O Globo
Quem ainda permanece perplexo com a
sequência de atrocidades que ocorreram com clientes da empresa Prevent Senior,
atravessadas por requintes na negociação de óbitos, só encontrará explicações
plausíveis na ficção. Uma interpretação racional sobre a obtenção de retornos
financeiros, transmutando vivos em mortos, requer auxílio da imaginação. É
preciso adentrar recônditos das transgressões autorizadas, consentidas, pelas
instituições que deveriam ter impedido tamanha barbaridade.
A primeira barreira rompida foi a permissão
para a entrada no mercado de pré-pagamento de uma empresa para idosos. O
caráter mutual, atuarial, essencial para a sustentabilidade de seguros, foi
abandonado em função da avidez para captar pessoas expulsas de planos de saúde
tradicionais. Havia um mercado a explorar mediante a fixação de metade dos
preços para a faixa etária acima de 60 anos. Para escavar um solo perigoso,
doenças frequentes e altos custos assistenciais se socorreram de premissas
inconsistentes.
Organizaram um modelo de negócio baseado em controle de doenças crônicas (prevalentes entre idosos) e cuidados paliativos realizados em hospitais e num corpo de médicos próprio ou estreitamente vinculado à empresa. Verticalização e controle de custos. Duas pontas de um processo que prometia prolongar a vida com qualidade. Quanto mais anos vividos, mais pagamentos de mensalidades.
Um suposto jogo de ganha-ganha que passou a
ser considerado exemplar para a comercialização ampliada de planos com menor
preço e restrição de coberturas. O segundo degrau para a transposição de
limiares éticos ocorreu pela impregnação do ideário do controle em práticas
médicas que exigem conjugação de ciência com autonomia. Ao contrário do que se
gritou aos ventos, os médicos da Prevent Senior não tiveram autonomia. Foram
convencidos e coagidos a seguir protocolos e rotinas que já tinham sido há
muito abandonados por centros assistenciais de excelência.
Um profissional de saúde remunerado por
entregar resultados contábeis, instado a não brigar pelos pacientes, em função
de acepções incorretas sobre a morte inevitável, está trocando o diploma de
médico pelo de agente autorizado a encurtar vidas humanas. Somos mortais, mas
ninguém está autorizado a abreviar nosso destino pela desistência de recomendar
procedimentos como internações prolongadas e hemodiálises, considerados caros.
Uma morte digna consequente a um atendimento sem intervenções desnecessárias é
completamente diferente daquela consequente a um juízo de valor sobre quanto
alguém deve viver.
No rastro do sucesso, a empresa cruzou o
terceiro limite do padrão de conduta para atuar na saúde. O entusiasmo e a
proximidade com o atual presidente da República foram simultâneos à expansão
geográfica e aos anúncios sobre a diversificação de atividades, tais como a
construção de uma cidade sênior com shoppings, clubes e restaurantes. A banda
de rock dos proprietários, embora de péssimo padrão artístico, e o engajamento
ativo no movimento pró-cloroquina complementaram a aura de ousadia. Um
milímetro abaixo da superfície da propaganda enganosa, predominavam a fraude e
a má qualidade e insegurança no atendimento aos pacientes.
Tchitchikov, personagem de Gógol, foi criado por um pai que o aconselhava a agradar sempre aos superiores e que lhe lembrava que nada na vida é mais importante que o dinheiro. O protagonista de “Almas mortas” compra e hipoteca registros de camponeses mortos, um comércio repugnante, mas menos lesivo que a sentença “óbito é alta”. O final do livro não é bem definido. Com a realidade se revelando mais incrível que a ficção, talvez consigamos desarmar as armadilhas da especulação com saúde.
*Médica e professora da UFRJ
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