quinta-feira, 26 de setembro de 2024

César Felício - O empreendedorismo que pegou a classe política de surpresa

Valor Econômico

No Brasil, base da pirâmide aposta menos em políticas públicas

Em uma padaria do Sudoeste, região do Plano Piloto de Brasília, o consultor político Creomar de Souza foi abordado no início desse ano de uma maneira pouco comum por um vendedor de balas. "Não estou pedindo pra você comprar pra me ajudar. Estou pedindo para você ser parceiro de meu sonho", disse o rapaz. A abordagem chamou a atenção de Creomar, que pediu mais detalhes. O rapaz disse que havia recebido um estoque de balas da Igreja que frequenta, em troca do compromisso de devolver o dinheiro das vendas à preço de custo. A diferença seria dividida em duas partes iguais: metade para a sobrevivência, metade para a formação de capital para empreender de alguma forma no futuro.

Creomar usa essa história como símbolo de uma transformação social que o "mainstream" da política ainda não teria conseguido captar plenamente: o avanço das igrejas evangélicas pentecostais e o esgotamento das ferramentas de ascensão proporcionadas por políticas públicas ou pelo mercado de trabalho formal fortaleceu o empreendedorismo como o plano A de sobrevivência, para um contingente cada vez mais expressivo. "Se essa perspectiva é ilusória ou real é outra questão. Mas o fato é que politicamente para este contingente o Estado deixa de ser um provedor de soluções", comentou. Histórias como a do vendedor de balas se entrelaçam com a própria história de Creomar. Negro, o hoje consultor político cresceu no Guará, bairro periférico de Brasília, filho de uma faxineira. Foi empacotador na juventude. "A base da pirâmide teve suas necessidades transformadas", diz. É daí que se alimenta parte da Direita antissistema que ganha protagonismo na cena eleitoral, aponta.

Segundo dados da pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM) de 2023, estudo feito pelo Sebrae em parceria com a Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas (Anegepe) com 2 mil entrevistas, coletadas de março a julho, o perfil do empreendedor brasileiro que abriu um negócio ou começou a trabalhar por conta própria nos últimos três anos e meio é bastante definido: há mais homens que mulheres, mais jovens que maduros, mais pretos e pardos do que brancos, oriundos de uma classe média com faixa de renda entre três e seis salários mínimos mensais e com formação educacional até o ensino médio.

Exceção à questão da cor da pele, há uma coincidência entre esse perfil e os segmentos em que o influencer Pablo Marçal (PRTB), candidato a prefeito de São Paulo, pontua com mais força nas pesquisas de intenção de voto desse ano. Também há uma justaposição com a base eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro. A pesquisa GEM 2023, que adota critérios estabelecidos por entidades como o Babson College, dos Estados Unidos, e a London Business School, do Reino Unido para outros 45 países, não faz o cruzamento entre quem empreendeu nos últimos 42 meses e a religião. Mas há também coincidências entre esse perfil e o dos evangélicos no Brasil.

A pesquisa GEM 2023 indicou que 18,6% dos brasileiros tornaram-se empreendedores recentemente, um índice alto para padrões internacionais. A vertente empreendedora, contudo, não necessariamente é um atributo de economias pujantes. Outro índice importante é o percentual de pesquisados que afirma ter sido obrigado a fechar as portas ou desistir de empreender nos últimos 12 meses, condição de 8% dos brasileiros pesquisados, um dos percentuais mais altos do mundo. Proporcionalmente mais brasileiros tornaram-se empreendedores do que americanos, mas muito mais brasileiros quebraram.

Empreender no Brasil é uma questão de sobrevivência, e sobrevivência incerta, mas não apenas isso. Os que enxergam oportunidades melhores com um negócio próprio superam os que afirmam que adotaram esse caminho por falta de opção.

O empreendedorismo hoje já é uma das grandes aspirações do brasileiro, de acordo com a pesquisa. É o terceiro grande objetivo quando o brasileiro se permite sonhar, de acordo com o levantamento.

Ter o próprio negócio supera com vantagens o ideal de se fazer carreira em uma empresa ou o de ser funcionário público. É um objetivo que ganhou espaço de maneira impressionante no imaginário coletivo dos últimos seis anos, sobretudo depois da crise provocada pela pandemia de covid-19. A vulnerabilidade social impulsiona esse pendor.

Essa preferência por empreender em relação a apostar em uma vaga no mercado de trabalho formal prepondera tanto entre homens quanto entre mulheres. Mesmo na fatia mais vulnerável da sociedade, os mais pobres e menos instruídos, essa é a opção mais valorizada.

O que não tem crescido, contudo, é a parcela dos brasileiros que efetivamente se tornaram empreendedores nos últimos três anos e meio. É expressiva, mas está em declínio desde 2020, ano inicial da pandemia de covid-19. A curva indica que a economia ainda se ressente do impacto da crise sanitária que durou três anos.

Essa curva ajuda a compreender, mas jamais justificar, o discurso negacionista do ex-presidente Jair Bolsonaro durante seu governo, quando o então presidente sempre minimizou a necessidade de redução de atividades sociais como forma de controlar a propagação da doença que matou 760 mil pessoas no Brasil entre 2020 e 2022. O descuido com políticas públicas de combate à pandemia, em especial em relação ao atraso no início da vacinação, foi um dos principais motivos da derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022, mas sua insistência em criticar as medidas de "lockdown" teve como objetivo sensibilizar uma das vertentes que compõe seu eleitorado.

Os dados da pesquisa GEM 2023 mostram que houve um aumento de quebradeira importante durante a pandemia, em especial em 2022. A queda da lucratividade, até esse momento explicada pela crise sanitária global, moveu o fechamento de empresas.

O ímpeto empreendedor de boa parte do eleitorado brasileiro não parece ser compreendido pela esquerda. Um sinal evidente dessa falta de conexão pôde ser visto na iniciativa do Ministério do Trabalho de propor uma regulamentação do serviço de plataformas de transporte e de mensageria, como Uber, Ifood, Rappi e outros. Houve reação de motoristas e motoboys que resistiram a uma regulamentação que estenderia aos trabalhadores da área garantias análogas ao mercado de trabalho formal. A proposta de regulamentação terminou parada no Congresso. O governo do Partido dos Trabalhadores imaginou que na condição de chão de fábrica se sentiam os que passam a maior parte do dia diante de um volante ou se equilibrando em duas rodas. Para esse público candidatos da direita antissistema afirmam que a prosperidade só depende de cada um. Não se espera muito mais coisas do governo nesta audiência, a não ser distância.

 

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