O Globo
O imperador Marco Aurélio (também filósofo
estoico) achava os primeiros católicos uns tipos muito histéricos. Os romanos
ridicularizavam suas construções verbais (Carluxo segue essa tradição) e ainda o
apelo às superstições como discurso de poder.
O uso do medo para torná-lo frágil.
Andasse pelo Brasil contemporâneo, Marco
Aurélio estaria apoplético com a sanha colérica de um Silas Malafaia e sua
intromissão em assuntos que procuram dobrar a sociedade a sua opinião, digamos,
religiosa.
Outros pastores seguem a mesma toada
autoritária, na tentativa de subjugar parte da população que não reza pelo seu
credo.
Os protocristãos são vistos como os
primeiros a querer dominar corpos e mentes dos outros. Até então, as religiões
chamadas de pagãs (designação maldosa forjada pelos cristãos) deixavam a
prática religiosa, e sua escolha, para cada cidadão.
Não havia a intenção autoritária, invasiva, de convencer o outro a praticar a sua crença. Livre escolha, porque todos devemos ser livres para acreditar ou não, seja num único deus ou em vários deuses. Ou em nenhum. Vai da sua fé.
São os cristãos que forjam a ideia de um
Deus que a tudo vê, onisciente, e está em todos os lugares, onipresente, sempre
com o intuito de obrigar o pobre fiel a viver naquele cercadinho de regras
papai e mamãe. Um livro como o de Catherine Nixey, “A chegada das trevas”,
relembra como Santo Agostinho, em diversas falas, estimula que o cristão vigie
o não cristão e o denuncie caso esteja praticando atos pagãos. Instituiu a
deduragem divina.
Nos primeiros séculos do catolicismo, a
figura de Deus é posta dentro de sua consciência, introjetada no seu corpo,
feito mordaça. Como à época de Cristo o analfabetismo era a tônica, coube a
espertalhões como Paulo de Tarso o aparente registro de sua passagem pela
Terra. Colocando em sua boca idiossincrasias, conceitos e fantasmas nem sequer
sonhados por Cristo. A começar pela campanha de Paulo contra o livre desejo do
corpo ou ainda a homossexualidade.
Porque, até então, o corpo jamais fora
problema. Tampouco a orientação sexual. Basta ler “A vida dos doze Césares”, de
Suetônio, para identificar os parceiros dos governantes. Júlio César está lá
aninhado. Ou os filósofos gregos, como Platão e seu querido Alcebíades.
A sanha religiosa, antes comandada pela
Igreja Católica, hoje reverbera pela boca de certos líderes evangélicos. Piorou
a retórica. Questionados, acusam a intolerância religiosa como defesa. Embora,
ao destruir terreiros, perseguir cultos afro-brasileiros, até com violência
física, nem cuidem de arrumar um disfarce. Ou ao chutar em público imagens de
santos católicos.
É uma campanha incansável de tomada de
poder. Não querem apenas praticar sua religião, mas, como os protocristãos,
desejam impor à sociedade, a ferro e sob lei, os seus credos, em geral
ancorados no retrovisor, numa época de pastoreio.
Dois exemplos recentes.
Em São Paulo, o metrô realizou campanha do
novembro azul, campanha médica, de saúde, para alertar os homens sobre o câncer
de próstata. Ocorre todos os anos. Os cartazes ainda chamavam a atenção para a
necessidade da higiene peniana. Segundo os estudos, muitos não lavam com sabão
o próprio órgão. Resulta em doenças, até câncer.
O texto era ilustrado pelo desenho —
repito: desenho — de um pênis, semelhante aos que são apresentados nos livros
escolares. Pois um deputado-pastor (prefiro a categoria de modelo-atriz)
iniciou movimento para retirar o cartaz dos trens do metrô, sob o argumento de
que o desenho do pênis atentava contra os bons costumes da família!
Mesma reação evangélica houve contra a
distribuição de absorventes para as mulheres, principalmente as adolescentes.
São pastores que gritam, mobilizam redes
sociais, ameaçam não apoiar o governo, por causa de ações ditadas pela ciência
em defesa da saúde pública. Onde Cristo falou contra a prevenção de doenças?
Ali pelo final dos séculos X e XI, houve a
dura batalha da Igreja contra os estudos anatômicos. Era pecado e, como tal,
dava cadeia, até justiçamento, para quem ousasse abrir um cadáver para estudar
o corpo humano. Era a religião evitando o avanço do conhecimento.
Por que diabos a religião teria de se
intrometer nesse assunto?
É o caso do ódio dos evangélicos à questão
sexual. A quem pertence afinal meu corpo? Ao Estado? Ao Malafaia (cruz-credo)?
O avanço evangélico sobre as instituições
cada vez mais escancara um projeto autoritário de privação das liberdades e
escolhas pessoais. De imposição de regras, ceifando individualidades e mesmo o
livre-arbítrio.
O ódio ao corpo, ao desejo, também à
mulher, vindo lá do passado na má prosódia de Paulo de Tarso (coisa dele, não
de Cristo, que gostava de Maria Madalena), agora sob a roupa dos pastores, faz
mal à saúde.
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