sábado, 2 de outubro de 2021

O Que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

 

EDITORIAIS

As pedaladas de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Em manobra vergonhosa, Congresso autorizou uso de “propostas legislativas em tramitação” como fonte de compensação para criação ou aumento de despesas

Com as pedaladas fiscais, Dilma Rousseff descumpriu a lei orçamentária e, em conformidade com as disposições da Constituição e da Lei 1.079/50, foi condenada por crime de responsabilidade, o que lhe acarretou a perda do mandato. O processo de impeachment de Dilma Rousseff foi uma vigorosa recordação da relevância, para um Estado Democrático de Direito, do cumprimento das leis relativas ao uso do dinheiro público. Diante da burla petista das leis fiscais, as instituições reagiram, com destaque para a atuação responsável do Congresso.

O atual governo prometia ser radicalmente antipetista. No entanto, observa-se agora o mesmo desleixo com a responsabilidade fiscal que se viu nos tempos do PT no Palácio do Planalto, com a agravante de que Jair Bolsonaro vem cooptando as instituições, em especial, o Congresso, para o desmonte das leis fiscais. O presidente Bolsonaro tenta assegurar a impunidade de seus atos, mas os efeitos da irresponsabilidade fiscal continuam recaindo sobre a população: inflação, desemprego e retração dos investimentos, entre outros.

No dia 27 de setembro, em célere votação – Câmara e Senado apreciaram o tema no mesmo dia –, o Congresso aprovou o Projeto de Lei (PL) 12/2021, de autoria do Executivo, que altera a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021. Em manobra vergonhosa, que mina um dos pilares da organização fiscal do Estado, autorizou-se o uso de “propostas legislativas em tramitação” como fonte de compensação para criação ou aumento de despesa obrigatória para programas de transferência de renda apresentados pelo Poder Executivo federal.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, Lei Complementar 101/2000) proíbe a criação de despesas permanentes no Orçamento sem a previsão das receitas correspondentes. É uma regra básica para o equilíbrio das contas públicas: antes de gerar novos gastos é preciso indicar quais os recursos que vão bancar esses gastos.

O PL 12/2021 burla a LRF, estabelecendo uma exceção para o Executivo federal. Ao propor novos gastos, o Palácio do Planalto não precisa mais indicar receitas reais, que existam de fato. Basta assinalar possíveis receitas oriundas de “proposições legislativas em tramitação”.

Em vez de cumprir o seu dever e buscar fontes reais de financiamento para o programa Auxílio Brasil, o governo federal propôs para si uma exceção na legislação orçamentária. Quer autorização para criar gastos sem indicar receitas. Como o nome indica, “proposições legislativas em tramitação” ainda não foram aprovadas, ou seja, eventuais receitas provenientes desses projetos ainda não existem no mundo dos fatos. O Congresso não poderia ter aprovado tal artifício contábil.

Infelizmente, o ardil do PL 12/2021 não é caso isolado. O governo Bolsonaro vem acumulando medidas que não apenas enfraquecem a responsabilidade fiscal, mas recordam as piores práticas do passado – de um poder público que, ignorando seus deveres e obrigações, atende apenas aos interesses do governante de plantão. Veja-se o imbróglio dos precatórios. O governo Bolsonaro propõe soluções equivocadas que partem de diagnósticos igualmente equivocados.

A liquidação dos precatórios não é uma opção do poder público. O precatório corresponde a uma obrigação já atrasada, reconhecida pela Justiça e transitada em julgado. Nesse caso, o credor foi prejudicado e precisou ir à Justiça para conseguir a reafirmação de seu direito. Qualquer iniciativa para negar ou contornar esse direito é tentativa de calote. 

Como se sabe, a equipe econômica quer fixar um limite anual para a liquidação dos precatórios, com base nos valores de 2016. Para piorar, o governo propõe que uma parte do pagamento dos precatórios não seja incluída no cálculo do teto dos gastos. Ou seja, quer pagar pouco (ou mesmo não pagar) a quem deve, mas deseja manter margem para outros gastos.

Já está claro que o presidente Jair Bolsonaro, assim como os petistas antes dele, não tem nenhum compromisso com a responsabilidade fiscal. Para aproximar-se de seu objetivo eleitoral, vale até pedalar, com rodinhas instaladas pelo Centrão.

Déficit de governo

O Estado de S. Paulo

Dívida pública vem sendo contida, mas é bem maior que a de outros emergentes

Inflação, dólar alto e alguma reação econômica estão melhorando a situação dos cofres públicos. Preços em alta e câmbio depreciado vêm ajudando a engordar a receita. Com maior arrecadação e menor despesa com a pandemia, o governo central acumulou neste ano, até agosto, um déficit primário de R$ 83,08 bilhões, equivalente a 1,47% do Produto Interno Bruto (PIB). Foi um resultado muito melhor que o do ano passado, quando o buraco, no mesmo período, correspondeu a 12,52% do valor final dos bens e serviços produzidos no País. Mas o filme fica bem menos bonito quando a comparação é feita com os primeiros oito meses de 2019, ano anterior ao surto de covid. Naquele período, início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, o saldo negativo do poder central chegou a 0,87% do PIB. O resultado primário é calculado sem as obrigações da dívida pública. Os dados são do Banco Central (BC).

Desempenho melhor têm apresentado os governos estaduais e municipais, com superávit de R$ 81,69 bilhões nas contas primárias. Quando se incluem nas contas esses governos e a maior parte das estatais (sem Petrobras e Eletrobras), encontra-se um pequeno resultado positivo, de R$ 1,24 bilhão, ou 0,02% do PIB. Somados os juros vencidos, chega-se ao balanço geral do setor público, um déficit de R$ 235,77 bilhões em oito meses, ou 4,17% do PIB acumulado no ano, R$ 5,65 trilhões pelos cálculos do BC.

A Previdência, mais uma vez, aparece com destaque negativo na formação das contas públicas. Entre janeiro e agosto o INSS teve um déficit de R$ 210,43 bilhões, muito mais que suficiente para engolir o superávit primário de R$ 127,69 bilhões acumulado no período pelo Tesouro Nacional. Os efeitos da reforma previdenciária poderão ser mais sensíveis dentro de alguns anos, mas o sistema ainda pressionará fortemente as finanças federais.

Conter a evolução da dívida pública deve ser um dos objetivos centrais da política fiscal. Antes da pandemia, a equipe econômica incluiu entre suas metas a manutenção dessa dívida no limite de 80% do PIB. A covid atrapalhou também esse plano. O setor público foi obrigado a gastar muito mais que o planejado e a buscar mais financiamentos. Em dezembro, a dívida bruta do governo geral, formado pelos três níveis da administração, equivaleu a 88,8% do PIB.

A proporção diminuiu nos meses seguintes e, pelos cálculos do BC, chegou em agosto a 82,7%. A melhora é indiscutível, mas a situação do Brasil, nesse quesito, é muito pior que a da maior parte dos países de renda média. Para esse conjunto, a dívida bruta do governo geral corresponde, em média, a cerca de 65% do PIB. Além disso, os juros pagos pelos governos desses países são geralmente menores que aqueles cobrados do setor público brasileiro. Esses pontos – dívida mais alta e mais cara – são lembrados, de novo, no Sumário Executivo das contas de agosto divulgado na terça-feira pelo Tesouro.

Ao lembrar esses dados, a chefia do Tesouro reafirma a importância do respeito ao teto de gastos e da preservação da disciplina fiscal. O papel mais importante do teto, segundo essa nota, é evitar que ganhos de arrecadação se traduzam em gastos.

O tom otimista desse Sumário Executivo destoa do cenário político. O presidente da República insiste em recriar com sua marca o programa Bolsa Família, com pagamentos maiores e mais beneficiários, mesmo sem uma fonte segura de receita para o gasto adicional. Além disso, disciplina fiscal e bom uso de recursos são assuntos esquecidos, normalmente, nos acertos entre e o presidente Jair Bolsonaro e o Centrão. A gastança promovida com base no orçamento paralelo é um componente desse jogo.

A insegurança fiscal, agravada pelo uso eleitoreiro das finanças públicas, resulta na elevação dos juros futuros e do dólar. Os desdobramentos são mais inflação, risco maior para o Tesouro, retração dos financiadores e investidores e menor crescimento. Por trás dos desafios fiscais brasileiros, nesta fase, estão os déficits de seriedade e de competência, sintetizados num enorme déficit de governo.

Também a recuperação é desigual

O Estado de S. Paulo

Retomada nos países menos desenvolvidos é difícil, mas é desafio para outros também

A pandemia parece ter estabelecido uma lógica perversa na superação, pelos países, dos males que ela provocou. Aqueles que menos podem e mais sofrem são os que sofrerão por mais tempo.

Não há, por notórias diferenças entre os países quanto à sua evolução econômica, social e política, bem como à capacidade de resposta de suas instituições a emergências e a situações inesperadas, uma relação linear entre grau de desenvolvimento e tempo de recuperação dos malefícios da covid-19. Mas, se submetidos a governos pouco eficazes ou irresponsáveis, com baixa capacidade para enfrentar problemas, países que ostentam indicadores econômicos e sociais melhores do que os dos menos desenvolvidos terão dificuldades semelhantes para retomar o desenvolvimento.

O que o relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) sobre a situação dos países menos desenvolvidos no mundo pós-covid mostra é que, mais desafiadora para esses países, a recuperação exigirá respostas adequadas de todos os demais. Embora seus indicadores o deixem numa situação muito mais confortável do que a dos cerca de 50 países listados pela Unctad em seu estudo, o Brasil tem desafios como os apontados no relatório.

Segundo o organismo vinculado à ONU, o estímulo ao desenvolvimento da capacidade produtiva é a única esperança para os países menos desenvolvidos, pois só por meio da recuperação de sua estrutura de produção esses países poderão superar a crise e alcançar um desenvolvimento sustentável. A Unctad define capacidade produtiva como “os recursos produtivos, as capacidades empresariais e os vínculos de produção que, em conjunto, determinam a capacidade de um país de produzir bens e serviços e lhe permitem crescer e desenvolver-se”.

Em boa medida, para os 46 países considerados menos desenvolvidos pela Unctad, e que abrigam 1,1 bilhão de pessoas, as perspectivas são consideradas “desalentadoras”. Eles dependerão de ajuda internacional para investir no sistema de produção e na preparação de sua população para os desafios do crescimento e do progresso.

Precisarão também suprir deficiências institucionais, econômicas e sociais para alcançar uma trajetória de desenvolvimento. A maioria deles levará vários anos para recuperar o nível econômico (Produto Interno Bruto per capita) que tinha antes da pandemia.

A pandemia mudou o mundo de maneira permanente, o que exige políticas, soluções e respostas capazes de enfrentar o imenso desafio à frente, diz a secretária-geral da Unctad, Rebeca Grynspan, na apresentação do relatório.

Mas há caminhos já abertos que podem ser percorridos. Ampliar a base empresarial por meio de investimentos em capacidade produtiva será indispensável para que as economias desses países estejam preparadas para o crescimento pós-pandemia é um dos  caminhos apontados no relatório da Unctad.

Uma política industrial bem orientada também deve fazer parte de um programa consistente de recuperação da economia dos países menos desenvolvidos. Política industrial, esclareça-se, não significa necessariamente protecionismo ou vantagem tributária, como durante anos se fez no Brasil.

São desafios que se colocam também para países que almejam ocupar posições mais altas numa economia mundial cada vez mais competitiva. Esses países nem sempre souberam responder adequadamente a tais desafios que, por isso, ainda turvam seu horizonte. Mas eles têm outros.

Além de recuperar as perdas impostas pela pandemia, esses países, como o Brasil, precisam ganhar produtividade e competência produtiva para disputar espaços no mercado internacional. No caso brasileiro, o agronegócio soube responder com grande eficiência a esse desafio. Mas a indústria, que perde peso na economia nacional, está perdendo também a corrida mundial. A pandemia exacerbou os problemas de todos.

Retomada verde

Folha de S. Paulo

Empresários insistem na conversão racional de Paulo Guedes à pauta do ambiente

Há algo de admirável na persistência de empresários em tentar convencer o governo brasileiro a recuperar o protagonismo que já teve na discussão global sobre ambiente. Com a aproximação da 26ª conferência do clima em Glasgow (COP26), eles voltam à carga, mesmo sem grande chance de êxito.

Espera-se que Paulo Guedes, ministro da Economia, receba na quarta (6) representantes de um grupo de 80 companhias que lançou o manifesto “Empresários pelo Clima”. Elas integram o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável.

A lista de signatários fala por si: Alcoa, Amazon, B3, Bradesco, BRF, Carrefour, Embraer, Grupo Ultra, JBS, JSL, Klabin, Korin, Marfrig, Mastercard, Movida, Natura, Nestlé, Renner, Shell, Suzano, Vivo, Votorantim —e outras empresas e entidades seguem aderindo.

Demanda-se ali que o Planalto prepare a retomada do crescimento sob o prisma do cuidado com a base natural que sustenta a economia. Para influenciar Guedes, será apresentado estudo segundo o qual ações sustentáveis podem gerar receita adicional de US$ 123,7 bilhões (R$ 673 bilhões) ao país.

Na mira dos empresários se acha o desmatamento na Amazônia, que tanto macula a reputação brasileira. A dizimação da maior floresta tropical do mundo responde por 48% de toda a poluição agravadora do aquecimento global aqui gerada.

Levantamentos indicam que 98% da devastação ocorre ilegalmente. Com efetivo combate a delitos, o país garantiria já o cumprimento de quatro quintos das obrigações nacionais no Acordo de Paris (2015), tratado que estipula a adoção de metas mais e mais ambiciosas para conter em 1,5ºC o aquecimento da atmosfera.

O retrospecto do governo Jair Bolsonaro, entretanto, mostra-se desalentador. Por dois anos seguidos o desmate na Amazônia se deu na casa de cinco dígitos, acima de 10 mil km², revertendo avanços obtidos ao longo de uma década.

Revigora-se, sob o desmazelo federal, um processo predatório que pôs o Brasil na dianteira entre nove nações amazônicas, conforme relatório divulgado quinta-feira (30). Enquanto no bioma como um todo a média de antropização abarca 15%, aqui a floresta já teve 19% da área alterada por ação humana.

É com esse prontuário ambiental problemático que o país irá a Glasgow, apimentado com o negacionismo de Bolsonaro na matéria. Ainda que seja improvável, a exposição de seu governo à melhor ciência, à diplomacia racional e ao exemplo da elite empresarial deveria bastar para que retomasse a trajetória de nação antes vista como campeã da biodiversidade.

Passaporte ético

Folha de S. Paulo

Não se sustenta ideia de que exigir imunização em eventos implique autoritarismo

Após investir contra distanciamento social, vacinas e máscaras, agora hostes bolsonaristas elegem como alvo passaportes de imunização contra a pandemia.

Centenas de municípios brasileiros e vários governos do exterior passaram a exigir o documento como precondição de acesso a locais de alta concentração de público. O rol varia, mas é comum a inclusão de shows, eventos esportivos, congressos, bares e restaurantes.

Argumentos sanitários a favor da medida são sólidos. De um lado, havendo somente vacinados no recinto, o risco de contaminação mútua cai significativamente. De outro, a exigência atua como forte incentivo para que mais gente se imunize, o que dificulta a transmissão comunitária.

As dificuldades se amplificam de modo exponencial, calcadas numa noção distorcida de liberalismo, quando convicções infundadas de particulares invadem a esfera de poderes constituídos, como o Poder Judiciário.

Assim se deu com um desembargador fluminense que exorbitou da função ao suspender decretos municipais impondo o passaporte.

O Supremo Tribunal Federal em boa hora reverteu a decisão. Tais dispositivos se ancoram na lei 13.979/20, sobre medidas contra a pandemia, e no entendimento do STF sobre a autonomia de prefeitos e governadores para adotá-las.

Ainda que legalmente amparado e promovedor da saúde pública, o passaporte suscita alguma dúvida, em parte do público, no que respeita à liberdade individual. O próprio desembargador Paulo Rangel, da 3ª Câmara Criminal, alegara que a norma implicaria “grave violação à liberdade de locomoção”.

A argumentação incorre em falácia. Não se trata da liberdade de ir e vir, mas do direito a frequentar estabelecimentos privados submetidos a regulamentos sanitários e de segurança ou a participar de eventos que dependem de autorização do poder público.

Os decretos não obrigam ninguém a tomar vacina, só a apresentar documento provando que o cliente satisfaz condições para entrar no local. Assim como assume o risco de contrair a Covid-19 por não se imunizar, o negacionista tem o ônus de ver o convívio social restringido para não pôr sob ameaça a saúde alheia.

Nunca soou tão justo o lugar comum segundo o qual a liberdade de um vai até o ponto em que começa o direito do outro. Autoritário é querer impor a própria irresponsabilidade a quem faz o certo em favor do bem-estar coletivo.

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