terça-feira, 28 de junho de 2022

Pedro Cafardo: As lições do Brasil desenvolvimentista

Valor Econômico

O discurso de reformas dos neoliberais deu com os burros n’água

Está nas livrarias e circula no meio acadêmico desde o fim do ano passado um livro que pode jogar luzes sobre o atual momento brasileiro: “O Brasil Desenvolvimentista e a Trajetória de Rômulo Almeida”, do economista Alexandre de Freitas Barbosa, professor de história econômica e economia brasileira no IEB-USP.

Nos anos 1950, conta o autor, os “intelectuais orgânicos do Estado”, encarregados da montagem da infraestrutura econômica e social subjacente à industrialização, trabalhavam como parceiros. De um lado atuavam os desenvolvimentistas “stricto sensu”, como Rômulo Almeida, Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira e Cleando de Paiva Leite. De outro, os desenvolvimentistas “mercadistas”, como Roberto Campos, Lucas Lopes e Glycon de Paiva.

Movidos por ideologias, os dois grupos de funcionários de carreira do governo tinham projetos de desenvolvimento diferentes para o país. Os primeiros propunham a diversificação do mercado interno, reformas de base e mudança nas relações centro-periferia, por meio do planejamento estatal. Para os “mercadistas”, muito preocupados com o equilíbrio fiscal e cambial, os dados da nação (território, população e dotação de fatores produtivos) formavam uma equação que deveria levar à acumulação de capital. E o papel do Estado seria supletivo, deixando ao setor privado e ao capital estrangeiro a tarefa de dinamizar e ampliar o mercado.

Os dois grupos se reconheciam como parceiros, embora discordassem sobre meios e fins do desenvolvimento capitalista no Brasil. Só em 1959, quando o país rompeu com o FMI, os “mercadistas” deixaram o governo e mais tarde se aliaram aos liberais Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.

O livro do professor Barbosa é uma pesquisa de grande porte, que exigiu dez anos de trabalho - só para entender os meandros da criação da Petrobras, em 1954, foram seis meses de “escavações”. A obra não é uma biografia de Rômulo Almeida (1914-1988). Mas ela resgata parte da carreira desse advogado, político, escritor e professor baiano, um personagem meio esquecido na história brasileira, expoente da elite dirigente da economia, principalmente no segundo governo Vargas e na formação do que Barbosa chama de Brasil Desenvolvimentista.

A leitura do livro sugere duas perguntas óbvias ao autor: as divergências daquela época não se parecem com as de hoje, entre os economistas neoliberais e progressistas? Com seu olhar de historiador, Barbosa acharia possível a convivência entre os dois grupos rivais atuais, que poderiam trabalhar como parceiros em um futuro governo democrático a ser eleito em outubro?

O economista não diz sim a nenhuma das duas perguntas. Afirma que os atores do Brasil desenvolvimentista eram privilegiados intelectuais e técnicos - poucos economistas - que tinham visões e propostas ora convergentes, ora conflitantes. E o debate se dava no seio do Estado, onde se faziam alianças para determinados projetos de desenvolvimento. Os dois grupos criaram, por exemplo, o BNDES e a Petrobras.

Havia um total engajamento dos “intelectuais orgânicos do Estado”, que Getúlio chamava de “boêmios cívicos” - alguns chegavam a dormir na sala de trabalho. A diferença fundamental em relação a hoje era o desenvolvimento pensado não apenas em função de uma operação de política econômica. Incluía reforma do Estado, coalização com os setores da sociedade, projetos como o de reforma agrária, desenvolvimento regional, política educacional e cultural etc.

O Brasil desenvolvimentista e os “intelectuais orgânicos de Estado”, segundo Barbosa, morreram com o golpe de 1964. “A partir daí, o Estado virou máquina para catapultar a acumulação de capital e promover desigualdade. O desenvolvimentismo virou só crescimento.”

Os neoliberais de hoje, observa Barbosa, são completamente diferentes dos mercadistas de ontem - mercadista típico seria um Luiz Carlos Mendonça de Barros. Eles acreditavam no papel do Estado, mas com atuação supletiva e que cessaria em algum momento. Debatiam com setores de Exército, cultura, habitação, educação, trabalho, inserção social.

Hoje, diz Barbosa, economistas acham que fazer desenvolvimento é criar empresas, cortar gastos, controlar inflação, subir e baixar juros e câmbio. Pensam que todo o problema do desenvolvimento se restringe à economia, inclusive muitos heterodoxos. “Para os ortodoxos, não tem história, não tem nação, não tem sociedade. Não percebem que seu discurso de que o Brasil não cresce sem as reformas propostas por eles está gasto, deu com os burros n’água. Terão de admitir que o Brasil precisa crescer e não depende das reformas deles para isso. Depende de reformas voltadas para um desenvolvimento inclusivo e para outro tipo de inserção internacional.”

Barbosa não vê polarização no debate econômico, porque considera que os neoliberais, parte da mídia e o setor financeiro monopolizaram o debate e acha que uma possível vitória de Lula vai trazer propostas muito diferentes. “Quando se fala em convivência entre economistas tem que se levar em conta um contexto mais amplo, as classes sociais e seus agentes. Pode haver negociação com liberais como Pérsio Arida, Gustavo Franco, Arminio Fraga. Nomes como esses cumprem papel não só de gestores, mas especialmente de comunicadores. Eles aceitarão conversar, porque querem atuar sempre, mas terão de admitir que o discurso das reformas deles morreu.”

Terceira via

A conclusão que se segue não tem autoria do professor Freitas Barbosa. Foi apenas imaginada pelo colunista:

As “almas bondosas” que tanto clamam por uma terceira via política poderiam entender que há também uma possível terceira via econômica, nem radicalmente heterodoxa nem teimosamente ortodoxa. Contando a história do Brasil desenvolvimentista, o professor joga luzes sobre essa via. Quem sabe depois de décadas de desindustrialização, outros “intelectuais orgânicos de Estado” possam trabalhar para incluir o Brasil na nova revolução industrial que vem aí para descarbonizar o planeta. Mas eles não poderão pensar só em economia e será preciso haver uma aliança sólida, de parceiros, para mudanças institucionais de longo prazo numa sociedade bem diferente daquela dos anos 1950. Essa parece ser a lição mais clara deixada pela era do Brasil desenvolvimentista narrada num livro de história com potencial para atuar sobre o presente.

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