Valor Econômico
No Brasil, base da pirâmide aposta menos em
políticas públicas
Em uma padaria do Sudoeste, região do Plano
Piloto de Brasília, o consultor político Creomar de Souza foi abordado no
início desse ano de uma maneira pouco comum por um vendedor de balas. "Não
estou pedindo pra você comprar pra me ajudar. Estou pedindo para você ser
parceiro de meu sonho", disse o rapaz. A abordagem chamou a atenção de
Creomar, que pediu mais detalhes. O rapaz disse que havia recebido um estoque
de balas da Igreja que frequenta, em troca do compromisso de devolver o
dinheiro das vendas à preço de custo. A diferença seria dividida em duas partes
iguais: metade para a sobrevivência, metade para a formação de capital para
empreender de alguma forma no futuro.
Creomar usa essa história como símbolo de uma transformação social que o "mainstream" da política ainda não teria conseguido captar plenamente: o avanço das igrejas evangélicas pentecostais e o esgotamento das ferramentas de ascensão proporcionadas por políticas públicas ou pelo mercado de trabalho formal fortaleceu o empreendedorismo como o plano A de sobrevivência, para um contingente cada vez mais expressivo. "Se essa perspectiva é ilusória ou real é outra questão. Mas o fato é que politicamente para este contingente o Estado deixa de ser um provedor de soluções", comentou. Histórias como a do vendedor de balas se entrelaçam com a própria história de Creomar. Negro, o hoje consultor político cresceu no Guará, bairro periférico de Brasília, filho de uma faxineira. Foi empacotador na juventude. "A base da pirâmide teve suas necessidades transformadas", diz. É daí que se alimenta parte da Direita antissistema que ganha protagonismo na cena eleitoral, aponta.
Segundo dados da pesquisa Global
Entrepreneurship Monitor (GEM) de 2023, estudo feito pelo Sebrae em parceria
com a Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas
Empresas (Anegepe) com 2 mil entrevistas, coletadas de março a julho, o perfil do empreendedor brasileiro que
abriu um negócio ou começou a trabalhar por conta própria nos últimos três anos
e meio é bastante definido: há mais homens que mulheres, mais jovens que
maduros, mais pretos e pardos do que brancos, oriundos de uma classe média com
faixa de renda entre três e seis salários mínimos mensais e com formação
educacional até o ensino médio.
Exceção à questão da cor da pele, há uma
coincidência entre esse perfil e os segmentos em que o influencer Pablo Marçal (PRTB),
candidato a prefeito de São Paulo, pontua com mais força nas pesquisas de
intenção de voto desse ano. Também há uma justaposição com a base eleitoral do
ex-presidente Jair
Bolsonaro. A pesquisa GEM 2023, que adota critérios
estabelecidos por entidades como o Babson College, dos Estados Unidos, e a
London Business School, do Reino Unido para outros 45 países, não faz o
cruzamento entre quem empreendeu nos últimos 42 meses e a religião. Mas há
também coincidências entre esse perfil e o dos evangélicos no Brasil.
A pesquisa GEM 2023 indicou que 18,6% dos
brasileiros tornaram-se empreendedores recentemente, um índice alto para
padrões internacionais. A vertente empreendedora, contudo, não necessariamente
é um atributo de economias pujantes. Outro índice importante é o percentual de
pesquisados que afirma ter sido obrigado a fechar as portas ou desistir de
empreender nos últimos 12 meses, condição de 8% dos brasileiros pesquisados, um
dos percentuais mais altos do mundo. Proporcionalmente mais brasileiros
tornaram-se empreendedores do que americanos, mas muito mais brasileiros
quebraram.
Empreender no Brasil é uma questão de
sobrevivência, e sobrevivência incerta, mas não apenas isso. Os que enxergam
oportunidades melhores com um negócio próprio superam os que afirmam que
adotaram esse caminho por falta de opção.
O empreendedorismo hoje já é uma das grandes
aspirações do brasileiro, de acordo com a pesquisa. É o terceiro grande
objetivo quando o brasileiro se permite sonhar, de acordo com o levantamento.
Ter o próprio negócio supera com vantagens o
ideal de se fazer carreira em uma empresa ou o de ser funcionário público. É um
objetivo que ganhou espaço de maneira impressionante no imaginário coletivo dos
últimos seis anos, sobretudo depois da crise provocada pela pandemia de
covid-19. A vulnerabilidade social impulsiona esse pendor.
Essa preferência por empreender em relação a
apostar em uma vaga no mercado de trabalho formal prepondera tanto entre homens
quanto entre mulheres. Mesmo na fatia mais vulnerável da sociedade, os mais
pobres e menos instruídos, essa é a opção mais valorizada.
O que não tem crescido, contudo, é a parcela
dos brasileiros que efetivamente se tornaram empreendedores nos últimos três
anos e meio. É expressiva, mas está em declínio desde 2020, ano inicial da
pandemia de covid-19. A curva indica que a economia ainda se ressente do
impacto da crise sanitária que durou três anos.
Essa curva ajuda a compreender, mas jamais
justificar, o discurso negacionista do ex-presidente Jair Bolsonaro durante seu
governo, quando o então presidente sempre minimizou a necessidade de redução de
atividades sociais como forma de controlar a propagação da doença que matou 760
mil pessoas no Brasil entre 2020 e 2022. O descuido com políticas públicas de
combate à pandemia, em especial em relação ao atraso no início da vacinação,
foi um dos principais motivos da derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, mas
sua insistência em criticar as medidas de "lockdown" teve como
objetivo sensibilizar uma das vertentes que compõe seu eleitorado.
Os dados da pesquisa GEM 2023 mostram que
houve um aumento de quebradeira importante durante a pandemia, em especial em
2022. A queda da lucratividade, até esse momento explicada pela crise sanitária
global, moveu o fechamento de empresas.
O ímpeto empreendedor
de boa parte do eleitorado brasileiro não parece ser compreendido pela
esquerda. Um sinal evidente dessa falta de conexão pôde ser visto na iniciativa
do Ministério do Trabalho de propor uma regulamentação do serviço de
plataformas de transporte e de mensageria, como Uber, Ifood, Rappi e outros. Houve reação de
motoristas e motoboys que resistiram a uma regulamentação que estenderia aos
trabalhadores da área garantias análogas ao mercado de trabalho formal. A
proposta de regulamentação terminou parada no Congresso. O governo do Partido
dos Trabalhadores imaginou que na condição de chão de fábrica se sentiam os que
passam a maior parte do dia diante de um volante ou se equilibrando em duas
rodas. Para esse público candidatos da direita antissistema afirmam que a
prosperidade só depende de cada um. Não se espera muito mais coisas do governo
nesta audiência, a não ser distância.
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