Correio Braziliense
O presidente Piñera e
ex-presidentes Lagos, Frei e Bachelet foram derrotados. O Chile oscila entre um
governo parecido com o de Allende ou saudosista de Pinochet
Os paradigmas da esquerda latino-americana
são a Comuna de Paris (1871), a Revolução Russa (1917), a Revolução Chinesa
(1949), a Revolução Cubana (1959) e a Guerra do Vietnã (1955 a 1975). A
Revolução Inglesa (1640-1688), a Independência dos Estados Unidos (1776) e a
Revolução Francesa (1779-1789), revoluções burguesas que deram origem à
democracia representativa, não são referências para seus objetivos. A esquerda
também não estuda os contragolpes que puseram um ponto final nas revoluções.
Isso exigira um mergulho nos próprios erros. É mais fácil denunciar os
golpistas, com a narrativa do tipo “não existe derrota quando se vai à luta”.
Na América do Sul, no cenário de guerra
fria, o golpe militar que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, foi o
ponto de viragem da geopolítica continental. Entretanto, o caso mais
paradigmático foi o brutal golpe no Chile, do general Augusto Pinochet, em
1973, no qual o presidente socialista Salvador Allende se matou, em meio ao
bombardeio do Palácio La Moneda pelos militares golpistas. No rumo de um
inédito “socialismo democrático”, Allende atraia as atenções mundiais.
O golpe no Chile levou o líder comunista italiano Enrico Berlinguer a rever toda a estratégia do Partido Comunista Italiano, propondo um “compromisso histórico” com a democracia-cristã, tendo a “democracia como valor universal”. Em 1978, um acordo negociado por Berlinguer com o ex-primeiro-ministro e presidente da Democracia Cristã, Aldo Moro, poria fim à grave crise governamental. Entretanto, enfrentava oposição do Vaticano, da Máfia, dos Estados Unidos, da OTAN, da União Soviética e dos extremistas de direita e de esquerda.
Cinco dias após a conclusão do acordo, no
dia 16 de março, quando se dirigia à solenidade de posse do novo governo
confiado ao democrata-cristão Giulio Andreotti, que se opusera à aliança com os
comunistas, Moro foi sequestrado em Roma, numa ação que resultou na morte de
cinco homens de sua escolta. O grupo terrorista Brigadas Vermelhas assumiu o
sequestro e executou Moro, no dia 7 de maio.
Radicalização
A chamada Concertación (Coalizão de
Partidos pela Democracia), que governou o Chile por quatro governos, aprendeu
com a queda de Allende e se inspirou no “compromisso histórico”. Foi uma
aliança entre o “humanismo cristão” e o “humanismo laico”, que possibilitou
programas de governo exequíveis em termos econômicos e sociais, embora a
chamada “agenda identitária” fosse o pomo da discórdia entre o Partido
Socialista de Chile (PS), o Partido Democrata Cristiano de Chile (DC), o
Partido por la Democracia (PPD), o Partido Radical Social-Democrata (PRSD) e
agremiações menores.
Os democratas cristãos Patrício Aylwin
(1990-1994) e Eduardo Frei (1994-2000), o liberal Ricardo Lagos (2000-2006) e a
socialista Michele Bachelet (2006-2010) se revezaram na Presidência. Depois de
2010, se formou uma nova coalizão, a Nueva Mayoria, que incluiu partidos da
esquerda, como o Partido Comunista de Chile, a Izquierda Ciudadana e o
Movimiento Amplio Social, além dos partidos de centro-esquerda que foram parte
da Concertación. Os liberais foram excluídos. A coalizão governou o Chile entre
os anos 2014 e 2018.
Derrotada por Sebástian Piñera, pela
segunda vez (a outra foi em 2010), essa aliança foi considerada esgotada.
Entretanto, o programa liberal do novo governo não deu as respostas que a
sociedade aguardava. Um processo de impeachment e o forte movimento de oposição
obrigaram Piñera a convocar uma Constituinte, na qual a esquerda vem tendo
protagonismo. No domingo, esse protagonismo se consolidou, sob a liderança do
ex-dirigente estudantil e deputado Gabriel Boric, candidato da Frente Ampla de
Esquerda e do Partido Comunista, em confronto com o ultradireitista José
Antônio Kast, do Partido Republicano (pinochetista).
Houve um colapso do centro político. Um
terceiro candidato, Franco Parisi, fez campanha do Alabama, nos Estados Unidos.
Sem pôr os pés em Santiago, deslocou do segundo lugar Sebástian Sichel, o
candidato do presidente Piñera, e Yasna Provoste, da ex-Concertación. Os
ex-presidentes Ricardo Lagos, Eduardo Frei e Michelle Bachelet também foram
derrotados. No segundo turno, o Chile oscila entre um projeto parecido com o de
Allende e um presidente saudosista do general Pinochet, alinhado com o
presidente Jair Bolsonaro.
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