quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Cristovam Buarque - Ambição de bombeiros

Correio Braziliense

O governo parece se comportar como bombeiro no presente e incendiário para o futuro. Não apenas no que se refere à crise ambiental e aos incêndios nas florestas

O presidente Lula denunciou nas Nações Unidas a falta de ambição dos líderes mundiais. Na verdade, eles têm ambição limitada a apagar incêndios imediatos dentro de seus respectivos países. Não estão prontos para grandes problemas da humanidade e do planeta, nem para construir o futuro no longo prazo. A política ficou mundial, mas a democracia continua nacional e imediatista. A civilização ficou planetária, mas o interesse do eleitor continua imediatista e vinculado ao seu país, elegendo governantes com ambição de bombeiro para seus problemas e não estadistas para a humanidade.

As Nações Unidas se reúnem como se o mundo ainda fosse a soma dos países sem o entendimento atual de cada país ser a soma do mundo. A humanidade precisa de governantes com ambição para formular e construir um novo tipo de progresso, mas o eleitor se mantém em busca de bombeiros locais. 

Bombeiros estão entre as mais nobres profissões. São absolutamente necessários, mas insuficientes: não constroem, nem tomam as medidas para impedir repetição de erros incendiários. Os governos não se justificam, limitam seu papel a controlar incêndios, sem construir futuro melhor para a humanidade.

Nessas últimas semanas, o governo brasileiro tem passado a ideia de bombeiro, limitando suas ações a apagar incêndios que não conseguiu evitar. As reuniões que faz são no sentido de mostrar ativismo para barrar a imensa onda de fogo que destrói nossas florestas, não para definir políticas que protejam as matas no futuro, ainda menos para utilizá-las como fonte de riqueza sustentável.

O Ministério do Meio Ambiente parece ter sucumbido ao espírito bombeiro, esquecendo seus sonhos de desenvolvimento sustentável. Todo esforço limitado à tentativa de parar os incêndios. Como se o ministério só existisse agora para isso e ninguém tivesse alternativa para depois que o fogo for controlado. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, que deveria aproveitar a janela mundial de oportunidade para formular o ambicioso plano de metas da era digital e ecológica, parece assistir ao trabalho dos bombeiros enquanto outros acirram o fogo.

Na mesma semana em que denuncia a falta de ambição de seus colegas, o presidente Lula comemorou o aumento da produção de petróleo e acena para autorizar a exploração de novos poços no litoral próximo à Amazônia. De olho nos votos locais na próxima eleição, senadores que antes defendiam a liderança do Brasil para um mundo com desenvolvimento sustentável, agora indicam que a exploração de combustível fóssil na Amazônia é necessária para aumentar a renda local, mesmo sabendo que essa riqueza não fica localmente e que suas consequências se espalham pelo planeta, trazendo de volta os efeitos das mudanças climáticas que acirram os incêndios. Além de não construir o futuro, estamos agindo como bombeiros piromaníacos: provocando o fogo que dizemos combater. Com elevado custo econômico para não perder votos e por falta de proposta alternativa.

O governo parece se comportar como bombeiro no presente e incendiário para o futuro. Não apenas no que se refere à crise ambiental e aos incêndios nas florestas. Na área de educação, mitiga a desigualdade nas escolas de base, com cotas e bolsas, mas sem agir para construir um robusto sistema nacional de educação de base com qualidade e equidade. Tenta reduzir o incêndio da penúria com aumento do programa Bolsa Família, mas sem uma estratégia de médio e longo prazo para eliminar a persistência da pobreza, nem para tirar o Brasil da armadilha que amarra nossa produtividade e a renda média, nem para distribuir com justiça a renda gerada. No social, o governo se comporta como bombeiro, sem uma estratégia construtora de longo prazo. O mesmo pode-se dizer da economia, tratada para apagar os incêndios do dia, inflação, deficit público, taxa de juros, mas sem formulação de longo prazo.

Olhando para o passado recente, temos um governo que pelo menos joga água para apagar incêndios, mas não dá sinais de ter uma bússola apontando para o futuro, nem quais as ferramentas necessárias para construí-lo. É possível que o governo bombeiro tenha êxito contra o fogo nas florestas antes mesmo de as chuvas chegarem, e seus ministros comemorem como vitória deles, mas, como disse o Lula na ONU, sem ambição para apresentar medidas estruturais. Sem ambição até mesmo para quem propõe ir além da ambição de bombeiro: apagar fogo. Felizmente, os bombeiros ficarão de prontidão: mas Lula tem razão, é preciso mais ambição, inclusive dele.

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