Valor Econômico
É uma questão estrutural-tecnológica, e não
de taxa de câmbio, o fato de o Brasil não ter muitas chances competitivas de se
integrar às cadeias globais de valor como produtor industrial
Luiz Carlos Bresser-Pereira e Tiago Porto
comentaram: “Edmar Bacha tem o mérito de discutir a doença holandesa. Esse é um
tema que os economistas brasileiros, tanto os de direita quanto os de esquerda,
parecem querer fugir como o diabo foge da cruz” (Valor, 02/09/24).
Como faço há anos, darei aqui mais
explicações sobre as diferentes perspectivas entre o social-desenvolvimentismo
(SD) dos economistas de esquerda pró-trabalhadores e o novo-desenvolvimentismo
(ND) dos economistas pró-industriais.
As classificações “wage-led” (liderada pelos salários) e “export-led” (liderada pelas exportações) referem-se a dois tipos distintos de regimes de crescimento econômico. Não são mutuamente exclusivos. Uma condução pragmática da economia brasileira estimula a demanda doméstica e, ao mesmo tempo, explora mercados externos para maximizar o crescimento.
A economia com uma base de consumidores
domésticos grande, como a existente em um país com 212,6 milhões habitantes, é
capaz de responder positivamente ao aumento dos salários. O consumo das
famílias representa uma parcela substancial do PIB: de 1995 a 2023, a média
anual foi de 62,7%.
Em um regime wage-led, o crescimento
econômico não depende tanto das exportações porque a demanda interna é o
principal motor do crescimento. Mesmo assim, nesse período, a exportação
cresceu de 7,5% para 18,1% do PIB e a importação de 9,5% para 15,7% do PIB, ou
seja, o fluxo do comércio externo dobrou de 17% para 33,9% do PIB.
Governos com hegemonia de partido de origem
trabalhista, em economias wage-led, adotam políticas de modo a superar a
pobreza. Praticam aumentos reais no salário mínimo, benefícios sociais e uma
política fiscal progressiva sobre rendas mais altas, para fortalecer o poder de
compra dos trabalhadores.
O ND defende a transformação da economia
brasileira em export-led, como as dos Tigres Asiáticos, embora ela esteja
distante das cadeias globais de valor (CGV). Insiste nisso, apesar do Brasil
ter atingido seu maior superávit comercial (US$ 98,8 bilhões), em 2023, e já
acumular US$ 355 bilhões em reservas cambiais.
Essa corrente não percebe o círculo vicioso.
Parte das exportadoras tem grandes participações acionárias de estrangeiros e
elas farão remessa de lucros obtidos com as exportações para o exterior,
gerando déficit no balanço de transações correntes e maior necessidade de
Investimento Direto no País (IDP) para equilíbrio do balanço de pagamentos com
progressiva desnacionalização econômica.
O método do SD é histórico-indutivo - e não
racional-dedutivo do ND -, no qual comete o “vício ricardiano” de saltar da
lógica de Teoria Pura (“desvalorização da moeda nacional é favorável à
exportação”) diretamente para a proposição dessa decisão prática de política
cambial. Ao baixar o nível de abstração para a Teoria Aplicada, seus adeptos
teriam de reconhecer a inviabilidade política de dar esse choque cambial
inflacionário em favor dos industriais sobre o poder aquisitivo da base de
apoio social do partido de origem trabalhista no governo.
Além disso, teriam de datar e localizar a
proposição. Caso observassem os dados sobre abertura ao comércio internacional,
por exemplo, no site TheGlobalEconomy.com, verificariam a soma dos fluxos de
exportação e importação como % PIB, em 2018, a média mundial foi 92,17%. O
valor mais alto foi em Hong Kong com 377%, seguido por Luxemburgo (362%) e
Singapura (327%).
No ranking de 172 países, a Índia fica na
152ª posição (44%), a Indonésia em 155º (43%), a China em 158º (37,6%), Japão
em 161º (36,6%), Brasil em 168º. (28,9%) e Estados Unidos em 170º. (27,4%), ou
seja, antepenúltimo colocado. Podem ser classificadas como “economias fechadas”
devido ao PIB não depender muito das exportações líquidas?
Nessas economias com grande população, as
empresas alcançam economias de escala ao operar em um mercado doméstico
extenso. Isso lhes permite reduzir o custo unitário do trabalho (CUT). No
Brasil, o baixo salário médio (R$ 3.222) convertido em dólar (US$ 575) ainda
atrai investimentos, tanto domésticos quanto estrangeiros, para atender à
grande demanda interna.
Inclusive pela distância das CGV, devido à
sua localização, o Brasil não tem muitas chances competitivas de se integrar às
CGV como produtor industrial. É uma questão estrutural-tecnológica - e não de
taxa de câmbio a la “doença holandesa”.
As empresas de IDP representaram parcela
expressiva do comércio exterior brasileiro. Segundo o RID-BCB 2023, em 2022, as
exportações e importações de bens realizadas por essas empresas transnacionais
atingiram 34,3% (US$ 116,7 bilhões) e 56,9% (US$ 168,6 bilhões) dos totais,
respectivamente, contribuindo para 44,8% (US$ 285,3 bilhões) da corrente total
de comércio exterior de bens do Brasil.
Essa indústria desnacionalizada não necessita
de desvalorização cambial, proposta pela ND. Ela prejudicaria suas importações
de máquinas, equipamentos e insumos - e diminuiria seus lucros remetidos em
dólar para o exterior.
A “armadilha da renda média” está associada à
transição de uma economia baseada em indústrias nascentes e urbanização
crescente para um foco em estabilidade inflacionária e preservação dos
interesses dos rentistas e acionistas em grandes corporações. Nessa fase, as
fontes de crescimento com funcionamento adequado nas etapas iniciais, como a
industrialização baseada em mão de obra barata e a urbanização acelerada com
construção imobiliária nas cidades, começam a perder força. Aconteceu com o
Brasil - e está começando a acontecer com a China.
Finalmente, é um erro de análise factual
pregar o diagnóstico da desindustrialização por conta da “doença holandesa”. Na
realidade, essa pressuposta “desindustrialização” é um mito dos lobistas
industriais.
Segundo o IBGE-SCN 1T24, a participação
relativa no valor adicionado a preços básicos (desconsiderando a média de 14,1%
de impostos para atingir o PIB) da Indústria Geral na estrutura setorial da
produção praticamente se mantém em torno de 21,9% de 1995 a 2023. Tampouco a da
Indústria de Transformação se altera tanto entre 1996 (13,1%) e 2023 (13,3%),
embora tenha sofrido uma queda abaixo de sua média histórica (12,4%) no ciclo
de 2011 a 2020, quando sua participação média ficou em 10,7%. Esse ciclo foi
superado nos últimos 3 anos.
ND, a “grande” indústria brasileira sempre
foi desnacionalizada e sem autonomia tecnológica. O SD diagnostica a estratégia
de seus acionistas controladores estrangeiros visar, prioritariamente, a
exploração do mercado interno.
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