terça-feira, 23 de novembro de 2021

O que a mídia pensa - Editoriais /Opiniões

EDITORIAIS

Fracasso das prévias do PSDB é trágico para a democracia

O Globo

É difícil encontrar palavras publicáveis para descrever o que ocorreu neste domingo nas prévias do PSDB. Papelão, vergonha ou incompetência são termos fracos, dados a relevância da iniciativa para a democracia brasileira e o papel de protagonista que o PSDB já teve na história recente. O fracasso traduz de modo trágico uma das maiores mazelas do Brasil: a distância entre as exigências de um mundo e de uma economia a cada dia mais dependentes de conhecimento técnico e a ignorância dos líderes que tomam decisões sobre temas essenciais para o êxito de suas empreitadas.

Um partido que fala em políticas públicas baseadas em evidências, que tenta fugir a rótulos ideológicos defendendo o diálogo, que quer ser a via do meio entre os extremos, que tem vínculos históricos com o meio intelectual e acadêmico e que deveria, por isso, estar na vanguarda, esse mesmo partido se revela incapaz de cumprir o item mais básico da atividade partidária: uma votação para resolver sem sobressalto a disputa interna. Que moral resta agora para reclamar de alquimias econômicas do PT ou do desprezo pela ciência e pelo conhecimento no governo Bolsonaro?

É preciso entender que não existe dificuldade técnica nenhuma em desenvolver um sistema de apuração de votos confiável, robusto e auditável. Uma eleição em que algo como 45 mil votantes têm de escolher entre três alternativas é, do ponto de vista computacional, um problema trivial, tamanha a capacidade de processamento e transmissão de dados disponível hoje.

Mais que isso, há diversos sistemas no mercado capazes de desempenhar a tarefa, muitos deles gratuitos, de código aberto e auditável por programadores. Várias universidades e institutos de pesquisa brasileiros usam tais sistemas em suas eleições internas, sem que haja notícia de problemas maiores. Havia, enfim, a alternativa mais óbvia, que, sabe-se lá por que, foi desprezada: usar as urnas eletrônicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cuja simplicidade garante há 25 anos eleições limpas e sem registro de fraude no país.

Em vez disso, os tomadores de decisão no PSDB caíram num engodo clássico no mundo digital, encantados por uma solução técnica na superfície mais avançada, mas na realidade não submetida aos testes necessários. Ao longo das últimas semanas, não faltou aviso de que era temerário confiar nela. Foram todos desdenhados, no clima tenso que tomou conta da disputa.

Os efeitos serão sentidos primeiro no embate que fratura há tempos um partido outrora indispensável à cena política brasileira, dificultando ainda mais a união interna — condição sine qua non para o PSDB assumir a liderança entre as candidaturas alternativas a Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro e ter alguma chance de se recuperar da decadência. Mas não só. Também, e sobretudo, os tucanos deixarão de dar um exemplo positivo que outros partidos poderiam seguir, popularizando no Brasil a prática democrática das eleições internas para escolher candidatos à Presidência.

A melhor notícia para a democracia brasileira teriam sido prévias bem-sucedidas, capazes de incentivar outros partidos a adotar o modelo consagrado noutros países, por tornar mais transparente a escolha dos candidatos. Pois foi exatamente o contrário do que aconteceu.

Chile e Venezuela revelam nas urnas o mal-estar democrático do continente

O Globo

Chilenos e venezuelanos foram às urnas neste domingo em eleições que terão impacto na saúde da democracia na América do Sul. Nos dois países, os eleitores foram chamados a escolher representantes, mas o Chile é uma democracia; a Venezuela, não. O caso chileno, o mais relevante por envolver a escolha de presidente, foi marcado pela alta abstenção e pela disputa entre José Antonio Kast, da direita radical, e Gabriel Boric, da esquerda radical. O segundo turno acontecerá em 19 de dezembro. O resultado é mais uma evidência da desilusão dos chilenos com a classe política e da polarização que flagelam o país.

A lista das explicações inclui o descontentamento com a desigualdade crescente, o caráter quase dinástico de elites políticas e empresariais e regras eleitorais que incentivaram a fragmentação. É possível que a explicação mais próxima da realidade leve em conta todos esses e outros fatores. As forças políticas tradicionais e moderadas foram fragorosamente derrotadas. O Chile vive sua era dos extremos.

A polarização não está programada em nosso cérebro, nem estamos condenados a agir como se vivêssemos em tribos, mas os “empreendedores da polarização” se beneficiam da fragmentação social. Kast, como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, faz isso com maestria. Apologista da política da “mano dura”, louva os tempos de Augusto Pinochet. Caso vença, o maior risco são conflitos entre as forças de segurança e os jovens que tomaram as ruas nos últimos anos. É incerto como será sua relação com a Constituinte, onde a esquerda predomina.

Boric está no campo democrático, mas não tem experiência na vida pública, tem o Partido Comunista em sua base de apoio, planeja elevar a carga tributária e ampliar a participação do Estado na economia. Será preciso acompanhar a movimentação dos partidos tradicionais. Se apoiarem um dos dois e conseguirem influenciar os planos de governo, é possível que a radicalização perca um pouco da força. Do contrário, o retrocesso será inevitável.

Claro que o Chile continuará como exemplo positivo perto do que acontece na Venezuela, onde a eleição foi para a comunidade internacional ver — e os observadores europeus até o momento nada viram de errado. Mesmo que o resultado refletisse o sentimento do eleitor, o país continuaria a atravessar uma depressão duas vezes mais profunda que a americana nos anos 1930. É um desvario achar que os responsáveis pela tragédia poderiam se manter no poder com eleições limpas.

Preocupado com a investigação do Tribunal Penal Internacional, Nicolás Maduro tentou dar um ar de normalidade, incentivando a volta de uma oposição em frangalhos. A eleição confirmou o que todos sabiam antes de serem abertas as urnas. O chavismo foi o vencedor. Não parece haver boas notícias para a democracia no continente.

Vale persistir

Folha de S. Paulo

Fiasco nas prévias do PSDB não deveria demover siglas de ampliar o instrumento

Em episódio anedótico de suas dificuldades para recuperar unidade interna e protagonismo na cena nacional, o PSDB não conseguiu levar a cabo no domingo (21) as prévias para a escolha de seu candidato à Presidência da República.

Após meses de discussões de regras, que ora pareciam favorecer um competidor, ora outro, os tucanos enfim deveriam apontar o nome a ser referendado em convenção no próximo ano.

Foi uma trapalhada. O aplicativo contratado pelo partido para que filiados votassem a distância não suportou nem uma hora de uso. À mazela tecnológica somou-se o bate-boca político, em que os dois favoritos da disputa, os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), trocaram acusações e se desentenderam quanto ao que fazer.

Será precipitado, contudo, desqualificar o processo por sua falha. Ao contrário, as prévias se mostram instrumento valioso para a democratização e para a transparência do debate eleitoral.

Como lembrou o terceiro e figurativo rival na disputa tucana, Arthur Virgílio, ex-prefeito de Manaus, é preciso começar por algum ponto para chegar ao nível das primárias americanas.

As duas prévias presidenciais de relevo anteriores, do PT em 2002 e do PMDB em 2006, tiveram respectivamente o caráter de um referendo e de uma farsa. No caso dos tucanos, o processo incluiu debates e, para surpresa do grupo do líder paulista, o crescimento do gaúcho como um rival viável.

Na teoria, a adoção do polêmico app de voto remoto também vai na direção correta de ampliar o acesso dos filiados da sigla ao certame.

O problema, como está evidente, foi a falta de confiabilidade do programa usado. Como dizia relatório de segurança feito por empresa privada sobre o software, seria necessário ter um plano B à mão para evitar toda a confusão.

Aí a conta fica para o açodamento das campanhas das prévias, uma queda de braço que ao fim contribuiu para o triste espetáculo.

Como procedimento, contudo, as prévias são um avanço ante o tradicional conchavo de meia dúzia de caciques —quando não menos.

Se elas expõem um partido trincado, a culpa é da tibieza da sigla, não da prévia. De quebra, sua sistematização também poderia ter o condão de aprofundar o contato entre agremiação e filiados.

Na forma atual, as listas de filiação são ficcionais, com números cumulativos não depurados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Assim, não é surpresa que dos supostos 1,3 milhão de tucanos, apenas 45 mil tenham se credenciado para votar.

O desfecho da discussão no PSDB ainda está em aberto, mas ele não deveria demover outros partidos de buscar o mesmo caminho.

Injustiça virtual

Folha de S. Paulo

Audiências de custódia a distância desvirtuam metas e não atenuam encarceramento

Criada em 2015 para garantir os direitos de presos, inclusive os de não sofrer tortura e não ser submetido à prisão ilegal, a audiência de custódia consiste em apresentar a pessoa encarcerada ao juiz em no máximo 24 horas desde o flagrante ou o mandado.

Pela lei, o magistrado pode manter a prisão, convertê-la em preventiva, optar por medidas cautelares ou mesmo pela libertação.

Na prática, as alternativas têm sido pouco utilizadas: dados sobre 2.774 casos ocorridos de abril a dezembro de 2018 em 13 cidades de nove estados do país apontam que menos de 1% das audiências resulta em que o acusado possa responder ao processo em liberdade sem cumprir medidas cautelares.

Tampouco o ambiente em que tais procedimentos ocorrem permite que um dos seus principais objetivos seja realizado —o relato de eventuais maus-tratos e tortura.

Conforme relatório elaborado em 2019 pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), em parceria com o Conselho Nacional de Justiça, em quase todos os casos acompanhados (96%) havia agentes de segurança na sala, além do uso indiscriminado de algemas.

É nesse contexto que se inserem as audiências de custódia virtuais, realizadas durante a pandemia, conforme permissão do ministro Luiz Fux, presidente do CNJ.

Criticadas por especialistas por não permitirem a avaliação presencial das condições físicas da pessoa presa, elas agravaram as violações já praticadas antes da Covid-19.

O número de procedimentos caiu de 222 mil em 2019 para 66 mil no ano passado. A maioria não segue os protocolos estabelecidos pelo CNJ, segundo levantamento do próprio conselho em outubro.

Em mais da metade (52,9%) dos estabelecimentos onde se realizam audiências em 25 capitais, não há câmeras que permitem que se veja toda a sala, e um percentual idêntico dos locais não conta com câmeras externas —duas exigências para garantia de privacidade.

Para serem eficazes, esses encontros não podem ser meras formalidades. É urgente que, à medida que a situação pandêmica dê indicativos de melhora, o Judiciário os tome presenciais, adotando regulação mais estrita no sentido de assegurar melhores condições.

Sem essas e outras garantias legais, o sistema penitenciário brasileiro —já sobrecarregado, brutal e injusto— perpetuará suas distorções, mesmo diante de instrumentos que deveriam reduzi-las.

Lula em sua melhor forma

O Estado de S. Paulo

Em entrevista ao ‘El País’, ex-presidente debocha dos fatos, da memória da população e do regime democrático. Até comparou Daniel Ortega a Angela Merkel

Ex-presidente debocha dos fatos e da memória da população.

Uma recente entrevista de Luiz Inácio Lula da Silva ao jornal El País confirma que o líder petista não mudou nada: continua achando que pode impor sua realidade paralela, com a pretensão de que tudo, rigorosamente tudo, deve se sujeitar a seus interesses. Sem qualquer constrangimento, debochou dos fatos, da inteligência alheia e do regime democrático. Quem julga merecer o voto de seus concidadãos não pode se esconder em um mundo imaginário, regido pela irresponsabilidade e pela mendacidade.

A título de defender a permanência ilimitada no poder de autocratas esquerdistas latino-americanos, seus amigos do peito, teve a audácia de compará-los a líderes de inquestionáveis credenciais democráticas que governaram por mais de uma década. Questionado sobre as escandalosamente fraudulentas eleições na Nicarágua, que serviram para manter o governo ditatorial de Daniel Ortega, Lula comparou o tirano, pasme o leitor, à premiê alemã, Angela Merkel: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?”, perguntou o petista – que, convicto de que o leitor é mesmo um cretino, foi além: “Por que Margaret Thatcher pôde ficar 12 anos no poder, e (Hugo) Chávez não?”.

Lula acrescentou que não pode “interferir nas decisões de um povo”, desconsiderando que o povo a que ele se refere não pôde tomar decisão nenhuma, já que as “eleições” na Nicarágua e na Venezuela são apenas cenográficas, como sabem os governos de países civilizados que contestam seus resultados.

A respeito da proibição de manifestações em Cuba, Lula não teve pudor em relativizar mais essa incontestável violação de direitos humanos, tratando como coisa corriqueira, comum em todos os lugares. “Essas coisas não acontecem só em Cuba, mas no mundo inteiro. A polícia bate em muita gente, é violenta. (...) Precisamos parar de condenar Cuba e condenar um pouco mais o bloqueio dos Estados Unidos”, disse o líder petista.

É realmente impressionante a devoção de Lula a um regime violento e opressor. Estamos em pleno século 21, não há nenhuma dúvida sobre o caráter autoritário do Estado cubano e mesmo assim o líder petista segue em absurda subserviência. Sempre foi vergonhosa a atitude do PT em relação a Cuba; no momento atual, é estupidez negacionista em sua face mais desumana.

Como gosta de se dizer perseguido pela Justiça, Lula deveria ao menos ter alguma empatia por presos políticos de outros países; afinal, são pessoas que, em tese, estariam em situação similar à sua. Mas não. Lula não tem qualquer apreço pelos cidadãos perseguidos, por exemplo, por Daniel Ortega. “Não posso julgar o que aconteceu na Nicarágua. Eu fui preso no Brasil. Não sei o que essas pessoas fizeram. Só sei que eu não fiz nada”, disse o petista, sugerindo que os presos políticos na Nicarágua talvez tenham feito por merecer o calabouço.

Além de indiferença com os direitos humanos e de explícita simpatia por ditadores, Lula mostrou, na entrevista, ideias bem peculiares sobre o funcionamento de uma democracia. “O problema da democracia em Cuba não será resolvido instigando os opositores a criar problemas para o governo”, disse o líder petista.

A mensagem é clara. Lula não quer ver ninguém criando problema para governos que são seus amigos. Nesses casos, cabe à oposição apenas colaborar com o governo. E se não houver essa gentil parceria, os opositores perseguidos não devem esperar solidariedade de Lula ou do PT. Afinal, não fizeram a sua parte.

Tal proposta, por si só, avilta a ideia de democracia e pluralidade. Feita por Lula – que sabotou todos os governos a quem fez oposição – é pura desfaçatez.

Na entrevista, Lula defende Hugo Chávez, Daniel Ortega e a ditadura cubana, mas, ora vejam, não se encontra uma mínima defesa de Dilma Rousseff. Está claro que o líder petista não deseja falar daquela que lhe sucedeu no Palácio do Planalto. Compreende-se: é um tema difícil, que remete à brutal crise social e econômica que o PT legou ao País. Melhor falar do bloqueio americano a Cuba.

Brasil, muito longe da liderança

O Estado de S. Paulo

O Brasil se destaca internacionalmente por baixo crescimento econômico, inflação acelerada e desemprego muito alto

Maior economia da América Latina, o Brasil se destaca no cenário econômico mundial, neste momento, principalmente por fatos negativos, como alto desemprego, preços em disparada, desordem das contas públicas, baixo potencial de crescimento e pela destruição ambiental. O discurso oficial aponta o País como um dos mais dinâmicos, mas seu desempenho em 2022 será um dos piores, segundo projeções conhecidas no mercado internacional. Entre 12 grandes emergentes, o Brasil ficará em último lugar em expansão, de acordo com estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e de 5 grandes consultorias e instituições financeiras citadas pelo Estadão/broadcast.

Renda familiar, consumo e oportunidades de emprego devem ser temas muito importantes na campanha eleitoral do próximo ano. O presidente Jair Bolsonaro tentará pelo menos alguma política de transferência de renda, mas isso dependerá de arranjos orçamentários ainda incertos. A equipe econômica, chefiada pelo ministro Paulo Guedes, tentará atender à demanda presidencial, mesmo encenando, como tem feito com frequência, algum compromisso com a gestão responsável das contas públicas. De toda forma, o País continua carente de uma política econômica de verdade, com rumos, etapas e meios definidos com alguma clareza. Isso nunca existiu nestes quase três anos de mandato presidencial.

As projeções sinistras para 2022 são um desdobramento dos fracassos acumulados pela administração federal desde 2019. As estimativas de crescimento das cinco grandes instituições – Bradesco, Goldman Sachs, Capital Economics, Fitch e Nomura – para o próximo ano ficaram, segundo informou o

Estado, entre 0,8% e 1,9%. O Fundo Monetário Internacional anunciou em outubro uma expectativa de 1,5% para o Brasil e de 5,1%, em média, para os emergentes. Mas alguns bancos e consultorias já divulgaram previsões negativas ou pouco acima de zero. No mercado, a mediana das projeções deste ano chegou a 4,80% e a de 2022 diminuiu em uma semana de 0,93% para 0,70%, segundo a pesquisa Focus publicada nesta segunda-feira pelo Banco Central (BC).

Também têm piorado as expectativas de inflação. Já se projetam taxas de 10,12% para este ano, 4,96% para o próximo, 3,42% para 2023 e 3,10% para 2024, de acordo com a mesma pesquisa. Todos esses números estão acima das metas oficiais fixadas para esses anos. Maiores aumentos de preços devem ser acompanhados de novas altas da taxa básica de juros, ferramenta usada pelo BC na política anti-inflacionária. As estimativas apontam, para os quatro anos, juros de 9,25%, 11,25%, 7,75% e 7%.

Ao baixo potencial de crescimento serão, portanto, somados, de acordo com as projeções, dois fatores negativos – a corrosão da renda familiar pelos preços em rápida ascensão e o entrave representado pelo crédito mais caro.

Tudo isso combina com perspectivas muito ruins para o emprego. O desemprego no Brasil, 13,2% da força de trabalho no trimestre móvel encerrado em agosto, foi o quarto maior num conjunto de 44 países desenvolvidos e emergentes, segundo levantamento da agência de classificação de risco Austin Rating noticiado pelo G1. Nos 38 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a taxa média de desocupação recuou de 6% em agosto para 5,8% em setembro, de acordo com informe da instituição publicado neste mês.

O Brasil iniciou e encerrou 2020, primeira fase da pandemia de covid-19, com desemprego superior às médias da OCDE e do Grupo dos 20 (G-20), formado pelas 19 maiores economias do mundo e pela União Europeia.

A escassa geração de empregos no Brasil tem ocorrido principalmente no mercado informal, com baixo rendimento para os trabalhadores. Esses dados são parte de uma retomada econômica frágil, com recuo já confirmado na atividade no segundo trimestre e sinais de um desempenho negativo no terceiro. Pode ter ocorrido, portanto, mais uma recessão, caracterizada por dois trimestres consecutivos de queda. Mas o ministro da Economia insiste em falar de um Brasil na liderança do crescimento.

Auxílio reduziu desigualdade e agora está em encruzilhada

Valor Econômico

A questão do combate à pobreza estrutural é complexa e não deveria ser limitada por interesses eleitoreiros

Enquanto o governo se debate para abrir espaço no Orçamento para financiar o Auxílio Brasil, que substituiu o Bolsa Família a partir deste mês, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acaba de divulgar informações que jogam luz sobre a importância da concessão de benefícios sociais em uma sociedade desigual como a brasileira, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus. A concessão do Auxílio Emergencial, distribuído para 66 milhões de pessoas, contribuiu não só para apoiar os milhões que perderam o emprego com a pandemia, mas também reduziu a pobreza e a desigualdade no país.

A pesquisa “Pnad Contínua 2020 - Rendimento de Todas as Fontes” mostrou o impacto da pandemia na redução da renda da população e a importância do Auxílio. O número de pessoas com rendimento de trabalho caiu de 92,8 milhões em 2019 para 84,7 milhões em 2020, ou de 44,3% para 40,1% da população. Perderam o trabalho 8,1 milhões de pessoas, entre as quais os mais vulneráveis, como os informais, sem carteira assinada, e os que trabalhavam no setor de serviços.

Houve aumento do peso do “rendimento de outras fontes”, que foi registrado por 59,7 milhões de pessoas, ou 28,3% da população, acima dos 49,5 milhões, ou 23,6%, de 2019. O aumento mais significativo foi do grupo que sobreviveu com “outros rendimentos”, entre os quais o Auxílio Emergencial, que praticamente dobrou, de 16,4 milhões para 30,2 milhões de pessoas. Pela primeira vez, desde 2012, o grupo dos “outros rendimentos” superou o das pessoas que receberam aposentadoria e pensão (26,2 milhões ou 12,4%).

Na média, porém, todos ficaram mais pobres. O rendimento médio mensal real domiciliar per capita caiu 4,3% em 2020 na comparação com 2019, para R$ 1.349. Mas, nos domicílios que receberam benefícios sociais, o rendimento per capita aumentou 12,2% no período, passando de R$ 688 para R$ 772. Em consequência, houve redução da desigualdade. Em 2020, o 1% das pessoas melhor remuneradas recebeu 34,9 vezes o que receberam os 50% com os menores rendimentos. Em 2019, esta razão era de 40 vezes, maior valor da série. Esta relação entre o rendimento médio dos mais pobres e os mais ricos mostrou trajetória de redução de 2012 (38,3 vezes) até 2014 (33,5 vezes). A partir de então voltou a crescer até alcançar o pico da série, em 2019.

O índice de Gini, que mede a concentração de renda e vai de zero a 1 - quanto mais perto de zero menor é a concentração de renda - caiu de 0,506 em 2019 para 0,500 em 2020, o que significa dizer que a desigualdade de renda diminuiu, levando em conta o rendimento médio mensal real habitualmente recebido de todos os trabalhos. Segundo o IBGE, entre 2012 e 2015, o índice de Gini diminuiu de 0,504 a 0,499, e para 0,498 em 2016, patamar em que se manteve em 2017. Mas subiu a 0,506 em 2018 e em 2019, aprofundando a desigualdade.

Não é preciso esperar o próximo levantamento do IBGE para se concluir que esse quadro mudou radicalmente. O Auxílio Emergencial deixou de ser pago no fim de 2020 e só voltou em abril, em valores mais baixos e com um universo bem menor de beneficiados; e o Bolsa Família terminou neste mês. Em seu lugar, começou a ser pago o Auxílio Brasil com benefício médio 18% acima do Bolsa Família e a promessa de chegar a R$ 400, assim que o governo viabilizar seu financiamento. Ele só está garantido até o fim de 2022, ou seja, até as próximas eleições, apesar de o mercado de trabalho seguir muito fraco, com uma taxa de desemprego acima de 13%.

A mudança de regras já causou comoção nesta virada de mês, provocando filas de pessoas nas agências do governo em busca de informação. Calcula-se que 22 milhões de pessoas vão deixar de receber o benefício. O caráter temporário do Auxílio Brasil aumenta a insegurança da população vulnerável. A vinculação da discussão de sua fonte de financiamento a temas controversos como o calote dos precatórios e as verbas para os deputados federais torna o quadro mais nebuloso e instável.

Fica de lado a discussão sobre os novos mecanismos de funcionamento do benefício, que deveriam incluir propostas para combater a pobreza estrutural sem perpetuar a dependência do auxílio. Além disso, é necessário garantir a sustentabilidade do financiamento do auxílio uma vez que a perspectiva de baixo crescimento econômico do país torna necessária a manutenção do benefício. A questão é complexa e não deveria ser limitada por interesses eleitoreiros.

 

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