Valor Econômico
O discurso de reformas dos neoliberais deu
com os burros n’água
Está nas livrarias e circula no meio
acadêmico desde o fim do ano passado um livro que pode jogar luzes sobre o
atual momento brasileiro: “O Brasil Desenvolvimentista e a Trajetória de Rômulo
Almeida”, do economista Alexandre de Freitas Barbosa, professor de história
econômica e economia brasileira no IEB-USP.
Nos anos 1950, conta o autor, os
“intelectuais orgânicos do Estado”, encarregados da montagem da infraestrutura
econômica e social subjacente à industrialização, trabalhavam como parceiros.
De um lado atuavam os desenvolvimentistas “stricto sensu”, como Rômulo Almeida,
Ignácio Rangel, Jesus Soares Pereira e Cleando de Paiva Leite. De outro, os
desenvolvimentistas “mercadistas”, como Roberto Campos, Lucas Lopes e Glycon de
Paiva.
Movidos por ideologias, os dois grupos de
funcionários de carreira do governo tinham projetos de desenvolvimento
diferentes para o país. Os primeiros propunham a diversificação do mercado interno,
reformas de base e mudança nas relações centro-periferia, por meio do
planejamento estatal. Para os “mercadistas”, muito preocupados com o equilíbrio
fiscal e cambial, os dados da nação (território, população e dotação de fatores
produtivos) formavam uma equação que deveria levar à acumulação de capital. E o
papel do Estado seria supletivo, deixando ao setor privado e ao capital
estrangeiro a tarefa de dinamizar e ampliar o mercado.
Os dois grupos se reconheciam como parceiros, embora discordassem sobre meios e fins do desenvolvimento capitalista no Brasil. Só em 1959, quando o país rompeu com o FMI, os “mercadistas” deixaram o governo e mais tarde se aliaram aos liberais Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.
O livro do professor Barbosa é uma pesquisa
de grande porte, que exigiu dez anos de trabalho - só para entender os meandros
da criação da Petrobras, em 1954, foram seis meses de “escavações”. A obra não
é uma biografia de Rômulo Almeida (1914-1988). Mas ela resgata parte da
carreira desse advogado, político, escritor e professor baiano, um personagem
meio esquecido na história brasileira, expoente da elite dirigente da economia,
principalmente no segundo governo Vargas e na formação do que Barbosa chama de
Brasil Desenvolvimentista.
A leitura do livro sugere duas perguntas
óbvias ao autor: as divergências daquela época não se parecem com as de hoje,
entre os economistas neoliberais e progressistas? Com seu olhar de historiador,
Barbosa acharia possível a convivência entre os dois grupos rivais atuais, que
poderiam trabalhar como parceiros em um futuro governo democrático a ser eleito
em outubro?
O economista não diz sim a nenhuma das duas
perguntas. Afirma que os atores do Brasil desenvolvimentista eram privilegiados
intelectuais e técnicos - poucos economistas - que tinham visões e propostas
ora convergentes, ora conflitantes. E o debate se dava no seio do Estado, onde
se faziam alianças para determinados projetos de desenvolvimento. Os dois
grupos criaram, por exemplo, o BNDES e a Petrobras.
Havia um total engajamento dos
“intelectuais orgânicos do Estado”, que Getúlio chamava de “boêmios cívicos” -
alguns chegavam a dormir na sala de trabalho. A diferença fundamental em
relação a hoje era o desenvolvimento pensado não apenas em função de uma operação
de política econômica. Incluía reforma do Estado, coalização com os setores da
sociedade, projetos como o de reforma agrária, desenvolvimento regional,
política educacional e cultural etc.
O Brasil desenvolvimentista e os
“intelectuais orgânicos de Estado”, segundo Barbosa, morreram com o golpe de
1964. “A partir daí, o Estado virou máquina para catapultar a acumulação de
capital e promover desigualdade. O desenvolvimentismo virou só crescimento.”
Os neoliberais de hoje, observa Barbosa,
são completamente diferentes dos mercadistas de ontem - mercadista típico seria
um Luiz Carlos Mendonça de Barros. Eles acreditavam no papel do Estado, mas com
atuação supletiva e que cessaria em algum momento. Debatiam com setores de
Exército, cultura, habitação, educação, trabalho, inserção social.
Hoje, diz Barbosa, economistas acham que
fazer desenvolvimento é criar empresas, cortar gastos, controlar inflação,
subir e baixar juros e câmbio. Pensam que todo o problema do desenvolvimento se
restringe à economia, inclusive muitos heterodoxos. “Para os ortodoxos, não tem
história, não tem nação, não tem sociedade. Não percebem que seu discurso de
que o Brasil não cresce sem as reformas propostas por eles está gasto, deu com
os burros n’água. Terão de admitir que o Brasil precisa crescer e não depende
das reformas deles para isso. Depende de reformas voltadas para um
desenvolvimento inclusivo e para outro tipo de inserção internacional.”
Barbosa não vê polarização no debate
econômico, porque considera que os neoliberais, parte da mídia e o setor
financeiro monopolizaram o debate e acha que uma possível vitória de Lula vai
trazer propostas muito diferentes. “Quando se fala em convivência entre
economistas tem que se levar em conta um contexto mais amplo, as classes sociais
e seus agentes. Pode haver negociação com liberais como Pérsio Arida, Gustavo
Franco, Arminio Fraga. Nomes como esses cumprem papel não só de gestores, mas
especialmente de comunicadores. Eles aceitarão conversar, porque querem atuar
sempre, mas terão de admitir que o discurso das reformas deles morreu.”
Terceira via
A conclusão que se segue não tem autoria do
professor Freitas Barbosa. Foi apenas imaginada pelo colunista:
As “almas bondosas” que tanto clamam por uma terceira via política poderiam entender que há também uma possível terceira via econômica, nem radicalmente heterodoxa nem teimosamente ortodoxa. Contando a história do Brasil desenvolvimentista, o professor joga luzes sobre essa via. Quem sabe depois de décadas de desindustrialização, outros “intelectuais orgânicos de Estado” possam trabalhar para incluir o Brasil na nova revolução industrial que vem aí para descarbonizar o planeta. Mas eles não poderão pensar só em economia e será preciso haver uma aliança sólida, de parceiros, para mudanças institucionais de longo prazo numa sociedade bem diferente daquela dos anos 1950. Essa parece ser a lição mais clara deixada pela era do Brasil desenvolvimentista narrada num livro de história com potencial para atuar sobre o presente.
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