Valor Econômico
Está na hora de os BCs encararem a inflação
mais de frente
A alta do IPCA em março, de 1,62%, maior do
que todas as outras registradas no mesmo mês desde o lançamento do Plano Real,
28 anos atrás, assustou. Não apenas pelo resultado em si, mas também pelo
contexto em que veio, com a inflação rodando em patamares muito acima das metas
fixadas para a autoridade monetária, registrando taxas que surpreendem sempre
para cima, às vezes parecendo que a inflação pode sair de controle.
Nos 12 meses até março, o IPCA subiu 11,3%. A meta para 2021 era de 3,75%, para este ano é de 3,5%. A realidade e a meta não conversam uma com a outra. De fato, este ano o IPCA já subiu 3,2%, praticamente “atingindo” a meta para 2022 apenas no primeiro trimestre do ano. E meta que não conversa com a realidade perde sua funcionalidade de ancorar as expectativas, claro.
Registre-se que a desconexão entre metas e
resultados não ocorre só no Brasil. Nos EUA, onde o Fed, o banco central (BC)
de lá, tem uma meta de 2%, a inflação em março foi de 1,2%, acumulando alta de
8,5% em 12 meses, a mais elevada desde 1981. Na Área do Euro, onde a meta
também é de 2%, março registrou inflação de incríveis 2,5%, acumulando 7,5% em
12 meses, mais um novo recorde desde que o euro entrou em cena.
Nos três casos, os BCs estão, no jargão de
economia, “atrás da curva” - isto é, a reboque dos fatos, tendo apertado menos
a política monetária do que a realidade exigia. O atraso é menor no Brasil, mas
gigante nos casos do Fed e do Banco Central Europeu (BCE).
A pergunta que fica por responder é se esse
atraso decorre de os BCs estarem sendo surpreendidos pela realidade ou se é por
escolha, pela decisão de não usar todos os instrumentos à sua disposição para
trazer a inflação para a meta.
O resultado de março foi uma surpresa,
explicada pela guerra na Ucrânia, pelas sanções impostas em reação a ela e pelo
impacto disso sobre as commodities. No nosso caso, mais de metade (56%) da alta
do IPCA no mês se explica pela elevação dos preços da gasolina (7%) e dos
alimentos (3,1%), resultado direto desses acontecimentos. Nos EUA, a alta da
gasolina (18,3%) explica mais da metade da inflação de março, algo semelhante
ocorrendo na área do euro, onde os preços de energia subiram 12,5% em março.
As “surpresas”, porém, não são de agora;
faz tempo que acontecem. Desde o Relatório de Inflação de setembro de 2020,
nosso BC vem subestimando, de forma sistemática, em 1 ponto percentual, em
média, a inflação do três meses seguintes. Claro, a pandemia é parte da
explicação, mas só parte. Quem sabe, a recomendação de Larry Summers ao Fed, em
entrevista semana passada à Bloomberg, também se aplica, em algum grau, ao
nosso BC, de que ele “deveria estar reconhecendo muito mais visivelmente que
esteve errado e buscando entender e aprender com seus erros”.
A realidade, porém, é que os BCs seguem
reticentes em desmontar mais rapidamente os estímulos monetários adotados em
reação à pandemia. Semana passada, por exemplo, o BCE decidiu manter a taxa de
juros negativa e reduzir apenas gradualmente a emissão de moeda para a compra
de títulos públicos. O Fed pelo menos já subiu a taxa de juros, para 0,375% ao
ano, e adotou uma retórica mais agressiva. Porém, a sinalização segue sendo de
um aperto modesto, a ponto de James Bullard, membro em geral moderado do Copom
americano, o Fomc, acusar o Fed de embarcar em uma “fantasia”, ao supor ser
possível trazer a inflação para a meta sem um aumento mais agressivo dos juros.
Fica claro que a postura dos BCs é uma
opção consciente, não resultado de surpresas, apenas. Há três possíveis motivos
para isso.
Um, que a inflação resulta de um choque de
oferta, causado pela pandemia e, agora, pela guerra, ao qual a política
monetária não deve, nem consegue, se contrapor. Além disso, seria um choque
transitório, que se resolveria sozinho. Essa explicação vem perdendo força,
conforme as expectativas se desancoram e o processo inflacionário se espalha,
com algo entre 75% a 90% dos preços subindo a cada mês.
Dois, que o custo de combater uma inflação
tão alta seria muito elevado, em termos de retração da atividade e aumento do
desemprego. Mas, especialmente no Brasil, já deveríamos estar vacinados contra
esse discurso: nada afeta tanto os mais pobres como a inflação alta. Basta ver
o quanto esta já derrubou a renda das famílias.
Por fim, há a preocupação com o fiscal. No
Japão, na Europa e nos Estados Unidos, já há algum tempo a política monetária
virou um braço auxiliar da política fiscal, com a compra de títulos públicos
pelos BCs reduzindo o custo da dívida pública. A inflação alta ajudou ainda
mais esse processo, tornando os juros reais bem negativos e cortando o valor
real das despesas públicas. O Brasil é um claro exemplo de onde isso vem
ocorrendo. Elevar a taxa de juros aumentaria o custo de rolar essa dívida,
enquanto a inflação menor corroeria menos as despesas e a retração da atividade
reduziria as receitas.
Em minha visão, nenhum desses três motivos
é sólido o bastante para justificar os riscos que trazem. Está na hora de os
BCs encararem a inflação mais de frente.
*Armando Castelar Pinheiro é
professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e
pesquisador-associado do FGV Ibre
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