O Estado de S. Paulo
A literatura internacional é fértil em demonstrar que, nem sempre, aos altos custos cobrados pela indústria farmacêutica estão associados benefícios compatíveis
Numa população cada vez mais idosa, é
imperativo discutir os custos associados à assistência à saúde. Hoje, cerca de
16% da população brasileira tem 60 anos ou mais de idade, o dobro do que
tínhamos no início deste século. Até 2025, esse grupo etário terá novamente
dobrado de proporção. Significa que estamos vivendo mais, o que é ótimo, mas
precisamos estar desde já preparados para os impactos que o avanço demográfico
acarretará na vida de todos. A saúde é onde essa mudança produzirá uma das
consequências mais evidentes.
É nos tratamentos de saúde que os avanços tecnológicos mais se fazem notar. Novos equipamentos, novos medicamentos, novas terapias ajudam a salvar mais vidas e a produzir mais bem-estar para as pessoas. No entanto, essas inovações estão entre os bens mais caros que as modernas sociedades têm produzido, obrigando os decisores a mensurarem seus reais benefícios para a população, sejam eles custeados pelos serviços públicos – no nosso caso, o SUS – ou pela saúde privada.
Lidamos com recursos escassos e, portanto,
precisamos fazer escolhas que maximizem os resultados para a sociedade. A
melhor técnica sugere a tomada de decisões a partir de critérios científicos
objetivos, baseados em evidências. Na saúde, o fundamento respalda-se na
avaliação de custo-efetividade, avaliando benefícios adicionais que determinada
terapia produz em comparação a outras já disponíveis. Os melhores, mais
abrangentes e mais equilibrados sistemas de assistência do mundo, como o NHS
inglês, funcionam assim.
Nessa equação, um item em particular merece
maior atenção, pois nem sempre é percebido como um dos fatores mais relevantes
da formação de custos na saúde: os medicamentos. Segundo o IBGE, eles consomem
34% das despesas das famílias brasileiras com saúde, o que equivale a R$ 180
bilhões por ano ou cerca de 2% do PIB. Medicamentos são, conforme a OCDE, o
gasto em saúde com crescimento mais acelerado no mundo, também refletindo
interesses poderosos e de toda ordem em jogo, a começar pela indústria farmacêutica.
O Brasil tem um sistema de incorporação de
medicamentos que se mostra muito aquém do que a realidade atual e as
perspectivas demográficas futuras recomendariam. Os sistemas público e privado
têm estruturas paralelas de avaliação, com critérios distintos e efeitos
diversos sobre as respectivas parcelas da população atendidas. Modelo que induz
a uma discriminação entre os cidadãos quanto a seu acesso à saúde, o que é
claramente indesejável.
Além disso, as decisões relativas à adoção de
novos medicamentos, infelizmente, não se baseiam em políticas públicas de saúde
pré-estabelecidas, como seria de se esperar quando se persegue o máximo de
benefícios para a população. Os números atestam o predomínio do interesse
mercadológico: em 2022, 83% dos pedidos de incorporação de medicamentos no País
foram apresentados pela indústria farmacêutica. Ou seja, a partir da demanda de
quem quer vender, uma evidente distorção.
Não estamos falando de alguma nova dipirona,
mas de produtos cuja dose única pode chegar a alguns milhões de reais, como é o
caso do Zolgensma, utilizado no tratamento de atrofia muscular espinhal e
adotado no Brasil com critérios e preços diferentes para o SUS e para a saúde
suplementar. Não se trata de exemplo isolado, mas de algo, como vimos, que
tende a se tornar cada vez mais recorrente, com impactos crescentes sobre as
contas de saúde nacionais.
Além de caras, muitas dessas tecnologias
entram no mercado sem evidências científicas robustas. A literatura
internacional é fértil em demonstrar que, nem sempre, aos altos custos cobrados
pela indústria estão associados benefícios compatíveis. Um exemplo: dois terços
das drogas para tratamento de câncer – cujo custo cresceu dez vezes na última
década – aprovadas pela agência europeia de medicamentos entraram no mercado
sem evidência de aumento de sobrevida ou de ganho de qualidade de vida. Para as
que demonstraram algum benefício, a mediana de sobrevida foi de menos de três
meses.
Um mercado com tamanhas assimetrias é um
prato cheio para judicializações, como temos visto acontecer no País. E os
tribunais são, sem sombra de dúvida, a pior forma de fazer política de saúde. A
boa notícia é que, há duas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou
maioria para estabelecer critérios mais rígidos, baseados em evidências, para o
fornecimento de medicamentos de alto custo não cobertos pelo SUS – com provável
consequência futura sobre os planos de saúde. A decisão envolve competência,
custeio e ressarcimento em demandas relacionadas a medicamentos não
incorporados, alvo de milhares de causas dirigidas ao Judiciário.
É preciso ir um pouco mais além, contudo. A
adoção de uma agência unificada de avaliação de tecnologias em saúde, que
examine as incorporações tanto para o SUS quanto para a saúde privada, é
essencial. Além disso, é importante um compartilhamento de riscos, em que a
indústria farmacêutica seja corresponsável pelo financiamento dos novos
medicamentos mediante critérios de sucesso dos tratamentos. Sem isso, a
sociedade vai continuar arcando com custos cada vez mais altos sem saber ao
certo se estão ou não produzindo o benefício prometido.
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