Chile elege esquerdista Boric à Presidência, em derrota de pinochetista Kast
Líder dos protestos estudantis de 2011 se torna candidato mais votado da história chilena, ao reunir apoio de 4,6 milhões de eleitores
Sylvia Colombo / Folha de S. Paulo
SANTIAGO - O esquerdista
Gabriel Boric, líder dos protestos estudantis de 2011, foi eleito presidente do
Chile neste domingo (19) ao derrotar o ultradireitista José Antonio Kast. Ao
reunir o apoio de 4,6 milhões de eleitores (55,8% contra 44,1%), o nome da
Frente Ampla se tornou o candidato mais votado da história chilena.
Aos 35 anos, Boric será, ainda, o mais
jovem presidente da história do país e vai suceder o direitista Sebastián
Piñera, que termina em março de 2022 seu segundo mandato. O pleito também teve
55% de participação, índice superior ao do primeiro turno (47%) e do plebiscito
para a Constituinte (42,5%).
Na praça Baquedano —também chamada de
Dignidade—, epicentro dos protestos de 2019, apoiadores do novo líder se
dirigiram com bandeiras do Chile, outras com o nome de Boric e muitas mais com
o símbolo dos indígenas mapuche. Ambulantes vendiam bandeiras, bonés e cerveja,
embora houvesse quem passasse pelo local com sua própria garrafa de champanhe
para acompanhar o discurso do eleito.
No palco, próximo à praça, o futuro
presidente chileno disse que o "crescimento econômico do Chile hoje tem
pés de barro" e prometeu fortalecer as pequenas e as médias empresas.
Também destacou que os direitos humanos são essenciais e pediu que o país nunca
mais tenha "um presidente que ataque o seu próprio povo". "Às
vítimas de abusos, afirmo que não nos cansaremos de buscar verdade e
reparação."
Boric também prometeu um sistema de saúde
que "não discrimine ricos e pobres", um programa de cuidado para
mulheres e "aposentadorias dignas". "Não podemos deixar que
sigam enriquecendo com nossas aposentadorias." As promessas se chocarão
com um Congresso dividido, com o qual será necessário realizar acordos para
viabilizar projetos como as reformas da Previdência e tributária.
Ele será também o presidente que comandará o país durante o plebiscito pela
aprovação ou rejeição da nova Constituição, hoje redigida pela Assembleia
Constitucional democraticamente eleita. Caso a nova Carta seja aprovada, também
caberá ao novo líder comandar a implementação do documento.
Numa eleição em que os partidos tradicionais foram rejeitados nas urnas, o esquerdista leva ao poder uma nova geração de políticos que surgiram com as revoltas estudantis de 2011. Para conseguir o apoio necessário para a vitória, porém, Boric buscou moderar seu discurso, considerado radical por muitos setores, e se reconciliou com a Concertação, aliança de centro-esquerda que governou o Chile por 20 anos. Nas últimas semanas, obteve o apoio dos ex-presidentes Ricardo Lagos e Michelle Bachelet.
O resultado também marca a derrota de um
candidato que tremulou a bandeira do pinochetismo e defendeu, diferentemente do
rival, a manutenção dos fundos de pensão privados e apostou no discurso
contrário à imigração ilegal. Kast também sustentava plataforma conservadora
nos direitos civis e queria a militarização do sul do país, onde os mapuche
estão em confronto contínuo com proprietários de terras.
Ao reconhecer o revés, ele agradeceu aos
apoiadores e disse que, apesar das diferenças, quer contribuir com o novo
governo e unir os chilenos. O afago foi retribuído horas depois, no discurso de
Boric, no qual agradeceu a Kast e disse que é necessário aprender a conviver.
"Isso é o que o povo do Chile exige."
Antes, Piñera, atual presidente do país,
cumpriu uma tradição e telefonou para Boric —a chamada, como sempre, foi
transmitida na TV. Na ligação, disse ter certeza de que o eleito está "à
altura da responsabilidade" e prometeu apoio. Piñera também convidou, como
segue a tradição, o esquerdista para um encontro nesta segunda (20) e brincou
com a idade do futuro sucessor: "Tire uma foto quando entrar no [Palácio
de] La Moneda e outra quando sair para perceber que é um trabalho duro e
difícil".
O dia de votação foi permeado de tensão
devido a grandes
engarrafamentos na região metropolitana de Santiago, forte calor e registros de
dificuldades para acessar o transporte público em zonas rurais.
Os relatos fizeram com que ambos os
candidatos reclamassem do sistema de transporte. Em um áudio, Kast afirmou que
em algumas regiões havia poucos ônibus e pediu ao governo que disponibilizasse
toda a capacidade possível para que as pessoas pudessem votar. Na mesma toada,
Boric, em uma escala do voo que fez de Punta Arenas, onde votou, para a
capital, disse ter recebido relatos de problemas no transporte público tanto na
região metropolitana como na zona rural.
A ministra do Transporte, Gloria Hutt,
porém, negou uma diminuição no fluxo dos ônibus e afirmou que os veículos do
transporte público estavam trabalhando "como em um dia normal".
"O que temos visto nas últimas horas é que há episódios de congestionamento,
e isso afeta o transporte público."
Hutt excluiu a possibilidade de que ônibus
tenham sido tirados de circulação para impedir a mobilidade dos eleitores.
"Não fizemos isso, há contratos a cumprir entre as empresas e o
ministério, e estamos vigiando para que isso se cumpra". Jaime Bellolio,
porta-voz do governo, reforçou a justificativa. "Estamos em um momento
polarizado, estão falando mentiras. Há demora porque há muito trânsito."
Boric assume a Presidência em 11 de março
de 2022 com uma lista de desafios. Entre os principais problemas com os quais
terá de lidar estão a responsabilidade de iniciar
a reforma da previdência, principal
anseio dos chilenos, a crise
econômica do país, a continuidade
da política de combate à pandemia de coronavírus, o encaminhamento
do processo da Assembleia Constituinte e a tentativa de estabelecer
uma relação harmoniosa com o Congresso, no
qual não há uma maioria clara.
Frente à pior recessão em décadas, a
economia aparece como a questão mais latente. O PIB encolheu 6 pontos
percentuais em 2020, devido ao impacto da Covid, que também causou a perda de 1
milhão de empregos, e o nível de pobreza, por sua vez, foi de 8,1% em 2019 para
12,2% em 2021.
Embora seja esperado um crescimento de 5,5%
do PIB em 2021, a recuperação ainda é frágil e lenta para atender ao aumento
das necessidades sociais e dos gastos feitos pelo Estado para minimizar o
impacto da pandemia. A inflação pode superar os 6% neste ano, o dobro da meta
estabelecida pelo Banco Central.
Ainda na área econômica, o governo terá de
lidar com os efeitos da retirada
de US$ 50 bilhões dos fundos privados de pensão, liberados pelo Congresso na
pandemia, contrariando o presidente Piñera.
Da relação do governo com o Congresso
depende o sucesso das negociações para aprovar as reformas e definir os próximos
passos da Assembleia Constituinte. Espera-se que o plebiscito para aprovar
ou rejeitar a nova Carta ocorra em outubro, e a nova Constituição pode ter
entre seus artigos a mudança do sistema presidencialista para o
parlamentarista, ou mesmo a redefinição da duração do mandato do presidente.
Neste caso, o eleito poderia ter de convocar novas eleições ou sair do cargo antes do previsto.
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