terça-feira, 28 de junho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Jogo perigoso

Folha de S. Paulo

Com ataque às urnas e vice general, Bolsonaro investe em eleitor fiel e ameaça

Jair Bolsonaro (PL) pode ver o copo meio cheio ou o meio vazio na mais recente pesquisa Datafolha sobre a corrida presidencial.

De mais favorável, a partir de sua perspectiva, preservou o apoio de 28% do eleitorado —parcela equivalente, na margem de erro, à de 27% apurada em maio— mesmo após nova rodada de dolorosos reajustes dos preços dos combustíveis.

Trata-se de um contingente considerável, até espantoso, para um governante que passou pelas intempéries de uma pandemia e de uma onda inflacionária global, tendo gerido ambas pessimamente.

Entretanto Bolsonaro permanece num distante segundo lugar na disputa, rejeitado por 55% e sob risco de perder já no primeiro turno, e tem cada vez menos chances de impulsionar sua candidatura.

A principal aposta governista, a ampliação do Bolsa Família a um custo de quase R$ 90 bilhões neste ano, mostrou-se até aqui um fiasco em termos de intenções de voto. À base de desespero, cogita-se agora elevar o valor do auxílio.

Diante das duas leituras, o mandatário prefere satisfazer seus apoiadores fiéis a moderar discurso e prática na busca de novos eleitores. Foi o que fez no domingo (26), em entrevista a um programa de simpatizantes na internet.

Bolsonaro retomou a defesa do pastor evangélico Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação preso na semana passada em meio a uma investigação sobre corrupção na pasta. O caso, aliás, pode ser novo foco de atrito entre o presidente e o Judiciário, se avançarem as suspeitas de interferência do Planalto na atuação da Polícia Federal.

Repetiram-se os ataques de tom golpista ao sistema eleitoral, incluindo a afirmação —cuja gravidade vai muito além de uma simples mentira descarada— de que uma fraude teria impedido sua vitória no primeiro turno em 2018.

Não menos importante, Bolsonaro anunciou que o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e partícipe da ofensiva contra as urnas eletrônicas, será mesmo o vice em sua chapa —em vez de uma opção mais moderada e capaz de atrair novos votos, como a ex-ministra Tereza Cristina, da Agricultura, defendida pelo centrão.

A pouco mais de três meses do pleito, o mandatário investe no tumulto e na intimidação, mesmo ciente de que a mentira não elevará suas chances de vitória nem a aliança com militares vai impedir que a vontade popular seja respeitada.

Se não forem eficazes o uso da máquina pública e a campanha negativa contra o adversário Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro poderá conservar, de todo modo, patrimônio eleitoral suficiente para atazanar o país na oposição.

Expulsos de casa

Folha de S. Paulo

Dilema entre comida e aluguel empurra moradores para favelas e ruas paulistanas

O desemprego e a renitente crise econômica, exacerbados após mais de dois anos de pandemia, têm provocado efeitos nefastos na já precária infraestrutura habitacional da cidade de São Paulo.

Para parte da população mais vulnerável, a solução entre comer e pagar o aluguel é viver em favelas —isso sem contar os que não conseguem escapar da situação de rua: o número de sem-teto avançou 31% durante a crise sanitária, atingindo ao menos 31.884 pessoas.

Dados da gestão Ricardo Nunes (MDB) revelam que a capital ganhou 6.000 domicílios em favelas entre 2019 e 2022. Do total, 5.100 barracos foram erguidos nos últimos dois anos. Somam-se agora 1.739 comunidades e quase 400 mil lares —o que põe fim a certa estabilidade observada desde 2017.

Os aumentos da inadimplência, em contas de água, luz e gás, e das ações de despejo, que segundo o Tribunal de Justiça paulista cresceram 70% entre 2020 e 2021, ajudam a explicar o quadro desolador.

O fenômeno só não é mais grave, em São Paulo e em todo o país, devido a liminares concedidas pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que interromperam ordens de desocupação durante a epidemia.

A última decisão de Barroso determina que a norma tenha vigência só até quinta-feira (30), o que pode colocar em risco, conforme afirmou o próprio magistrado no documento, mais de 132 mil famílias brasileiras. O prazo pode ser estendido diante da recente alta nas taxas de internação por Covid.

Com ou sem pandemia, as projeções sobre a falência habitacional paulistana são alarmantes. Estudo da consultoria Econnit estima que, até 2030, a metrópole terá de construir 73 mil moradias por ano para zerar a demanda futura e o déficit atual —algo como o triplo das 24 mil unidades hoje entregues anualmente.

É certo que qualquer alívio, para os cerca de 2 milhões de paulistanos que vivem em espaços indignos, passa pela melhora da conjuntura econômica e na retomada dos empregos. Tais fatores são mais afetados, a longo prazo, pelas decisões da esfera federal, além da evolução do cenário externo.

Mas isso não exime os governos, em todos os níveis, de ampliarem suas políticas, seja em programas de impacto imediato, como o pagamento de auxílio aluguel, seja em iniciativas como construção de conjuntos populares, requalificação de imóveis desocupados e estímulos ao mercado imobiliário com vistas à baixa renda.

Bolsonaro deve explicações ao País

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro parece cada vez mais envolvido no escândalo do MEC, seja no caso em si, seja na aparente interferência na condução da investigação pela PF, e deve ser investigado

Desde a deflagração da Operação Acesso Pago, que investiga indícios de crimes no Ministério da Educação (MEC) e levou à prisão do ex-ministro e pastor Milton Ribeiro – suspensa depois por decisão de um desembargador –, os desdobramentos envolveram ainda mais o presidente da República no escândalo. Jair Bolsonaro tem muito a explicar sobre o caso em si – pastores negociando verbas da Educação sob as bênçãos do Palácio do Planalto – e também sobre a independência da Polícia Federal (PF). São graves as suspeitas de interferência de Jair Bolsonaro na corporação.

Na sexta-feira, foi divulgado um áudio no qual Milton Ribeiro relata, em ligação telefônica com a filha, ter sido avisado por Jair Bolsonaro a respeito da possibilidade de medidas investigativas contra o pastor. “Hoje o presidente me ligou. (...) Ele acha que vão fazer uma busca e apreensão em casa”, diz o ex-ministro da Educação.

O áudio é muito grave. Significa que o presidente da República teria repassado a um investigado informações sobre os passos futuros de um caso que envolve o próprio governo. Se confirmado, é um explícito abuso da função pública, pondo em risco a investigação da PF. 

O episódio recorda a denúncia de Sergio Moro em abril de 2020, quando o ex-ministro da Justiça relatou ao País que Jair Bolsonaro “queria ter (na PF) uma pessoa de contato pessoal dele, que ele pudesse ligar, colher informações, relatórios de inteligência, seja o diretor, seja o superintendente”. Para ilustrar a gravidade do problema, Moro fez a seguinte comparação: “Imaginem se, durante a Lava Jato, ministros, ou a então presidente Dilma e o ex-presidente Lula, ficassem ligando na superintendência de Curitiba para colher informações sobre investigações em andamento?”. Imaginem.

Corretamente, o juiz Renato Coelho Borelli, da 15.ª Vara Federal Criminal, devolveu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o inquérito da Operação Acesso Pago. Não há como tapar o sol com peneira: há suspeitas de envolvimento do presidente da República no caso, razão pela qual Bolsonaro tem de ser investigado.

Além do áudio do pastor, causou perplexidade a resistência da PF em cumprir integralmente a ordem judicial sobre o local para o qual deveria ser levado o ex-ministro da Educação. Em vez da Superintendência da PF em Brasília, como ordenara o juiz de primeira instância, o pastor foi conduzido para a carceragem da corporação em São Paulo, sob a ridícula alegação de falta de recursos. Segundo o delegado Bruno Calandrini, responsável pela operação, a recusa da PF foi uma “demonstração de interferência na condução da investigação”, o que parece óbvio.

Essa situação coloca ainda mais dúvidas sobre a independência da PF no governo de Jair Bolsonaro. Pelo que se viu, em determinados andares da PF, ordem judicial que desagrada ao Palácio do Planalto recebe tratamento diferenciado. 

O fato é que, quando se trata dos amigos de Bolsonaro, a lei não vale, muito menos a moralidade. Para o presidente, seu ex-ministro pode ter se envolvido apenas em “tráfico de influência”, o que, segundo ele, é “comum”. Ora, tráfico de influência pode ser “comum” no indecoroso mundo bolsonarista, mas no Brasil é crime, conforme o artigo 332 do Código Penal – “solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função” –, com pena de dois a cinco anos de reclusão.

Ademais, para Bolsonaro, o escândalo do MEC “não foi corrupção da forma que se via em governos anteriores”. Ou seja, na pervertida régua moral do bolsonarismo, seu governo, em vez de ser acusado, deveria ser louvado porque esse caso de corrupção aparentemente não tem a mesma dimensão dos crimes cometidos nos governos petistas.

Mas sejamos realistas: de Bolsonaro e do Centrão não se esperava outra coisa senão uma constrangedora tentativa de negar ou relativizar o que a esta altura está à vista de todos. Por essa razão, é preciso que as autoridades ainda não contaminadas pelo cinismo bolsonarista investiguem esse caso a fundo e punam quem deve ser punido – não importa que cargo ocupe.

Brasil, um gigante anêmico

O Estado de S. Paulo

Atual presidente é culpado por recente queda em ranking de competitividade, mas não é o único: há décadas o País escolheu o caminho populista que conduz ao atraso

Maior economia do Hemisfério Sul e uma das 10 ou 12 maiores do mundo, o Brasil ocupou apenas o 25.º lugar, no ano passado, entre os exportadores de mercadorias, com vendas externas de US$ 280,8 bilhões. Só faturou, portanto, 1,2% do valor das exportações mundiais, US$ 22,3 trilhões, enquanto o pequeno Vietnã arrecadou 1,4%. Apesar do tamanho e da diversificação de sua indústria, o País só exibe eficiência e poder de competição na agropecuária, uma das mais fortes do mundo. Somados os dois setores, a economia brasileira ficou na 59.ª posição, em 2021, no ranking de competitividade elaborado periodicamente pela escola de negócios suíça IMD.

Usada internacionalmente como referência, essa classificação abrangeu 63 países. O Brasil só ficou à frente de África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela. Os cinco primeiros colocados foram Dinamarca, Suíça, Cingapura, Suécia e Hong Kong. As quatro maiores economias do mundo apareceram a partir da 10.ª posição, ocupada pelos Estados Unidos. A Alemanha ficou no 15.º lugar, a China ocupou o 17.º e o Japão apareceu no 34.º. Esses países são também os maiores exportadores.

Há muito tempo o Brasil é mal colocado em classificações de competitividade elaboradas por várias instituições. Durante anos foi muito mal avaliado em estudos do Fórum Econômico Mundial. Além disso, tem piorado no cenário global das exportações e na capacidade competitiva. Em 2021 apareceu em 57.º lugar no ranking IMD. Durante dez anos, até 2020, o País ficou em penúltimo lugar no conjunto de 18 economias analisadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

As ênfases podem variar, mas os comentários sobre o baixo poder de competição do Brasil destacam geralmente alguns fatores: tributação disfuncional, excesso de burocracia pública, insegurança jurídica, financiamento inadequado, atraso tecnológico, inovação insuficiente, infraestrutura deficiente, despreparo da mão de obra e baixa integração nas cadeias produtivas globais. A discussão envolve a taxa de investimento fixo muito modesta, raramente igual ou superior a 20% do Produto Interno Bruto (PIB), o pouco estímulo à pesquisa e as falhas da política educacional.

O baixo poder de competição reflete, portanto, deficiências ou erros em todos os setores da gestão pública e das políticas oficiais. O investimento insuficiente e mal administrado em logística, energia e sistemas de água e saneamento indica falhas de planejamento, uso ineficiente de recursos públicos, baixa coordenação de ações públicas e privadas e, com frequência, corrupção.

Também o setor privado investe menos que o necessário em máquinas, equipamentos, tecnologia e inovação. Isso se explica em parte pela escassez e pelo custo do capital. Mas é preciso levar em conta os casos de proteção excessiva contra a concorrência externa e os erros de escolha das prioridades oficiais.

Erros desse tipo são bem exemplificados pela desastrosa política, no período petista, dos campeões nacionais. A essa política se acrescentou a exagerada preferência pela integração com economias em desenvolvimento, enquanto outras potências emergentes buscavam acordos promissores com os mercados do mundo rico.

Todas essas deficiências foram agravadas a partir de 2019, quando se instalou em Brasília uma administração sem planejamento e sem objetivos claros de crescimento e de modernização. Do lado institucional, nada se fez de importante, além de uma reforma da Previdência já discutida e amadurecida na gestão anterior. As mudanças tributária e administrativa propostas pela equipe econômica passaram longe dos problemas de funcionalidade dos impostos e de eficiência da gestão pública. Enquanto a equipe falhava nesses pontos, o presidente Jair Bolsonaro renegava a ciência e devastava o Ministério da Educação e se envolvia, em parceria com o Centrão, na conversão do Orçamento Federal em instrumento de ações paroquiais e eleitoreiras. Não se cria competitividade nem com esse tipo de gestão nem – é importante lembrar – com populismo de esquerda.

Mais combustível, menos concorrência

O Estado de S. Paulo

Distribuidoras antecipam importação de diesel, enquanto ameaças de Bolsonaro reforçam concentração no setor

Grandes distribuidoras do País anteciparam pedidos de importação de diesel para garantir a oferta no auge da safra agrícola. Como mostrou o Estadão, a solicitação de licenças obtidas na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) aumentou mais de dez vezes. De 28, 31 e 52 em janeiro, fevereiro e março, respectivamente, elas passaram a 305 em abril e a 433 em maio. Já o volume a ser adquirido saiu de 225,6 milhões de quilos em janeiro para 1,803 bilhão em maio.

Cada licença tem validade de 90 dias, de modo que as empresas, que atuam como ponte entre refinarias e postos, demonstram precaução. A demanda global já vinha se recuperando mais rapidamente do que se esperava no pós-pandemia. Sanções impostas em razão do conflito na Ucrânia levaram países europeus a procurar outros fornecedores para substituir o gás e o diesel que compravam da Rússia. Além disso, as férias de verão no Hemisfério Norte devem elevar o consumo de combustível, ao mesmo tempo que a temporada de furacões tende a interromper a produção no Golfo do México.

Tudo indica que as cotações do barril de petróleo, há meses acima de US$ 100, continuarão pressionadas até o fim do ano. Para o Brasil, o cenário será particularmente desafiador. O País importa cerca de 30% de todo o diesel que consome, ou seja, não pode simplesmente segurar preços artificialmente sem causar perdas às distribuidoras. Para o presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), Eberaldo de Almeida, o maior tempo de espera por cargas e a queda do volume disponível para encomendas já refletem a demanda dos europeus. E, a despeito de todos os malabarismos patrocinados pelo governo Jair Bolsonaro para diminuir a tributação sobre os combustíveis, a escassez fez com que o preço médio do diesel superasse o da gasolina pela primeira vez desde 2004, segundo os dados mais recentes da ANP.

É oportuno que as distribuidoras ajam com responsabilidade para garantir a oferta de combustível na colheita e no escoamento da produção do agronegócio no segundo semestre – ainda mais quando Bolsonaro sinaliza intervenções e causa instabilidade às vésperas de uma eleição possivelmente perdida. Mas o fato é que as ameaças bolsonaristas não são apenas bravatas e têm tido consequências inegáveis. De todos os pedidos de importação de janeiro a maio, 81,5% foram realizados pela Vibra (antiga BR Distribuidora), Raizen e Ipiranga; as licenças atingiram 76,6% em termos de volume; a Petrobras foi responsável por dez pedidos e 11,9% do volume autorizado. Sem a mesma capacidade financeira para suportar prejuízos por tempo indeterminado, pequenos e médios importadores regionais têm deixado de atuar no setor. Depois de anos de recuo, a concentração de mercado voltou a se acentuar em 2021 e, com a ajuda do governo, tem sido reforçada em 2022 – na direção oposta a todas as iniciativas da ANP e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em prol da concorrência, único caminho efetivo para reduzir preços no médio e longo prazos.

País precisa cumprir a lei quando ela autoriza o aborto

O Globo

O aborto é questão complexa no mundo todo, como demonstra a celeuma em torno da revogação desse direito pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Mistura convicções pessoais, crenças religiosas e o bem mais precioso que existe, a vida. Por isso mesmo, costuma ser discutido com base na emoção, e não na razão. Ninguém faz aborto porque deseja, mas em decorrência de circunstâncias. Por esse motivo, nas sociedades modernas o procedimento costuma ser tratado como questão de saúde pública, já que qualquer regulação acarreta riscos às mulheres e custos à sociedade.

No Brasil, a legislação admite o aborto em casos de estupro e risco de vida para a mulher. Em 2012, o Supremo acrescentou também a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Portanto o aborto legal existe no Brasil, na forma como deliberado por duas instituições cardeais da nossa democracia: Legislativo e Judiciário. O problema está em fazer cumprir a lei.

Foi discutido intensamente nos últimos dias o caso de uma menina de 11 anos de Santa Catarina que sofreu estupro e precisou enfrentar uma via-crúcis para se submeter ao procedimento previsto em lei. Ela foi levada a um hospital que se recusou a interromper a gravidez, contra sua obrigação legal. Na Justiça, o sofrimento só aumentou. Promotora e juíza tentaram, de modo descabido, demover a menina para aumentar a chance de sobrevida do feto. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, perguntou a juíza Joana Ribeiro Zimmer, cuja conduta está sob investigação da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça.

É certo que ela seguia uma portaria do Ministério da Saúde que recomenda não interromper a gravidez após 22 semanas, mesmo em casos autorizados na legislação. Também é verdade que a lei não fixa outro limite nessas situações — deveria, para a decisão não depender da opinião de quem julga. Apesar da lacuna, a atitude da juíza foi absurda. Resultou numa odisseia que só acabou num aborto feito com quase 7 meses de gestação, situação em que seria vetado mesmo em países de legislação liberal. É inacreditável que se tenha chegado a tal desfecho, quando teria sido possível resolver o caso antes, se a lei tivesse sido cumprida.

Não se trata de caso isolado. A dificuldade para obter acesso ao procedimento legal é recorrente. Em 2020, uma menina de 10 anos do Espírito Santo precisou viajar até Pernambuco para conseguir realizar um aborto legal, recusado em seu estado.

Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que 35.735 crianças e adolescentes foram estuprados no Brasil no ano passado, estatística vergonhosa. São quase cem por dia, quatro por hora. O festival de horror não para por aí. Em 2021, 17.316 meninas tornaram-se mães. E 1.549 com idade até 14 anos morreram em decorrência da gravidez.

Tal tragédia deveria levar o país a discutir o aborto sob a ótica da saúde pública. Compreende-se que o tema seja delicado e que políticos de todos os matizes queiram passar longe dele com receio de danos à popularidade. Para piorar, o Ministério da Saúde fez uma cartilha equivocada afirmando que não existe aborto legal no país. Propôs até audiência pública para tratar do tema, iniciativa sem sentido, já que não há razão para não cumprir a lei. É inaceitável que, diante de tantas tragédias, o Estado adote a postura de punir a vítima, prolongando seu sofrimento.

Queda das criptomoedas soa alarme para necessidade de regular mercado

O Globo

A cotação das criptomoedas tem desabado no mundo todo. A mais popular, o bitcoin, chegou a valer perto de US$ 70 mil em 2021 e hoje está cotada na faixa dos US$ 20 mil, uma desvalorização da ordem de 70%. É um valor próximo aos US$ 15.760 que custa sua emissão — ou “mineração”, o intrincado método matemático usado em computadores para garantir sua autenticidade, com consumo colossal de energia. Em 2018 e 2020, quando a cotação caiu abaixo desse valor, vários “mineradores” de bitcoins abandonaram o mercado.

O naufrágio do bitcoin tem sido seguido pelos demais criptoativos, mesmo (e especialmente) os concebidos para não sofrer flutuações repentinas, conhecidos como “stablecoins”. Em maio o valor de mercado total das criptomoedas — que no final do ano passado chegara perto de US$ 3 trilhões — era estimado em US$ 1,2 trilhão, US$ 300 milhões a menos que no mês anterior. No último dia 19, já havia caído a US$ 790 bilhões. Desde então se recuperou um pouco, mas o quadro é de devastação.

Criado em 2008 com intenção de ser uma moeda fora do controle de qualquer Estado, e insuflado pelos temores despertados pela crise financeira, o bitcoin se tornou com o tempo, mais que a realização de um sonho dos libertários, o veículo predileto de golpistas e criminosos para lavagem de dinheiro. A China, no ano passado, proibiu as criptomoedas. No Brasil, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou um bem-vindo Projeto de Lei para regulá-las.

Se o projeto se tornar lei, será necessária autorização do Banco Central ou de outro órgão público para atuar no mercado de criptomoedas. Além disso, ele prevê alteração no Código Penal para tipificar fraudes cometidas com ativos digitais. Está claro que o arcabouço jurídico precisa ser aperfeiçoado para impedir e punir os desvios.

Um dos mais ácidos críticos das criptomoedas é o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, que as compara a um esquema de pirâmide financeira, insustentável no longo prazo sem o lastro de um Estado emissor. No Brasil, o caso do Faraó dos Bitcoins, preso por praticar fraudes com criptoativos, despertou a atenção para os riscos inerentes a esse universo.

Krugman aponta o erro dos entusiastas que os consideram investimento seguro contra a inflação. Questiona por que as criptomoedas desvalorizaram tanto quando a inflação passou a subir. Irônico, responde que pode ter sido coincidência, mas acredita que é porque começaram a faltar “novos trouxas” para participar do esquema de pirâmide. Não há, diz ele, como um ativo digital sem emissor central usufruir a mesma confiança que as moedas garantidas por um Estado. Bancos centrais como o brasileiro estudam lançar suas criptomoedas. Mas o real digital, embora baseado em tecnologia similar, será emitido, controlado e garantido por uma autoridade central — ao contrário do que acontece no mundo obscuro dos bitcoins.

Segundo semestre começa com desafios na economia

Valor Econômico

Daqui para a frente vão prevalecer fatores negativos, especialmente a política monetária restritiva

O segundo semestre começa nesta semana com previsões bastante negativas para a economia. Depois de um início de ano que surpreendeu pela recuperação estimulada pela reabertura dos negócios, retomada dos serviços e redução do desemprego e estímulos do governo, o ritmo deve arrefecer agora, nas proximidades das eleições. Não por coincidência surgem os planos do governo de injetar mais recursos nos negócios, com o aumento do Auxílio Brasil e do vale-gás e a criação do bolsa-caminhoneiro.

Até o Banco Central (BC) está cauteloso com os próximos meses. Em entrevista de antecipação do Relatório Trimestral de Inflação, o BC informou ter aumentado de 1% para 1,7% a previsão de aumento do PIB deste ano. Tomou a dianteira do próprio Ministério da Economia, que prevê expansão de 1,5%, e do mercado financeiro, que prevê variação de 1,2%, de acordo com o boletim Focus divulgado em 6 junho, sem atualizações mais recentes.

O número do BC embute a revisão para cima do crescimento da indústria, dos serviços e do consumo das famílias, a previsão de gastos menores do governo e de queda maior dos investimentos. Mas boa parte da melhoria é devida ao desempenho do primeiro e do segundo trimestres do ano. A perspectiva para os próximos meses é prejudicada pela incerteza causada pelo prolongamento da guerra na Ucrânia e dos riscos de desaceleração da economia global.

Mais pessimista do que o mercado, o Instituto Brasileiro de Economia da FGV estima crescimento de 0,9% do PIB neste ano. “As notícias boas para o consumo se concentraram neste primeiro semestre, e tudo indica que a massa de rendimentos do segundo semestre deve ter contração forte”, disse Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV Ibre em entrevista ao Valor (24/6).

A edição de junho do Boletim Macro avalia que foram transitórios os fatores que impulsionaram a economia no início do ano, como a reabertura da economia, o aquecimento dos serviços e a alta das commodities. Já no início do segundo trimestre, a ampliação do alcance do Auxílio Brasil, a antecipação do pagamento do 13º salário de aposentados e a liberação do FGTS contribuíram para manter algum gás na economia, favorecendo o setor de serviços, o que também tem efeito positivo no mercado de trabalho por ser intensivo em mão de obra. Mas a inflação elevada contém o resultado.

Daqui para a frente, acreditam os economistas da FGV Ibre, vão prevalecer fatores negativos, especialmente a política monetária restritiva, com juros em alta não só no mercado doméstico como também no cenário internacional. No exterior, o Federal Reserve começou a agir mais firmemente ao elevar em 0,75 ponto a taxa básica de juros.

Na frente doméstica, o próprio BC prometeu juros altos por mais tempo, mas sem uma sinalização de sucesso mais significativo sobre a trajetória da inflação a curto prazo. O resultado do IPCA-15 de junho, de 0,69%, acima do consenso do mercado, indica persistência e alta disseminada dos preços. A tendência, segundo Silvia Matos, é convivermos com inflação elevada e juros na casa de dois dígitos pelo menos até o fim de 2023. A combinação é explosivamente negativa para o consumo e deve pesar também no endividamento das famílias.

Não se devem esquecer as turbulências políticas causadas pela campanha eleitoral, que já estão aumentando o risco fiscal e pressionam o câmbio. O pacote de medidas para tentar amenizar os efeitos da alta dos combustíveis deve custar ao governo R$ 34,8 bilhões, conforme informou o próprio relator da proposta de emenda à Constituição (PEC) que abrirá caminho aos benefícios, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE).

Os recursos a serem injetados no mercado, como o aumento do valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, podem trazer algum gás adicional para a economia, mas nem de perto próximo do efeito que teve no primeiro ano da pandemia, quando cerca de 66 milhões de pessoas o receberam, garantindo certo apoio a Bolsonaro. O governo sonha em recuperar o prestígio que teve na época, mas o número de beneficiados é muito menor - 18 milhões, segundo o governo. Mas há uma fila de 1 milhão de famílias para serem cadastradas e chegaria a 2,8 milhões pelo levantamento feito pela Confederação Nacional de Municípios, a CNM (Estadão, 19/6). Qualquer que seja o número, tanto o potencial eleitoral da medida quanto o de estímulo à economia são bem menores do que no passado e não melhoram o cenário do segundo semestre.

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