.
Já está claro que o presidente Jair
Bolsonaro, assim como os petistas antes dele, não tem nenhum compromisso com a
responsabilidade fiscal. Para aproximar-se de seu objetivo eleitoral, vale até
pedalar, com rodinhas instaladas pelo Centrão.
Déficit de governo
O Estado de S. Paulo
Dívida pública vem sendo contida, mas é bem maior que a de outros emergentes
Inflação, dólar alto e alguma reação
econômica estão melhorando a situação dos cofres públicos. Preços em alta e
câmbio depreciado vêm ajudando a engordar a receita. Com maior arrecadação e
menor despesa com a pandemia, o governo central acumulou neste ano, até agosto,
um déficit primário de R$ 83,08 bilhões, equivalente a 1,47% do Produto Interno
Bruto (PIB). Foi um resultado muito melhor que o do ano passado, quando o
buraco, no mesmo período, correspondeu a 12,52% do valor final dos bens e
serviços produzidos no País. Mas o filme fica bem menos bonito quando a
comparação é feita com os primeiros oito meses de 2019, ano anterior ao surto
de covid. Naquele período, início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, o
saldo negativo do poder central chegou a 0,87% do PIB. O
resultado primário é calculado sem as obrigações da dívida pública. Os dados
são do Banco Central (BC).
Desempenho melhor têm apresentado os
governos estaduais e municipais, com superávit de R$ 81,69 bilhões nas contas
primárias. Quando se incluem nas contas esses governos e a maior parte das
estatais (sem Petrobras e Eletrobras), encontra-se um pequeno resultado
positivo, de R$ 1,24 bilhão, ou 0,02% do PIB. Somados os juros vencidos,
chega-se ao balanço geral do setor público, um déficit de R$ 235,77 bilhões em
oito meses, ou 4,17% do PIB acumulado no ano, R$ 5,65 trilhões pelos cálculos
do BC.
A Previdência, mais uma vez, aparece com
destaque negativo na formação das contas públicas. Entre janeiro e agosto o
INSS teve um déficit de R$ 210,43 bilhões, muito mais que suficiente para
engolir o superávit primário de R$ 127,69 bilhões acumulado no período pelo
Tesouro Nacional. Os efeitos da reforma previdenciária poderão ser mais
sensíveis dentro de alguns anos, mas o sistema ainda pressionará fortemente as
finanças federais.
Conter a evolução da dívida pública deve
ser um dos objetivos centrais da política fiscal. Antes da pandemia, a equipe
econômica incluiu entre suas metas a manutenção dessa dívida no limite de 80%
do PIB. A covid atrapalhou também esse plano. O setor público foi obrigado a
gastar muito mais que o planejado e a buscar mais financiamentos. Em dezembro,
a dívida bruta do governo geral, formado pelos três níveis da administração,
equivaleu a 88,8% do PIB.
A proporção diminuiu nos meses seguintes e,
pelos cálculos do BC, chegou em agosto a 82,7%. A melhora é indiscutível, mas a
situação do Brasil, nesse quesito, é muito pior que a da maior parte dos países
de renda média. Para esse conjunto, a dívida bruta do governo geral
corresponde, em média, a cerca de 65% do PIB. Além disso, os juros pagos pelos
governos desses países são geralmente menores que aqueles cobrados do setor
público brasileiro. Esses pontos – dívida mais alta e mais cara – são
lembrados, de novo, no Sumário Executivo das contas de agosto
divulgado na terça-feira pelo Tesouro.
Ao lembrar esses dados, a chefia do Tesouro
reafirma a importância do respeito ao teto de gastos e da preservação da
disciplina fiscal. O papel mais importante do teto, segundo essa nota, é evitar
que ganhos de arrecadação se traduzam em gastos.
O tom otimista desse Sumário Executivo destoa
do cenário político. O presidente da República insiste em recriar com sua marca
o programa Bolsa Família, com pagamentos maiores e mais beneficiários, mesmo
sem uma fonte segura de receita para o gasto adicional. Além disso, disciplina
fiscal e bom uso de recursos são assuntos esquecidos, normalmente, nos acertos
entre e o presidente Jair Bolsonaro e o Centrão. A gastança promovida com base
no orçamento paralelo é um componente desse jogo.
A insegurança fiscal, agravada pelo uso
eleitoreiro das finanças públicas, resulta na elevação dos juros futuros e do
dólar. Os desdobramentos são mais inflação, risco maior para o Tesouro,
retração dos financiadores e investidores e menor crescimento. Por trás dos
desafios fiscais brasileiros, nesta fase, estão os déficits de seriedade e de
competência, sintetizados num enorme déficit de governo.
Também a recuperação é desigual
O Estado de S. Paulo
Retomada nos países menos desenvolvidos é difícil, mas é desafio para outros também
A pandemia parece ter estabelecido uma
lógica perversa na superação, pelos países, dos males que ela provocou. Aqueles
que menos podem e mais sofrem são os que sofrerão por mais tempo.
Não há, por notórias diferenças entre os
países quanto à sua evolução econômica, social e política, bem como à
capacidade de resposta de suas instituições a emergências e a situações
inesperadas, uma relação linear entre grau de desenvolvimento e tempo de
recuperação dos malefícios da covid-19. Mas, se submetidos a governos pouco
eficazes ou irresponsáveis, com baixa capacidade para enfrentar problemas, países
que ostentam indicadores econômicos e sociais melhores do que os dos menos
desenvolvidos terão dificuldades semelhantes para retomar o desenvolvimento.
O que o relatório da Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (Unctad) sobre a situação dos países menos
desenvolvidos no mundo pós-covid mostra é que, mais desafiadora para esses
países, a recuperação exigirá respostas adequadas de todos os demais. Embora
seus indicadores o deixem numa situação muito mais confortável do que a dos
cerca de 50 países listados pela Unctad em seu estudo, o Brasil tem desafios
como os apontados no relatório.
Segundo o organismo vinculado à ONU, o
estímulo ao desenvolvimento da capacidade produtiva é a única esperança para os
países menos desenvolvidos, pois só por meio da recuperação de sua estrutura de
produção esses países poderão superar a crise e alcançar um desenvolvimento
sustentável. A Unctad define capacidade produtiva como “os recursos produtivos,
as capacidades empresariais e os vínculos de produção que, em conjunto,
determinam a capacidade de um país de produzir bens e serviços e lhe permitem
crescer e desenvolver-se”.
Em boa medida, para os 46 países considerados
menos desenvolvidos pela Unctad, e que abrigam 1,1 bilhão de pessoas, as
perspectivas são consideradas “desalentadoras”. Eles dependerão de ajuda
internacional para investir no sistema de produção e na preparação de sua
população para os desafios do crescimento e do progresso.
Precisarão também suprir deficiências
institucionais, econômicas e sociais para alcançar uma trajetória de
desenvolvimento. A maioria deles levará vários anos para recuperar o nível
econômico (Produto Interno Bruto per capita) que tinha antes da pandemia.
A pandemia mudou o mundo de maneira
permanente, o que exige políticas, soluções e respostas capazes de enfrentar o
imenso desafio à frente, diz a secretária-geral da Unctad, Rebeca Grynspan, na
apresentação do relatório.
Mas há caminhos já abertos que podem ser
percorridos. Ampliar a base empresarial por meio de investimentos em capacidade
produtiva será indispensável para que as economias desses países estejam
preparadas para o crescimento pós-pandemia é um dos caminhos apontados no
relatório da Unctad.
Uma política industrial bem orientada
também deve fazer parte de um programa consistente de recuperação da economia
dos países menos desenvolvidos. Política industrial, esclareça-se, não
significa necessariamente protecionismo ou vantagem tributária, como durante
anos se fez no Brasil.
São desafios que se colocam também para
países que almejam ocupar posições mais altas numa economia mundial cada vez
mais competitiva. Esses países nem sempre souberam responder adequadamente a tais
desafios que, por isso, ainda turvam seu horizonte. Mas eles têm outros.
Além de recuperar as perdas impostas pela pandemia, esses países, como o Brasil, precisam ganhar produtividade e competência produtiva para disputar espaços no mercado internacional. No caso brasileiro, o agronegócio soube responder com grande eficiência a esse desafio. Mas a indústria, que perde peso na economia nacional, está perdendo também a corrida mundial. A pandemia exacerbou os problemas de todos.
Retomada verde
Folha de S. Paulo
Empresários insistem na conversão racional
de Paulo Guedes à pauta do ambiente
Há algo de admirável na persistência de
empresários em tentar convencer o governo brasileiro a recuperar o protagonismo
que já teve na discussão global sobre ambiente. Com a aproximação da 26ª
conferência do clima em Glasgow (COP26), eles voltam à carga, mesmo sem grande
chance de êxito.
Espera-se que Paulo Guedes, ministro da
Economia, receba
na quarta (6) representantes de um grupo de 80 companhias que lançou o
manifesto “Empresários pelo Clima”. Elas integram o Conselho Empresarial
Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável.
A lista de signatários fala por si: Alcoa,
Amazon, B3, Bradesco, BRF, Carrefour, Embraer, Grupo Ultra, JBS, JSL, Klabin,
Korin, Marfrig, Mastercard, Movida, Natura, Nestlé, Renner, Shell, Suzano,
Vivo, Votorantim —e outras empresas e entidades seguem aderindo.
Demanda-se ali que o Planalto prepare a
retomada do crescimento sob o prisma do cuidado com a base natural que sustenta
a economia. Para influenciar Guedes, será apresentado estudo segundo o qual
ações sustentáveis podem gerar receita adicional de US$ 123,7 bilhões (R$ 673
bilhões) ao país.
Na mira dos empresários se acha o
desmatamento na Amazônia, que tanto macula a reputação brasileira. A dizimação
da maior floresta tropical do mundo responde por 48% de toda a poluição
agravadora do aquecimento global aqui gerada.
Levantamentos indicam que 98% da devastação
ocorre ilegalmente. Com efetivo combate a delitos, o país garantiria já o
cumprimento de quatro quintos das obrigações nacionais no Acordo de Paris
(2015), tratado que estipula a adoção de metas mais e mais ambiciosas para
conter em 1,5ºC o aquecimento da atmosfera.
O retrospecto do governo Jair Bolsonaro,
entretanto, mostra-se desalentador. Por dois anos seguidos o desmate na
Amazônia se deu na casa de cinco dígitos, acima de 10 mil km², revertendo avanços
obtidos ao longo de uma década.
Revigora-se, sob o desmazelo federal, um
processo predatório que pôs o Brasil na dianteira entre nove nações amazônicas,
conforme relatório divulgado quinta-feira (30). Enquanto no bioma como um todo
a média de antropização abarca 15%, aqui a floresta já teve 19% da área
alterada por ação humana.
É com esse prontuário ambiental
problemático que o país irá a Glasgow, apimentado com o negacionismo de
Bolsonaro na matéria. Ainda que seja improvável, a exposição de seu governo à
melhor ciência, à diplomacia racional e ao exemplo da elite empresarial deveria
bastar para que retomasse a trajetória de nação antes vista como campeã da
biodiversidade.
Passaporte ético
Folha de S. Paulo
Não se sustenta ideia de que exigir imunização
em eventos implique autoritarismo
Após investir contra distanciamento social,
vacinas e máscaras, agora hostes bolsonaristas elegem como alvo passaportes de
imunização contra a pandemia.
Centenas
de municípios brasileiros e vários governos do exterior passaram a
exigir o documento como precondição de acesso a locais de alta concentração de
público. O rol varia, mas é comum a inclusão de shows, eventos esportivos,
congressos, bares e restaurantes.
Argumentos sanitários a favor da medida são
sólidos. De um lado, havendo somente vacinados no recinto, o risco de
contaminação mútua cai significativamente. De outro, a exigência atua como
forte incentivo para que mais gente se imunize, o que dificulta a transmissão
comunitária.
As dificuldades se amplificam de modo
exponencial, calcadas numa noção distorcida de liberalismo, quando convicções
infundadas de particulares invadem a esfera de poderes constituídos, como o
Poder Judiciário.
Assim se deu com um desembargador
fluminense que exorbitou da função ao suspender decretos municipais impondo o
passaporte.
O Supremo Tribunal Federal em
boa hora reverteu a decisão. Tais dispositivos se ancoram na lei 13.979/20,
sobre medidas contra a pandemia, e no entendimento do STF sobre a autonomia de
prefeitos e governadores para adotá-las.
Ainda que legalmente amparado e promovedor
da saúde pública, o passaporte suscita alguma dúvida, em parte do público, no
que respeita à liberdade individual. O próprio desembargador Paulo Rangel, da
3ª Câmara Criminal, alegara que a norma implicaria “grave violação à liberdade
de locomoção”.
A argumentação incorre em falácia. Não se
trata da liberdade de ir e vir, mas do direito a frequentar estabelecimentos
privados submetidos a regulamentos sanitários e de segurança ou a participar de
eventos que dependem de autorização do poder público.
Os decretos não obrigam ninguém a tomar
vacina, só a apresentar documento provando que o cliente satisfaz condições
para entrar no local. Assim como assume o risco de contrair a Covid-19 por não
se imunizar, o negacionista tem o ônus de ver o convívio social restringido
para não pôr sob ameaça a saúde alheia.
Nunca soou tão justo o lugar comum segundo
o qual a liberdade de um vai até o ponto em que começa o direito do outro.
Autoritário é querer impor a própria irresponsabilidade a quem faz o certo em
favor do bem-estar coletivo.
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