terça-feira, 28 de junho de 2022

Carlos Andreazza: Lira jantando

O Globo

Não é normal que presidente da Câmara — ou do Senado — ofereça jantar em honra a ministros do Supremo. Qualquer que seja o ministro; qualquer, a razão. Não é normal que político — de alto ou baixo clero — convide juiz para convescote em casa; qualquer que seja o tempo. A razão para recusar sem ser deselegante é a prudência que oferece: não existe refeição grátis em Brasília.

Fulanizemos: o que pretenderá alguém como Arthur Lira ao promover celebração a ministro do STF, no caso Gilmar Mendes, senão demonstrar Poder? Seria gesto para comprometer miudamente, não fosse sobretudo um comprometimento ao exercício impessoal do poder na República. Com todas as vênias: não pode um juiz aceitar afago daquele cujo foro tem lugar no tribunal que compõe.

Se os ministros do Supremo erram nos convites oficiais que fazem, vide a infiltração militar golpista no TSE, quanto errarão nos informais que aceitam?

Não é normal — não se for a República — que juiz de tribunal superior transite naturalmente entre políticos. Não é normal que ministro de Corte constitucional seja articulador-formulador de soluções para impasses políticos.

Sacrifica-se a percepção de Estado de Direito quando os mais poderosos, inclusive os guardiões da Constituição, concertam-se em confrarias.

É a percepção de ministros da Corte constitucional como agentes políticos — negociadores junto aos Poderes, ao mesmo tempo que tomadores de prerrogativas do Parlamento e do Executivo — que faz ascender figuras como Kassio Nunes Marques e André Mendonça; porque ao presidente de turno, tanto mais um para quem a República é empecilho, sempre será tentador ter os seus homens num tribunal onipresente, que se lança a agir de ofício, a interferir, não raro provocador, em vez de responder a provocações.

Por que não ter o meu ministro, os meus? — projetará. Quão atraente será possuir — sob a vara de um togado de confiança — os instrumentos com que se concebeu, em nome da virtude, o inquérito das fake news, que já censurou uma revista?

A gente sabe como o arreganho começa, e até avalia que virá para o bem, mas nunca sabe aonde vai. Acabada a Lava-Jato, resta o lavajatismo como Zeitgeist.

O Supremo que se admite como engenheiro constrói arapuca contra si. O tribunal que se põe a andar — mesmo a legislar — em nome de causas virtuosas é o mesmo cuja atividade expansiva cria as condições para o contra-ataque reacionário quando mudada sua composição. Aquele que não se equilibra se oferece aos ventos. Última palavra, o STF deveria zelar por não abusar desse apanágio, especialmente no momento em que não faltam candidatos a Poder Moderador.

Lira mesmo, ou não será um dos patrocinadores da PEC que pretende transformar o Congresso em instância revisora de decisões do STF? O presidente da Câmara é senhor do Orçamento cuja gestão secreta e arbitrária — para a qual o Supremo faz vista grossa — consiste na própria ainda existência competitiva do governo do autocrata Jair Bolsonaro. Não dá para fazer discurso pela democracia e depois ir beber o vinho na casa do sócio-investidor do projeto bolsonarista.

Lira, com seus modos autoritários, é fiador legislativo — associado também nos costumes — de um presidente cujo populismo se exerce numa geração permanente de conflitos artificiais que erodem a República. O presidente da Câmara está muito à vontade nisso, conjugando a aplicação patrimonialista para o que seja harmonia entre Poderes. Estão — estavam — à vontade os ministros do Supremo?

Fico aqui pensando em como reage o cidadão brasileiro cada vez que escuta ou lê a pregação sobre balanço republicano e separação entre Poderes.

Ministros do Supremo — cujas canetas podem distribuir decisões monocráticas que, afinal, beneficiam um ou outro — precisam evitar que o tipo de vida social que têm os coloque sob desconfiança; coloque as decisões que tomam sob suspeita. A descrença é grande e vai profissionalmente explorada. E não importa que Bolsonaro também estivesse no jantar. O bolsonarismo explorará a promiscuidade caracterizada na ideia de um sistema — aquele (de que faz parte) que não o deixaria governar — que se resolve na mesa, à noite, sem os freios da impessoalidade de uma agenda pública.

Mas, sim, Bolsonaro estava lá, o herói que só quer mesmo salvar a própria pele e a dos filhos. Há relatos de que esteve a portas fechadas com Alexandre de Moraes. Gostaria de entender a validade — em junho de 2022, depois de tudo quanto já barbarizado — de conversas secretas com o capitão, senão ofertar as circunstâncias-armadilhas para que ele, sem deixar de atacar o Supremo, fale em acordos de alcova não cumpridos por ministro da Corte. Foi o que ocorreu após o 7 de Setembro. E já vem outro aí.

É hora de menos papinho e de mais plenário.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hora de ir à luta, não queremos ladroes a governar-nos. Se todo mundo pudesse entender não votava em ladroes e quem não soubesse o mínimo sobre governar.