segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Paulo Fábio Dantas Neto*: Partidos e lideranças em hora difícil: como sair do beco das madalenas?

Em ambiente político gasoso, 2021 está repetindo 2017, o ano aziago em que foi preparada a tragédia de 2018, pela qual as urnas presidenciais e legislativas legitimaram, de modo inédito, um padrão de ator político aleatório, tendo em Eduardo Cunha um arquétipo.  Aquele ano pré-eleitoral, na verdade, coroou os quatro anos anteriores, durante os quais um vácuo de liderança permitiu a um político profissional como Cunha, craque no cultivo de uma coadjuvância de resultados, enfeixar em suas mãos um poder decisório abrangente que, na normalidade de uma república democrática, só é exercido, legitimamente, pelo conjunto de uma elite política, em sua pluralidade de líderes, correntes e partidos. O tão propalado controle do centrão sobre a agenda do governo não é invenção de Bolsonaro mas do vácuo que o gerou.

Tal situação não foi obra isolada de um bruxo genial do submundo da política. Resultou de ações descoordenadas, ou da pura inação, de forças políticas contaminadas por um esperto oportunismo de curto prazo e tiro curto. Crentes da enganosa sugestão, feita por inimigos da política, de que um salve-se-quem-puder rasteiro pudesse ser kit de sobrevivência na selva para alguns, abriram brechas a sabidos, ao preço de aposentarem a sabedoria política e a noção de centro como eixo agregador. Talvez o vale tudo tenha sido um kit válido só para o PT, que, em 2018, se recuperou, em parte, da devastação eleitoral nas eleições municipais de 2016 e se apresenta de novo ao país agora, montado no seu líder de massas, resgatado da prisão como opção eleitoral relevante, quiçá como uma reencarnação de Noé. Afora esse eco vivo da primeira década do século, o que se vê são escombros e um museu de novidades.

Nada disso teria ocorrido sem que essa década perdida pela política democrática houvesse feito emergir, das cavernas de uma cultura política em que a democracia é ainda um experimento novo, uma espécie sublunar de guardiães da República. Movem-se essas criaturas a partir de pedestais corporativos, tecnocraticamente situados, tendo em mente dois pontos de chegada: o centro do palco midiático e porões de operações ilegais. Assim, associam uma onisciência lunática sobre o que deve ser uma sociedade “saudável” das pessoas “de bem” a um apetite chão pelo manejo arbitrário de instituições em proveito próprio e pela manipulação de um senso comum imemorialmente avesso a políticos em geral e a partidos, em particular. Através de tentativas de desmonte da política fixam, há quase uma década, outro arquétipo, na ponta extrema àquela em que o antigo baixo clero foi guindado a função dirigente. Ao passar do bombardeio sublunar para o campo eleitoral aberto onde lutam as infantarias, a turma de Sergio Moro certamente pede outras peles e não faltam cordeiros a oferecê-las. Para a análise não se distrair com fogo de artifício, batizei esse outro padrão de conduta com o nome de Rodrigo Janot, exemplar mais “puro” do combinado de pretensão e incompetência distintivo da legião. Cunha e Janot, esses arquétipos, em princípio inimigos inconciliáveis, ao deixarem de ser personagens folclóricos ou abstrações sociológicas e assumirem lugares relevantes na política como ela é, lembram a útil reflexão de Edson Nunes (em “Gramática política do Brasil”, de 1997) sobre a “fertilização cruzada” de quatro tipos de gramática vigentes na construção do Estado brasileiro e na sua relação com a sociedade, a partir de 1930. Uma delas, tradicional, mesmo ancestral - a do clientelismo – as outras modernizantes, as do corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. Dessas três, a do universalismo de procedimentos (gramática ancorada no impersonalismo) seria a mais prevenida contra a regeneração adaptativa do clientelismo. Os abraços desse último, como coadjuvante do corporativismo e do insulamento burocrático seriam as resultantes políticas, respectivamente, dos 15 anos Vargas e dos 21 anos de autocracia militar. Já a tríplice e mais equilibrada aliança dessas três gramáticas já teria feito o período de 45 a 64 mais “virtuoso”, inclusive do ponto de vista democrático, do que seria exemplar o governo JK. Quanto ao universalismo de procedimentos, timidamente introduzido na primeira parte dos anos de Vargas, talvez por ser portador mais consistente de um “ethos” liberal, para ter sua vez de influir de modo relevante, teve de esperar até um contexto posterior ao período histórico analisado pelo livro de Nunes, quando novas circunstâncias políticas e sociais cercaram o advento da Constituição de 1988.

Uma extrapolação razoável do argumento de Nunes é pensar que a expectativa mais auspiciosa (porque mais realista) seria a de que a Carta de 88 e a política que sob ela se passou a praticar propiciassem uma fertilização mais complexa das quatro gramáticas e não a de que o universalismo instalasse o mundo virtuoso do haverá, no lugar de tudo o que houve ou estava havendo. Mais ou menos dentro dessa expectativa conduziu-se a política brasileira pelas duas décadas subsequentes, desembocando e depois se estabilizando nos marcos do chamado presidencialismo de coalizão. Sempre caberá discussão e correção sobre métodos empregados a cada iniciativa política e legislativa tomadas em ambiente complexo e plural, de conflito e negociação permanentes, sob intensa competição política e mais intensa ainda participação eleitoral. Mas é muito expressivo o legado positivo dessa experiência para o País, como mostrará qualquer inventário sério. Estabilidade da moeda com o fim da vigência e da cultura da inflação, lei de responsabilidade fiscal, códigos e estatutos legais do consumidor, do ambiente, das cidades e das metrópoles, da infância e da adolescência, do idoso, da igualdade racial e por aí vai.

A liderança dos presidentes da República sobre a agenda política do País foi uma constante e um fator de estabilidade. A cooperação legislativa também, sem que se configurasse adesão automática, ou coercitiva. O baixo clero atuava e obtinha sucesso moderado pelo protagonismo das lideranças no Parlamento e dos partidos no governo. O Judiciário já incursionava fora de marcos tradicionais, mas nada que se assemelhasse ao aval que, depois, por algum tempo, passou a dar a uma ética faxineira.

Onde perdemos essa moderação? Não me proponho discutir isso aqui, mas argumentar pela necessidade de recuperá-la; não para reinstalar o que havia, mas para balizar a invenção do que haverá. A rota da política esbarra primeiro, como tem sido fartamente apontado, no perfil dos candidatos presidenciais até aqui mais bem colocados em pesquisas. A imaginação dos leitores não precisa ser muito desafiada para que possam ter desde já uma ideia do que será o nível de agressividade imperante na conversa de surdos em que tende a se converter o debate eleitoral. Na eleição isso leva a um baixo calão e a narrativas que seriam impublicáveis em tempos mais civilizados. Já nas relações futuras entre governo e oposição a interdição de diálogos conduz a paralisia decisória e essa à perenização da crise.

Contudo, não é só nessa arena que interditos se avolumam. São mais alarmantes os desdobramentos possíveis da fluência pré-eleitoral dos dois arquétipos distópicos que ganham espaço nesses tempos imoderados. São padrões opostos de atitude política que já cooperaram antes, paralelamente, na coalizão de veto à política democrática que nos legou Bolsonaro. Ambos fazem parte da história do seu governo. Revezaram-se nele e agora aparentam disputar para chegarem ao segundo turno das eleições presidenciais, o arquétipo Cunha ainda ao lado do mito, atuando com desembaraço e agressividade inauditos e o arquétipo Janot com o projeto de renovação do mito, pela candidatura dissidente de Sérgio Moro. Digo aparentam porque, a meu juízo, apenas o segundo arquétipo fixa-se centralmente na disputa presidencial. Os Cunhas genéricos sentem o gosto de outra via expressa ao poder de que o original nunca chegou a dispor, embora quisesse. É o controle efetivo do orçamento federal pelo Legislativo, obtido, até aqui, no vácuo acumulado pela descoordenação política (Dilma), baixo empoderamento (Temer) e desinstitucionalização (Bolsonaro) que tem resultado da atuação do Poder Executivo. As eleições de 2022 representam, para segmentos do chamado Centrão, mais do que momento de renovação de mandatos (essa é motivação forte de qualquer deputado, dentro ou fora do Centrão) mas a oportunidade de tornar permanente uma condição de poder que até o momento anda é contingente. Esse é o modo objetivo pelo qual eleições para o Legislativo importam-lhes mais que a presidencial.

Estaremos longe do exagero se identificarmos essa motivação como bem mais difusa. Associada a novas regras eleitorais (novas cláusulas de barreira, proibição de coligação em eleições para deputados e consequente admissão de federações partidárias) ela coloca, na agenda de todos os partidos políticos, novo acento sobre as eleições ao Legislativo. Com a necessidade de direcionar para esse nível eleitoral cada vez mais energia articuladora e fatias mais generosas do fundo partidário, tendem a rarear, na arena da eleição presidencial, experimentos políticos ecumênicos ou marcações de posição partidária. Partidos e parlamentares chancelam gladiadores já no ringue, na expectativa de contê-los após as urnas.

O eleitor que se preocupa com o seu futuro e o do país após o momento da batalha eleitoral está sendo chamado a um exercício de prospecção. As relações entre um Congresso empoderado, formado por políticos aleatórios, em boa parte reeleitos no embalo de emendas secretas ao orçamento e um presidente vencedor de um embate entre diversas modalidades de populismo (o individualismo de milícia, o paternalismo nivelador e o guardianismo redentor) não sugere mudança nem sossego. No horizonte o cenário um é o do tensionamento das instituições para se amoldarem ao cruzamento infértil entre um presidente com pretensões a César e um congresso pródigo na provisão de alimento ao próprio umbigo.  Em resumo, a continuidade do que aí está, com Bolsonaro ou não. Quem perecerá primeiro para que essas duas situações democraticamente patológicas sobrevivam? Os recursos do Estado ou a paciência de uma população vítima de mais um estelionato eleitoral?

Um segundo cenário, dentro do horizonte possível após eleições vencidas, simultaneamente, pelos dois arquétipos (“Cunha” e “Janot”) é que um deles, ou ambos, queiram eliminar a discrepância depois da eleição. Ameaça de impeachment do Presidente ou invasão bem-sucedida do nosso Capitólio são hipóteses mais radicais cuja iminência pode levar a soluções emergenciais como parlamentarismo ou semiparlamentarismo, no primeiro caso, democracia iliberal no segundo. Isso não é futurismo. É ler mensagens de agora.

Se ficarmos nesse beco, cada qual (indivíduos e instituições) fará alguma escolha em algum momento futuro de agonia. A minha seria/será pela solução parlamentarista, por não conceber democracia com sacrifício das liberdades que a outra opção representa. Mas esse é assunto para outra coluna. Concluo a de hoje deixando na roda a provável pergunta que a vida, mais do que este texto, tem feito: como sair desse beco? Ninguém que quer sair sabe, é claro. Mas a pergunta cabe, pois, afinal, falta quase um ano. Se os fatos não iluminam uma saída, é preciso, sem deixar de levá-los em conta, colocar a imaginação política para criar outros. A política pode achar aliados onde a análise flagra obstáculos. Não é à toa que olhares entre Lula e um centro ainda sem candidato são reciprocamente perscrutadores, a um só tempo desconfiados e esperançosos. Mas a necessidade de sair do beco persistirá, seja qual for o desfecho final dessa troca de olhares.  Nada ocorrerá por gravidade. O PT já está grandinho e curtido para saber disso. Por outro lado, seus adversários de ontem já esgotaram a cota de erros que lhes foi dado cometer.

A desconfiança destrói e a esperança é pouco para produzir resultado. Criar uma confiança mínima para substituir a desconfiança e uma expectativa compartilhada para substituir a esperança de cada qual parece ser uma condição para criar uma força cívica suficiente para afastar do centro da cena os arquétipos da sub-política e da anti-política, em vez de aderir a eles. Ou seremos um país de Madalenas?

* Cientista político e professor da UFBa.

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