O Estado de S. Paulo
Como se pode bem apregoar que as pessoas,
no uso de sua liberdade individual, possam ameaçar a existência do outro?
Uma questão que deveria ser banal, proteger
os cidadãos contra pessoas irresponsáveis que prezam contagiar os outros,
torna-se um problema que envolveria princípios como o da liberdade.
Principalmente a partir da eleição do atual presidente, as formas mais
extremadas da liberdade individual são evocadas para justificar iniciativas
autoritárias e para permitir que o contágio se espraie entre todos. O
favorecimento da morte toma o lugar da defesa da vida.
Do ponto de vista dos princípios, tal
comportamento não faz nenhum sentido, salvo para os que tiram proveito do jogo
da morte em sua acepção física e política. Física, porque a irresponsabilidade
governamental já vitimou mais de 600 mil brasileiros; política, porque se
tornou a forma bolsonarista de governar. Mais especificamente, como se pode bem
apregoar que as pessoas, no uso de sua liberdade individual, possam ameaçar a
existência do outro? É o direito à infecção generalizada, à propagação da
doença e da morte como se fosse um direito individual, assegurado
constitucionalmente?
Tomemos um exemplo para melhor esclarecer um argumento que por si só deveria ser evidente, não fosse o fanatismo que tomou conta de boa parte da sociedade brasileira. Imaginemos uma pessoa portadora de aids. Tem ela o direito de transmitir o HIV no exercício de sua liberdade individual? Pode ela assumir o seu gozo sexual como um direito assegurado, transmitindo o seu vírus para terceiros? Não seria algo chocante? Tratar-se-ia de liberdade ou de aniquilação do outro? Por que nos insurgimos contra este tipo de comportamento, e somos complacentes com a transmissão da covid-19 em nome de uma suposta liberdade?
A liberdade é um exercício de escolha, um
princípio que veio a orientar as sociedades democráticas, alicerçadas no
respeito ao outro, na tolerância, no diálogo e no respeito à vida. Não pode ela
ser pervertida a ponto de vir a significar o desrespeito ao outro, a
intolerância de fanáticos, a ausência de diálogo e a ameaça às instituições
democráticas, como se elas – pasmem – estivessem a perigo. Chegamos a uma
situação tão paradoxal que as palavras vieram a significar o seu contrário.
Que o Supremo, provocado, tenha em sentença
do ministro Luís Roberto Barroso – esclarecendo, ademais, que a submeteria aos
demais membros da Corte – assegurado o passaporte imunológico terminou por
provocar uma celeuma. Importante ministro do Palácio chegou a declarar que o
Supremo estaria esticando a corda, ou, ainda, que estaria jogando fora do
quadrante constitucional, mostrando bem a deformação política e institucional
em curso. Não sem razão, do ponto de vista diplomático, o vice-presidente
Hamilton Mourão assinalou que se trata de um princípio básico de reciprocidade.
Bastaria aplicá-lo. Por que o Brasil deveria ser o depositário dos infectados
do mundo?
Tal argumento vale igualmente do ponto de
vista interno. Não deveria nem ser objeto de controvérsia que pessoas sejam
obrigadas a apresentar certificados de vacinação ao ingressarem em locais de
aglomeração, públicos e privados. A Câmara dos Deputados exige o comprovante do
ciclo vacinal para ingresso em suas dependências, não tendo isso sido objeto de
nenhuma controvérsia. Por que os críticos governamentais a essa medida não
atacam o presidente Arthur Lira? Agora, se governadores e prefeitos
discordantes em relação às políticas governamentais da saúde adotam a exigência
de comprovação de vacinação, as reações bolsonaristas vêm em peso, como se as
liberdades estivessem sendo atingidas.
O mais curioso de tudo isso é que o
presidente Bolsonaro continua, a esta altura, defendendo a cloroquina como
remédio eficaz contra a covid19. Melhor seria receitar chá de camomila! Ao
menos, sendo igualmente ineficaz, não produz nenhum efeito colateral. A ema do
Palácio da Alvorada é mais inteligente do que os seguidores do presidente.
Ademais, nunca é demais lembrar que a luta contra a pandemia, além da vacinação
em massa, depende de medidas de segurança coletiva, como o uso de máscaras, o
uso intensivo de álcool gel e, também, de comprovante de vacinação. A vida e a
saúde do próximo disso dependem.
Nesse sentido, é propriamente inconcebível,
ao menos para quem pensa a política em termos racionais, que o presidente
Bolsonaro tenha enveredado pela via negacionista, pela recusa da ciência e pelo
desprezo à vida. Apesar de toda a sua demagogia, o seu governo comprou em massa
vacinas, após um primeiro período de tergiversação e de recusa. Hoje, graças ao
SUS, o Brasil está numa muito boa posição internacional em número de vacinados.
A população brasileira, por sua vez, não sucumbiu aos delírios bolsonaristas,
aderindo maciçamente à vacinação. Não teria sido mais simples o presidente ter
se posicionado como patrono deste processo de salvamento da saúde dos
brasileiros? Não o tendo feito, amarga uma péssima popularidade e um alto
índice de rejeição em pesquisas de opinião, a ponto de talvez inviabilizar a sua
reeleição.
*Denis Lerrer Rosenfield professor de filosofia na UFGRS
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