Tal situação não foi obra isolada de um bruxo genial do submundo da política. Resultou de ações descoordenadas, ou da pura inação, de forças políticas contaminadas por um esperto oportunismo de curto prazo e tiro curto. Crentes da enganosa sugestão, feita por inimigos da política, de que um salve-se-quem-puder rasteiro pudesse ser kit de sobrevivência na selva para alguns, abriram brechas a sabidos, ao preço de aposentarem a sabedoria política e a noção de centro como eixo agregador. Talvez o vale tudo tenha sido um kit válido só para o PT, que, em 2018, se recuperou, em parte, da devastação eleitoral nas eleições municipais de 2016 e se apresenta de novo ao país agora, montado no seu líder de massas, resgatado da prisão como opção eleitoral relevante, quiçá como uma reencarnação de Noé. Afora esse eco vivo da primeira década do século, o que se vê são escombros e um museu de novidades.
Nada
disso teria ocorrido sem que essa década perdida pela política democrática houvesse
feito emergir, das cavernas de uma cultura política em que a democracia é ainda
um experimento novo, uma espécie sublunar de guardiães da República. Movem-se essas
criaturas a partir de pedestais corporativos, tecnocraticamente situados, tendo
em mente dois pontos de chegada: o centro do palco midiático e porões de
operações ilegais. Assim, associam uma onisciência lunática sobre o que deve
ser uma sociedade “saudável” das pessoas “de bem” a um apetite chão pelo manejo
arbitrário de instituições em proveito próprio e pela manipulação de um senso
comum imemorialmente avesso a políticos em geral e a partidos, em particular. Através
de tentativas de desmonte da política fixam, há quase uma década, outro
arquétipo, na ponta extrema àquela em que o antigo baixo clero foi guindado a
função dirigente. Ao passar do bombardeio sublunar para o campo eleitoral aberto
onde lutam as infantarias, a turma de Sergio Moro certamente pede outras peles
e não faltam cordeiros a oferecê-las. Para a análise não se distrair com fogo
de artifício, batizei esse outro padrão de conduta com o nome de Rodrigo Janot,
exemplar mais “puro” do combinado de pretensão e incompetência distintivo da
legião. Cunha e Janot, esses arquétipos, em princípio inimigos inconciliáveis,
ao deixarem de ser personagens folclóricos ou abstrações sociológicas e assumirem
lugares relevantes na política como ela é, lembram a útil reflexão de Edson
Nunes (em “Gramática política do Brasil”, de 1997) sobre a “fertilização
cruzada” de quatro tipos de gramática vigentes na construção do Estado
brasileiro e na sua relação com a sociedade, a partir de 1930. Uma delas,
tradicional, mesmo ancestral - a do clientelismo – as outras modernizantes, as
do corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos.
Dessas três, a do universalismo de procedimentos (gramática ancorada no impersonalismo)
seria a mais prevenida contra a regeneração adaptativa do clientelismo. Os
abraços desse último, como coadjuvante do corporativismo e do insulamento
burocrático seriam as resultantes políticas, respectivamente, dos 15 anos
Vargas e dos 21 anos de autocracia militar. Já a tríplice e mais equilibrada
aliança dessas três gramáticas já teria feito o período de 45 a 64 mais
“virtuoso”, inclusive do ponto de vista democrático, do que seria exemplar o
governo JK. Quanto ao universalismo de procedimentos, timidamente introduzido
na primeira parte dos anos de Vargas, talvez por ser portador mais consistente de
um “ethos” liberal, para ter sua vez de influir de modo relevante, teve de
esperar até um contexto posterior ao período histórico analisado pelo livro de
Nunes, quando novas circunstâncias políticas e sociais cercaram o advento da
Constituição de 1988.
Uma
extrapolação razoável do argumento de Nunes é pensar que a expectativa mais
auspiciosa (porque mais realista) seria a de que a Carta de 88 e a política que
sob ela se passou a praticar propiciassem uma fertilização mais complexa das
quatro gramáticas e não a de que o universalismo instalasse o mundo virtuoso do
haverá, no lugar de tudo o que houve ou estava havendo. Mais ou menos dentro
dessa expectativa conduziu-se a política brasileira pelas duas décadas
subsequentes, desembocando e depois se estabilizando nos marcos do chamado
presidencialismo de coalizão. Sempre caberá discussão e correção sobre métodos
empregados a cada iniciativa política e legislativa tomadas em ambiente
complexo e plural, de conflito e negociação permanentes, sob intensa competição
política e mais intensa ainda participação eleitoral. Mas é muito expressivo o legado
positivo dessa experiência para o País, como mostrará qualquer inventário
sério. Estabilidade da moeda com o fim da vigência e da cultura da inflação,
lei de responsabilidade fiscal, códigos e estatutos legais do consumidor, do
ambiente, das cidades e das metrópoles, da infância e da adolescência, do
idoso, da igualdade racial e por aí vai.
A
liderança dos presidentes da República sobre a agenda política do País foi uma
constante e um fator de estabilidade. A cooperação legislativa também, sem que
se configurasse adesão automática, ou coercitiva. O baixo clero atuava e
obtinha sucesso moderado pelo protagonismo das lideranças no Parlamento e dos
partidos no governo. O Judiciário já incursionava fora de marcos tradicionais,
mas nada que se assemelhasse ao aval que, depois, por algum tempo, passou a dar
a uma ética faxineira.
Onde
perdemos essa moderação? Não me proponho discutir isso aqui, mas argumentar
pela necessidade de recuperá-la; não para reinstalar o que havia, mas para
balizar a invenção do que haverá. A rota da política esbarra primeiro, como tem
sido fartamente apontado, no perfil dos candidatos presidenciais até aqui mais
bem colocados em pesquisas. A imaginação dos leitores não precisa ser muito
desafiada para que possam ter desde já uma ideia do que será o nível de
agressividade imperante na conversa de surdos em que tende a se converter o
debate eleitoral. Na eleição isso leva a um baixo calão e a narrativas que
seriam impublicáveis em tempos mais civilizados. Já nas relações futuras entre
governo e oposição a interdição de diálogos conduz a paralisia decisória e essa
à perenização da crise.
Contudo,
não é só nessa arena que interditos se avolumam. São mais alarmantes os
desdobramentos possíveis da fluência pré-eleitoral dos dois arquétipos
distópicos que ganham espaço nesses tempos imoderados. São padrões opostos de
atitude política que já cooperaram antes, paralelamente, na coalizão de veto à
política democrática que nos legou Bolsonaro. Ambos fazem parte da história do
seu governo. Revezaram-se nele e agora aparentam disputar para chegarem ao
segundo turno das eleições presidenciais, o arquétipo Cunha ainda ao lado do
mito, atuando com desembaraço e agressividade inauditos e o arquétipo Janot com
o projeto de renovação do mito, pela candidatura dissidente de Sérgio Moro.
Digo aparentam porque, a meu juízo, apenas o segundo arquétipo fixa-se
centralmente na disputa presidencial. Os Cunhas genéricos sentem o gosto de outra
via expressa ao poder de que o original nunca chegou a dispor, embora quisesse.
É o controle efetivo do orçamento federal pelo Legislativo, obtido, até aqui,
no vácuo acumulado pela descoordenação política (Dilma), baixo empoderamento (Temer)
e desinstitucionalização (Bolsonaro) que tem resultado da atuação do Poder
Executivo. As eleições de 2022 representam, para segmentos do chamado Centrão,
mais do que momento de renovação de mandatos (essa é motivação forte de
qualquer deputado, dentro ou fora do Centrão) mas a oportunidade de tornar
permanente uma condição de poder que até o momento anda é contingente. Esse é o
modo objetivo pelo qual eleições para o Legislativo importam-lhes mais que a
presidencial.
Estaremos
longe do exagero se identificarmos essa motivação como bem mais difusa.
Associada a novas regras eleitorais (novas cláusulas de barreira, proibição de
coligação em eleições para deputados e consequente admissão de federações
partidárias) ela coloca, na agenda de todos os partidos políticos, novo acento
sobre as eleições ao Legislativo. Com a necessidade de direcionar para esse
nível eleitoral cada vez mais energia articuladora e fatias mais generosas do
fundo partidário, tendem a rarear, na arena da eleição presidencial,
experimentos políticos ecumênicos ou marcações de posição partidária. Partidos
e parlamentares chancelam gladiadores já no ringue, na expectativa de contê-los
após as urnas.
O
eleitor que se preocupa com o seu futuro e o do país após o momento da batalha
eleitoral está sendo chamado a um exercício de prospecção. As relações entre um
Congresso empoderado, formado por políticos aleatórios, em boa parte reeleitos
no embalo de emendas secretas ao orçamento e um presidente vencedor de um embate
entre diversas modalidades de populismo (o individualismo de milícia, o paternalismo
nivelador e o guardianismo redentor) não sugere mudança nem sossego. No
horizonte o cenário um é o do tensionamento das instituições para se amoldarem ao
cruzamento infértil entre um presidente com pretensões a César e um congresso
pródigo na provisão de alimento ao próprio umbigo. Em resumo, a continuidade do que aí está, com
Bolsonaro ou não. Quem perecerá primeiro para que essas duas situações democraticamente
patológicas sobrevivam? Os recursos do Estado ou a paciência de uma população vítima
de mais um estelionato eleitoral?
Um
segundo cenário, dentro do horizonte possível após eleições vencidas,
simultaneamente, pelos dois arquétipos (“Cunha” e “Janot”) é que um deles, ou
ambos, queiram eliminar a discrepância depois da eleição. Ameaça de impeachment
do Presidente ou invasão bem-sucedida do nosso Capitólio são hipóteses mais
radicais cuja iminência pode levar a soluções emergenciais como parlamentarismo
ou semiparlamentarismo, no primeiro caso, democracia iliberal no segundo. Isso
não é futurismo. É ler mensagens de agora.
Se
ficarmos nesse beco, cada qual (indivíduos e instituições) fará alguma escolha
em algum momento futuro de agonia. A minha seria/será pela solução
parlamentarista, por não conceber democracia com sacrifício das liberdades que
a outra opção representa. Mas esse é assunto para outra coluna. Concluo a de
hoje deixando na roda a provável pergunta que a vida, mais do que este texto,
tem feito: como sair desse beco? Ninguém que quer sair sabe, é claro. Mas a
pergunta cabe, pois, afinal, falta quase um ano. Se os fatos não iluminam uma
saída, é preciso, sem deixar de levá-los em conta, colocar a imaginação
política para criar outros. A política pode achar aliados onde a análise flagra
obstáculos. Não é à toa que olhares entre Lula e um centro ainda sem candidato
são reciprocamente perscrutadores, a um só tempo desconfiados e esperançosos. Mas
a necessidade de sair do beco persistirá, seja qual for o desfecho final dessa
troca de olhares. Nada ocorrerá por
gravidade. O PT já está grandinho e curtido para saber disso. Por outro lado,
seus adversários de ontem já esgotaram a cota de erros que lhes foi dado
cometer.
A
desconfiança destrói e a esperança é pouco para produzir resultado. Criar uma
confiança mínima para substituir a desconfiança e uma expectativa compartilhada
para substituir a esperança de cada qual parece ser uma condição para criar uma
força cívica suficiente para afastar do centro da cena os arquétipos da
sub-política e da anti-política, em vez de aderir a eles. Ou seremos um país de
Madalenas?
* Cientista político e professor da UFBa.
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