terça-feira, 28 de junho de 2022

Cristovam Buarque*: Fome dos que comem

Correio Braziliense

Há duas fomes no Brasil de hoje: a fome de comida, que maltrata e mata, e a fome da moral, dos que assistem à tragédia sem indignação com o sofrimento dos outros, nem inteligência para perceber o custo social e econômico para todo o país.

Assistimos constrangidos aos 33,1 milhões de brasileiros dormindo, acordando e sobrevivendo sem se ter o que comer, ao mesmo tempo que sabemos que essa fome não decorre da escassez de alimentos no país. Nosso território não é desértico, não estamos vivendo uma guerra, não fomos invadidos. É vergonhoso que a fome ocorra num país que está entre os maiores exportadores do mundo, onde o agronegócio produz safras recordes sucessivas, em que os supermercados estão sempre abastecidos, e a televisão divulga dezenas de publicidades para vender comida e apresenta horas por dia de programas realities com concursos, lições e turismo de gastronomia.

Alguns países, mais populosos, também têm contingentes de famintos, mas nenhum deles tem tanta comida disponível, tanta propaganda de alimento, nem tanta apologia à gastronomia ao lado dos noticiários da fome na televisão. A fome de alguns não vem, também, da disputa pela comida que é suficiente para alimentar muitos brasis; a falta de educação também não decorre da necessidade de negar a educação a alguns para oferecer a outros. Ambas as fomes, de comida e de educação, são resultado da maldade, da insensibilidade e da estupidez.

A fome africana ocorre por falta de comida no país, a fome brasileira é por falta de acesso dos famintos à comida que existe disponível ao redor. Nossa vergonha vem da falta de solidariedade com os que passam fome e de competência para levar a comida de onde sobra para onde falta. A fome é causada pela insensibilidade social e por prioridades equivocadas na política. Nossa vergonha vem da banalidade de como vivemos em um mesmo país com falta para alguns e com excesso de comida para outros. Há um constrangimento pelas notícias da fome e vergonha por não termos justificativa para que ela ocorra. A única explicação está na indiferença diante dela e na incompetência para evitá-la.

Se o faminto contaminasse as pessoas alimentadas, como o vírus faz ao passar de um indivíduo doente para um saudável, certamente já teríamos aplicado a vacina disponível: garantindo acesso de todos à comida que sobra, construindo uma economia dinâmica para gerar emprego, assegurando renda suficiente ou simplesmente distribuindo comida diretamente a quem precisa. O mesmo acontece com o analfabetismo: se os cerca de 13 milhões de adultos analfabetos contaminassem aqueles que já aprenderam a ler, rapidamente surgiria a vacina: escola para todos desde a primeira infância e programas para a erradicação entre os adultos.

As fomes brasileiras, de comida e de educação, são resultado da insensibilidade daqueles que comem em relação aos que não comem e dos educados diante dos que não sabem ler. Insensibilidade e estupidez, porque o Brasil seria muito mais rico, mais belo e melhor para viver se não houvesse fome e se todos fossem satisfatoriamente educados. Alimentar os 33 milhões que passam fome não apenas reduziria o sofrimento dessas pessoas e suas famílias, mas melhoraria imediatamente a vida de todos nós, sem a vergonha que sentimos, e beneficiaria a todos com o trabalho produtivo dessas pessoas.

Da mesma forma, a educação de todos não apenas daria nova vida a esses analfabetos, mas também elevaria a produtividade do trabalhador brasileiro, a renda social, a riqueza de todos. A fome e o analfabetismo são prova de insensibilidade, mas também de estupidez nacional, porque atingem diretamente os que não comem e não sabem ler, mas também indiretamente os que comem e os instruídos. A fome está no estômago de quem não tem comida, mas também no coração e na mente dos que comem, especialmente aqueles que têm poder para mudar a realidade, criar mecanismos para que o excesso chegue aos que têm escassez de comida. Mas para que isso ocorra é preciso matar a fome dos que comem: fome de indignação e de inteligência.

*Professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação

5 comentários:

Anônimo disse...

Nem a fome justifica roubar, pior ainda roubar para enriquecimento próprio. Nem Lula nem Bolsonaro, um político que não seja ladrao da pátria, por favor. Busquemos um presidente que não roube dos pobres,por favor. A nossa independência pautou-se numa diarreia quando os demais
Povos lutaram pela sua independência, que tenhamos coragem de lutar , pelos menos nessa hora. Não queremos ladroes

Anônimo disse...

Confessa, no fundo estás atrás de sombra e água fresca,
Um carguinho no PT, saudade né?

Anônimo disse...

O mundo ingrato! 2 candidatos ladroes.

ADEMAR AMANCIO disse...

Um terço dos alimentos são desperdiçados,se bem distribuídos daria para alimentar todo mundo.

Fernando Carvalho disse...

Cristovam Buarque me lembrou uma crônica de Rubem Braga de 1945 quando ele cobria a FEB na Itália: "Sim, tenho visto alguma coisa e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres".