É preciso antecipar monitoramento e fiscalização das bets
O Globo
Inspeção contínua das apostas on-line não pode esperar até janeiro para entrar em vigor
Desde que o Congresso aprovou, no final do
ano passado, a legalização das empresas que oferecem apostas on-line
(em especial as esportivas), conhecidas como bets, o crescimento do mercado tem
sido explosivo. De acordo com uma nota técnica do Banco Central (BC) publicada
nesta semana, as transferências de dinheiro às empresas de apostas variaram de
R$ 18 bilhões a R$ 21 bilhões por mês neste ano. O BC estima que 24 milhões de
brasileiros apostaram no período, tanto em sites de apostas legais —
tecnicamente identificadas como “de quota fixa” — quanto nos jogos de azar que
permanecem ilegais — como o popular “jogo do tigrinho”. Em agosto, o valor
médio apostado flutuou de R$ 100, para os mais jovens, a R$ 3 mil, para os mais
velhos.
Desde o início do ano, o Ministério da Fazenda tem baixado diversas portarias destinadas a mitigar os riscos associados à proliferação das apostas, em particular o vício e o endividamento excessivo. Elas estipulam que cabe aos sites fiscalizar o comportamento dos usuários por meio de ferramentas analíticas e de métodos para avaliar o perfil dos apostadores, além de informar desde o cadastro os perigos associados à dependência dos jogos. As regras também impõem restrições à propaganda e às estratégias adotadas para atrair os clientes, protegendo menores e outros grupos vulneráveis. São medidas positivas e necessárias. Ontem algumas empresas anteciparam para outubro a entrada em vigor da proibição ao uso de cartões de crédito nas apostas, antes prevista para janeiro. E o governo pretende antecipar o bloqueio de plataformas que não estiverem registradas oficialmente. Ainda falta, porém, implementar de modo eficaz o monitoramento e a fiscalização constante dos apostadores.
E é isso o que tem gerado problemas. Enquanto
persistir essa omissão, as distorções continuarão. O exemplo mais eloquente é a
constatação, feita pelos técnicos do BC, de que em agosto ao menos 5 milhões de
brasileiros de lares beneficiários do programa Bolsa Família, ou 17% dos
cadastrados, enviaram R$ 3 bilhões às bets. Mais da metade apostou mais de R$
100 — o benefício médio recebido naquele mês foi R$ 681. Trata-se de um
desvirtuamento do propósito do programa, destinado a garantir condições de subsistência
aos miseráveis — e de mais uma prova da perda de foco daquele que já foi
exemplo de política social de sucesso.
Nos países que legalizaram as apostas
on-line, tem havido um debate robusto sobre como lidar com seus efeitos
negativos. É importante destacar que os apostadores problemáticos representam
uma minoria, que pode ser facilmente identificada e monitorada por meio dos
mecanismos estabelecidos na regulamentação. Uma vez diagnosticados, os casos de
transtornos psíquicos associados ao jogo devem ser objeto de acompanhamento
médico. Obviamente, os indivíduos afetados por eles devem ser proibidos de
apostar.
Ao mesmo tempo, tem sido inegável o efeito
positivo trazido pela arrecadação de impostos com uma atividade que antes
permanecia nas sombras. Nos Estados
Unidos, estima-se que as empresas de apostas faturem US$ 14,3
bilhões neste ano, com 11% da população usando aplicativos para jogar. Na União
Europeia, o faturamento apenas das apostas esportivas é avaliado em US$ 11,7
bilhões. No Reino Unido e
na Austrália,
US$ 4,5 bilhões.
Diversos países têm adotado restrições à
publicidade para tentar coibir o jogo compulsivo. No Brasil, desde o início do
ano — antes, portanto, da regulamentação da Fazenda —, o Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (Conar) estabeleceu regras para os anúncios
das bets. O Conar tem longo histórico de sucesso na autorregulação
publicitária, justamente para defender os consumidores de abusos. Suas regras
para a publicidade de apostas revelam sensatez.
Estabelecem que anúncios devem se destinar
exclusivamente ao público adulto, sem estímulos ao exagero ou ao jogo
irresponsável. Não podem prometer ganhos certos, fáceis ou elevados, nem
associar apostas ao sucesso, sugeri-las como alternativa ao emprego ou
promovê-las como meio de recuperar valores financeiros. Também devem respeitar
os princípios da discriminação clara dos anunciantes responsáveis,
identificar-se como destinados ao público adulto e conter cláusulas de
advertência sobre os riscos associados às apostas. Desde que essas regras estão
em vigor, a esmagadora maioria das reclamações registradas no Conar se refere a
conteúdos veiculados pelas plataformas digitais na internet, e não a anúncios
nos veículos e meios de comunicação tradicionais.
O fundamental, tanto na regulamentação
publicitária quanto na financeira, é com o tempo avaliar os efeitos das regras
e, se for o caso, torná-las mais rigorosas para que o mercado possa funcionar
dentro de limites aceitáveis em que as apostas sejam uma diversão, e não um
vício. Qualquer proposta que vise à proibição pura e simples será irrealista.
As bets cresceram fortemente no período em que não eram permitidas. E
continuarão crescendo se proibidas, sem regulamentação nenhuma. Não foi à toa
que Estados Unidos e países da Europa decidiram permiti-las e regulamentá-las.
O que os dados divulgados pelo BC nesta semana demonstram é a necessidade
urgente de entrar em vigor a regulamentação que ainda falta. É essencial
implementar quanto antes o monitoramento e a fiscalização, para que haja maior
garantia de segurança e de saúde no mercado de apostas.
Pacote de US$ 250 bi da China é insuficiente
para deter deflação
Valor Econômico
Riscos de deflação exigirão mais estímulos do governo chinês, que reluta em medidas horizontais com medo de novas bolhas serem criadas, ao lado da grave quebradeira do setor imobiliário
O Banco do Povo da China, o BC chinês, lançou
um pacote vigoroso de medidas para acelerar a resolução da crise do setor
imobiliário e garantir que a economia cresça os 5% estabelecidos como meta pelo
governo. Foram ao menos US$ 257 bilhões para ampliar a liquidez da economia,
com redução dos compulsórios dos bancos e empréstimos baratos para compra e
recompra de ações, além da redução dos juros das hipotecas e da entrada para
aquisição do segundo imóvel. Será preciso bem mais que isso, no entanto, porque
a China corre o risco maior de mergulhar em um arriscado processo de deflação.
Como o Fundo Monetário Internacional advertiu no início do ano, o país enfrenta
o seu mais longo período de pressões deflacionárias já registrado. Em rara
aparição, o presidente do BC, Pan Gonsheng, mostrou consciência do risco, ao
falar das medidas lançadas: “Precisamos promover uma recuperação moderada dos
preços”, disse.
O estouro da bolha imobiliária, cujos efeitos
estão presentes há quatro anos, mostrou semelhanças com o longo período de
estagnação e deflação no Japão e, também com origem no setor imobiliário, com a
ameaça deflacionária nos Estados Unidos e na Europa durante a grande crise
financeira de 2008. Na época, o governo chinês lançou um conjunto de medidas
que, inicialmente, consumiram US$ 586 bilhões. O Federal Reserve americano e o
Banco Central Europeu atacaram a espiral de recessão e preços negativos ampliando
a liquidez na maior injeção de recursos da história do capitalismo - o balanço
do primeiro chegou a US$ 9 trilhões e o do segundo, a € 5 trilhões.
Riscos de deflação exigirão mais estímulos do
governo chinês, que reluta em medidas horizontais com medo de novas bolhas
serem criadas, ao lado da grave quebradeira do setor imobiliário. Parte do
pacote de terça-feira busca resolver a anemia da bolsa chinesa, com US$ 120
bilhões destinados para compra e recompra de ações. O corte de 0,5 ponto nos
depósitos compulsórios dos bancos liberará US$ 142,2 bilhões, mas há ceticismo
quanto a sua eficácia, pois os consumidores estão retraídos e desconfiados,
depois que várias incorporadoras faliram e outras se mantêm como “zumbis”,
incapazes de entregar milhões de imóveis comprados e não concluídos.
O BC reduziu uma das principais taxas de
juros, a de recompra reversa, de 1,75% para 1,5%. Especificamente para o setor
imobiliário, os juros das hipotecas foram cortados em 0,5 ponto percentual e a
entrada para a compra do segundo imóvel caiu de 25% para 15%. Até o fim do ano,
acenou o BC, as reservas obrigatórias poderão recuar de novo, em 0,25 a 0,5
ponto.
Em torno da crise do setor imobiliário
gravitam outros riscos, nos quais ela tem influência. As empresas estão muito
alavancadas e devem o equivalente a 122% do PIB do país, de US$ 18 trilhões. A
dívida total do setor não financeiro é de 306% do PIB. A dívida pública deve
fechar o ano em 91,8% do PIB, pelas estimativas do FMI. Os governos locais, que
vendiam terrenos e financiavam construções pelas incorporadoras, viram suas
finanças minguar e os ativos recebidos em garantia perder valor. No meio das transações,
parte do sistema financeiro também sofreu perigosa desvalorização dos ativos.
Para incentivar a economia, o governo
recorreu mais uma vez aos investimentos, provocando superoferta de produtos ao
lado do aumento da capacidade ociosa das fábricas, como ocorre no setor
automobilístico, de maquinário elétrico, computadores e eletrônicos. Em
consequência, os preços aos produtores caem há 22 meses consecutivos e a
inflação anual da China, em agosto, foi de 0,6%. O consumo das famílias cresce
pouco - depois de evoluírem 10,1% em 2023, as vendas do varejo avançam hoje
2,1% (em 12 meses até agosto). Mesmo com o consumo fraquejando, a China manteve
no ano passado uma das maiores taxas de investimento do mundo (42,1% do PIB),
aumentando a capacidade da indústria, que tem impulsionado muito as
exportações. Barreiras comerciais levantadas em vários países, inclusive no
Brasil, mostram o limite do sucesso dessa estratégia.
Para se livrar da crise imobiliária, que põe
em xeque o futuro da economia, o governo tem usado medidas que o FMI recomenda
que sejam intensificadas. Para as incorporadoras que sejam inviáveis, as
empresas de seguro terminam os projetos incompletos ou ressarcem os
investidores que pagaram parte ou todo o imóvel. Para as que têm viabilidade,
parte da produção seria financiada oficialmente e adquirida como moradia
social. Outro instrumento é financiar em melhores condições as empresas que se
mantêm saudáveis e liquidar as que não têm saída. Segundo o FMI, metade das
incorporadoras tem problema de solvência e pode não sobreviver, e outras 15%
têm problemas de liquidez, ou seja, capital de giro, por exemplo, para tocar
seus negócios e pagar despesas operacionais.
A China deve atingir sua meta de crescimento de 5% e, se falhar, será por muito pouco. O verdadeiro perigo está na deflação, que exigirá medidas de apoio à economia muito mais amplas, de apoio ao consumidor e à renda das famílias. O pacote mais forte de estímulo agora significa que outros mais vigorosos e necessários podem estar por vir.
Apostas sem controle avançam entre os mais
vulneráveis
Folha de S. Paulo
Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3
bi com bets em agosto; urge restringir publicidade e elevar tributação
Análise do Banco Central mostra
que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3
bilhões em bets pelo Pix em
agosto, o que representa 20% do total repassado pelo programa federal naquele
mês. No total, os brasileiros transferiram R$ 21,1 bilhões desse modo a apostas
online no período.
O montante real é provavelmente maior, pois o
BC não considerou pagamentos realizados com cartões de crédito e débito.
O dado é assustador, dado que os
beneficiários do Bolsa Família provêm dos estratos mais pobres do país, e os
valores direcionados às bets podem agravar ainda mais a vulnerabilidade social
dessa população.
Quando se tira da ilegalidade um produto que
gera externalidades negativas, a primeira preocupação dos reguladores deve ser
a de evitar explosão do consumo. Isso vale para apostas, drogas e
outros comportamentos de risco.
Foi justamente o que os reguladores
brasileiros não fizeram. O efeito mais notável da legalização foi a invasão dos
meios de comunicação por publicidade de bets —e de um tipo particularmente
perverso, insinuando que o serviço é um caminho certo para a ascensão
econômica.
Na realidade, contudo, ocorre o contrário.
Bancas de apostas só conseguem pagar prêmios e auferir lucros porque a
esmagadora maioria dos jogadores perde.
Não se trata, por óbvio, de voltar ao statu
quo anterior. O
fracasso da guerra às drogas mostra que o proibicionismo é uma
política pública fracassada. No entanto é possível —e imprescindível— endurecer
a regulação.
A providência mais urgente é restringir
severamente a publicidade, ação prevista pela Constituição e
aplicada há décadas em relação ao tabaco e ao álcool.
A exemplo dos alertas em maços de cigarro,
também é possível obrigar as bets a exibir em seus sites e aplicativos uma
página introdutória que explique aos apostadores que suas chances reais de
ganhar dinheiro ali são ínfimas.
Isso, é claro, sem prejuízo de outras medidas
adotadas em diversos países que se mostraram capazes de reduzir o fardo do
jogo, tanto em seus aspectos sanitários quanto econômicos.
Não menos importante é a questão dos
impostos. As bets são hoje tributadas em só 12% —e os jogadores ainda pagam 15%
sobre o valor dos prêmios. É pouco, dadas as consequências negativas da
atividade. Seria o caso de rever para cima essas alíquotas.
Há situações em que impostos muito altos
empurram o negócio para o mercado ilegal, mas esse não parece ser o caso do
jogo.
A operação depende de transferências
monetárias eletrônicas sobre as quais o BC tem grande controle —não se pode
fazer Pix para o exterior e poucos têm acesso a cartões de crédito
internacionais ou bitcoins.
A melhor política, de fato, não é a proibição
das bets. Mas o poder público precisa aperfeiçoar a regulação para modular as
externalidades, em prol principalmente da população mais vulnerável.
Renda per capita revela um decênio perdido no
país
Folha de S. Paulo
Só em 2024 Brasil deve superar o PIB por
habitante de 2013; grande parte do atraso resultou do intervencionismo estatal
Para um país de renda média
como o Brasil, o normal deveria ser enriquecer ao menos um pouco a cada ano, à
medida que se ampliam a infraestrutura e a capacidade de produção de
trabalhadores e empresas —com recuos aqui e ali, o que é normal, mas numa
tendência clara de progresso.
É triste constatar, pois, que somente neste
2024 o país deve enfim ultrapassar o patamar de Produto Interno Bruto per
capita —vale dizer, a renda média por habitante, medida mais comum de bem-estar
material em comparações internacionais— registrado em 2013, de acordo com
cálculos reportados pela Folha.
Isso ocorrerá caso a
atividade econômica tenha expansão de 2,5% ou mais neste ano, o que
parece muito provável. Nesse cenário, o PIB per
capita chegaria a dezembro acima dos R$ 51,83 mil de 11 anos atrás (em valores
corrigidos, na série do pesquisador Claudio Considera, da FGV).
Dito de outra maneira, o Brasil deixa para
trás uma decênio inteiro de empobrecimento, retrocesso inconcebível numa
sociedade que ainda precisa lidar com uma desigualdade vexatória na
distribuição da riqueza.
Pior, grande parte desse atraso no
desenvolvimento foi gestado aqui mesmo —mais especificamente, com a recessão
devastadora de 2014-16, resultante da tentativa do governo Dilma
Rousseff (PT) de impulsionar o PIB
por meio de gasto público e intervencionismo estatal.
Com as contas do Tesouro Nacional em
frangalhos, prejuízos bilionários nas estatais, inflação, juros e
desemprego em alta, a renda per capita havia recuado a R$ 47,49 mil em 2016.
Seguiu-se um período de difíceis reformas
econômicas e ajustes orçamentários, durante o qual a expansão da atividade
pouco superou a da população. Em 2020, o choque global da pandemia de Covid-19
voltou a derrubar o PIB por habitante, agora para R$ 46,73 mil.
Só a partir daí houve retomada digna de nota,
mas ainda assim frágil, porque mais uma vez ampara na escalada insustentável da
despesa do governo. O Banco Central já
voltou a subir os
juros para conter a inflação; cedo ou tarde será preciso frear os
gastos.
O nível de renda brasileiro está longe de ser
digno de comemoração. No ano passado, ele equivalia a 30% da média dos países
ricos, segundo as estimativas do Fundo Monetário Nacional (FMI). Em 2013,
eram 36%.
O país não deveria apostar em atalhos ilusórios. É preciso buscar o caminho do crescimento duradouro, ainda que à custa de sacrifícios imediatos.
Transferência de renda às avessas
O Estado de S. Paulo
BC calcula que 5 milhões de beneficiários do
Bolsa Família deram R$ 3 bi via Pix para as ‘bets’ em agosto. Trata-se de uma
tragédia social que governo e sociedade não podem ignorar
O Banco Central (BC) divulgou uma nota
técnica na terça-feira passada que traz um dado ainda mais chocante sobre a
presença cada vez mais perniciosa das chamadas “bets” na vida dos brasileiros.
De acordo com a autoridade monetária, em agosto, 5 milhões de beneficiários do
Bolsa Família – cerca de 20% do total de atendidos pelo programa social – deram
R$ 3 bilhões para as plataformas de apostas online apenas por meio de
transferências via Pix. Como se vê, trata-se de um eficientíssimo programa de
transferência de renda, só que às avessas, ou seja, de gente muito pobre para
gente muito rica.
Governo e sociedade estão diante de uma
tragédia social de múltiplos desdobramentos para os cidadãos e para o País como
um todo. Os danos causados pela jogatina à saúde mental e financeira dos
apostadores e suas famílias estão sobejamente demonstrados. E aqui se está
tratando do segmento mais vulnerável dos brasileiros, daqueles que dependem
diretamente da ação do Estado para ter até o que comer. Parte da renda que
deveria, idealmente, ser destinada à compra de meios de subsistência tem sido
perdida em decorrência do estímulo a uma esperança vã de ganhos financeiros
que, na esmagadora maioria dos casos, jamais se concretizam.
São os mais pobres, por óbvio, os mais
suscetíveis a sucumbir à tentação do dinheiro “fácil e rápido”. Para agravar
essa tendência, as empresas de apostas online investem rios de dinheiro em
campanhas publicitárias das quais, hoje, é praticamente impossível escapar.
Todos os dias, os cidadãos são bombardeados por propagandas de “bets” da hora
em que acordam até a hora em que vão dormir – e propagandas não raro
protagonizadas por personalidades bastante populares que decerto não apostam e,
ademais, não perdem o sono preocupadas com a natureza nociva do “produto” que
estão vendendo ao público.
Mesmo correndo o risco de ver a análise ser
interpretada como uma extrapolação de seu escopo original de trabalho, o BC, em
boa hora, destacou na nota técnica que “é razoável supor que o apelo comercial
do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em
situação de vulnerabilidade financeira”. De fato, os jogos de azar, como as
apostas em “bets”, são frequentemente apresentados como uma oportunidade para
“mudança de vida” de forma rápida e sem esforço, oferecendo aos apostadores promessas
ilusórias de ganho fácil. Para indivíduos que vivem na pobreza – sobretudo na
pobreza extrema –, esse apelo é ainda mais sedutor.
Em nome do melhor interesse público, qual
seja, o bem-estar geral dos brasileiros, em especial os mais desvalidos, não se
pode simplesmente ignorar o grave problema do avanço das “bets” no País sob
qualquer pretexto. Muito menos sob a cínica e cruel desculpa veiculada pelos
defensores da jogatina segundo a qual a regulação das apostas online geraria
uma arrecadação que pode se converter em investimentos em áreas mais nobres da
administração pública. Acredita nessa patranha quem quer. Economistas consultados
pelo Estadão/Broadcast estimam que o montante a ser arrecadado com a
eventual regulação das “bets” em 2025 deve ficar entre R$ 2 bilhões e R$ 10
bilhões – uma ninharia em face de um Orçamento da União que prevê uma receita
primária total de R$ 2,7 trilhões.
Não bastasse esse drama social, algumas
“bets”, como é notório, têm sido convertidas em usinas de lavagem de dinheiro
ilícito no Brasil, sem falar em outros crimes que quase sempre vêm associados à
exploração dos jogos de azar, como corrupção, organização criminosa e até
crimes de sangue – como a guerra pela ocupação de postos de jogo do bicho e
máquinas caça-níqueis. Em um país onde vivem milhões de cidadãos carentes de
quase tudo para uma vida digna, definitivamente, não há lugar para a
legalização dos jogos de azar, sejam quais forem as suas modalidades.
Vivêssemos em um país mais decente, a
esperança dos brasileiros desvalidos por um futuro melhor haveria de vir de um
Estado genuinamente preocupado com eles, não de uma armadilha que só fará
aprofundar sua miséria.
Banco Central não doura a pílula
O Estado de S. Paulo
Copom classifica política fiscal do governo
como expansionista e diz que percepção do mercado sobre gasto e
sustentabilidade do arcabouço afeta preço de ativos, expectativas e juros
Se o governo esperava algum sinal de alívio
do Banco Central (BC), a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) foi como
um balde de água fria. O comunicado divulgado após a reunião realizada na
semana passada, na qual os juros foram elevados em 0,25 ponto porcentual
(p.p.), para 10,75% ao ano, já não havia deixado espaço para ilusões. Por meio
da ata, no entanto, o BC não dourou a pílula e enviou recados ainda mais
contundentes.
O principal deles diz respeito à política
fiscal, classificada como “expansionista”. A gastança, somada a um mercado de
trabalho robusto e à expansão do crédito às famílias, elevou o consumo, a
demanda agregada e o dinamismo da atividade econômica, razão pela qual o Copom
acredita que o hiato do produto tenha passado para o campo positivo.
Em outras palavras, o governo tem contribuído
diretamente para fazer a economia crescer acima de sua capacidade. Crescer sem
ter bases para sustentar esse desempenho gera inflação, e inflação, em se
tratando de Banco Central, se combate, basicamente, com juros mais elevados.
A ata foi além. Disse, com todas as letras,
que a percepção dos agentes do mercado sobre o crescimento do gasto público e a
sustentabilidade do arcabouço fiscal tem causado impactos no preço dos ativos e
nas expectativas e, por óbvio, sobre a política monetária. Criticar os agentes
na esperança de que revejam sua perspectiva, como integrantes do governo têm
feito desde a semana passada, quando o relatório de receitas e despesas do
quarto bimestre foi divulgado, é inócuo.
“Uma política fiscal crível, embasada em
regras previsíveis e transparência em seus resultados, em conjunto com a
persecução de estratégias fiscais que sinalizem e reforcem o compromisso com o
arcabouço fiscal nos próximos anos são importantes elementos para a ancoragem
das expectativas de inflação e para a redução dos prêmios de riscos dos ativos
financeiros, consequentemente impactando a política monetária”, recomendou o
BC.
Para não dizer que foram apenas críticas, o
Copom disse que “incorpora em seus cenários uma desaceleração no ritmo de
crescimento dos gastos públicos ao longo do tempo”. E o presidente do Banco
Central, Roberto Campos Neto, disse haver certo “exagero” por parte do mercado
financeiro na precificação dos riscos fiscais. Ao contrário do governo, no
entanto, Campos Neto afirmou que não cabe ao BC julgar essa visão, mas somente
compreendê-la para saber como reagir a ela.
Na ata, os diretores preferiram não indicar
uma sinalização sobre os próximos passos a serem tomados pelo Copom, mas
reforçaram o compromisso de fazer a inflação convergir rumo à meta, embora a
tarefa esteja “mais desafiadora”. Fato é que as expectativas estão
desancoradas, um “fator de desconforto comum a todos os membros do comitê”. E
elas continuam a subir.
No mais recente Boletim Focus, a mediana
do IPCA subiu de 4,35% para 4,37% em 2024, de 3,95% para 3,97% em 2025 e de
3,61% para 3,62% em 2026. Em todos os cenários, a inflação está acima do centro
da meta de 3%, e isso tudo a despeito da elevação dos juros anunciada na semana
passada.
Assim, o mercado reforçou as apostas sobre um
aumento ainda maior da Selic na próxima reunião, nos dias 5 e 6 de novembro.
Pesquisa realizada pelo Projeções Broadcast mostrou que 38 de 46
instituições passaram a esperar uma alta de 0,50 p.p. após a ata – na semana
passada, um dia após a reunião, essa era a expectativa de 23 das 41 casas
consultadas.
Foi a primeira vez que o Copom elevou os
juros desde o início do terceiro mandato de Lula da Silva, mas, desta vez, o
presidente manteve silêncio – ao menos até agora. Faz quase um mês que o
governo indicou Gabriel Galípolo para o comando do BC, e embora ele ainda não
tenha passado pela sabatina no Senado, nada indica que terá dificuldades na
tarefa.
Mais difícil será convencer o governo sobre a
necessidade de adotar uma política fiscal mais austera e sincronizada com a
política monetária, que não pressione a taxa de juros neutra da economia e não
aumente o custo da desinflação. De saída, Roberto Campos Neto parece já ter
passado o bastão.
O dever da parcimônia
O Estado de S. Paulo
Um ministro do STF que aceita ir a uma festa
num iate de um cantor em Mykonos não pensou bem
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)
Kassio Nunes Marques está indignado. No dia 3 de setembro, Marques festejou o
aniversário do cantor Gusttavo Lima em um iate na ilha de Mykonos, na Grécia,
na companhia dos sócios de Lima na empresa Vai de Bet, o casal André Rocha e
Aislla Rocha. À época, estava em andamento a Operação Integration, que
investiga lavagem de dinheiro por casas de apostas. No dia da festa, a Justiça
determinou a apreensão de um avião que pertencia a outra empresa de Lima, e
também a prisão de André e Aislla. A Justiça chegou a decretar a prisão de Lima
alegando que ele teria ajudado o casal a fugir – depois, os três foram
beneficiados com habeas corpus.
Indagado a respeito pelo jornal Valor,
Marques afetou escândalo: “Cobrar de cada um de nós que saiba quem estará num
aniversário ou qual dos convidados está sob investigação é surreal”. Tão
acostumados estão os juízes com convites extravagantes, que o mero
questionamento a respeito deles suscita irritação.
Há uma regra básica que distingue a
discricionariedade entre trabalhadores da iniciativa privada e servidores
públicos. Em seus ofícios, os primeiros podem fazer tudo o que a lei não
proíbe; e os segundos, só o que a lei prevê. Analogamente, um cidadão comum
pode participar das festas que quiser. Mas um juiz deve se pautar pela cautela:
se não sabe quem estará lá, melhor evitar.
Não se trata de moralismo. Juízes têm direito
às alegrias da vida privada. Mas, ao aceitar o serviço à Justiça, aceitam que
essa vida seja regulada. A Lei da Magistratura exige uma “conduta
irrepreensível na vida pública e particular”. Se nos casos concretos pode haver
zonas cinzentas a propósito do que é ou não “irrepreensível”, na dúvida, convém
optar pela moderação.
No direito, a forma é tão relevante quanto o
conteúdo. As aparências importam. Não basta a um juiz ser imparcial, é preciso
parecer. Não por acaso a judicatura é cercada de ritos, símbolos e figurinos –
como a senhora vendada, a balança ou a toga preta – que representam a isonomia
e a sobriedade necessárias à administração da Justiça.
A imagem do Judiciário vem se degradando na
percepção popular, e uma das razões é a falta de compostura. Há muito a
sociedade clama por regras que disciplinem o relacionamento dos juízes com
advogados, políticos, empresários, parentes ou imprensa; que deem mais
transparência às suas agendas; que limitem sua participação em eventos ou
remuneração por palestras. Mas a resistência, a começar pelos ministros do STF,
em adotar essas e outras regras de ética é suspeita. Como diz a sabedoria
popular, quem não deve não teme.
Para preservar a independência dos juízes, a Constituição lhes outorga garantias como vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. São prerrogativas justas e necessárias para que atuem livres de qualquer vínculo ou constrangimento. Juízes têm poderes especiais porque têm deveres especiais. Mas isso significa que têm também responsabilidades especiais: a parcimônia é uma delas.
Violência política é afronta à democracia
Correio Braziliense
Ao contrário do que alguns candidatos
defendem, o período eleitoral não é "tempo de guerra", mas de
construção de propostas e projetos que elevem a qualidade de vida dos
brasileiros
A violência política se tornou uma marca das
eleições deste ano. Por decisão unânime, nesta terça-feira, o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) aprovou o envio de militares federais a 12 estados, a fim de
garantir a segurança dos eleitores e candidatos no primeiro turno da votação,
em 6 de outubro. A medida é tomada em meio a um clima de acirramento da disputa
para além do plano das ideias e propostas.
No primeiro semestre deste ano, foram
registrados 187 episódios de agressões e 47 assassinatos de políticos e
famílias, motivados pela disputa política, com destaque para Rio de
Janeiro, Bahia e Ceará, segundo levantamento da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Ocorrências das últimas semanas indicam que o pleito deste ano
tende a ser um dos mais violentos da história.
A ministra Cármen Lúcia, presidente TSE,
cobrou da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e dos presidentes dos
tribunais regionais eleitorais (TREs) prioridade e rapidez na investigação, na
acusação e no julgamento dos atos que infringem o direito eleitoral.
Independentemente dos atos letais, a ministra criticou e qualificou de
"cenas abjetas e criminosas, que rebaixam a políticas cenas de pugilato,
desrazão e notícias de crimes".
O nível dos debates e das campanhas tem se
revelado baixo e agressivo entre concorrentes tanto para o cargo de prefeitos
quanto para vereadores. O comportamento dos candidatos reflete o alto nível de
violência que foi estimulado nos últimos tempos. Não é disso que os eleitores e
a sociedade, de modo geral, necessitam, levando-se em conta os elevados índices
de criminalidade que assustam os brasileiros. No universo de 195 países, o
Brasil ocupa o 14º lugar, com 21,26 homicídios a cada 100 mil habitantes.
Ao contrário do que alguns candidatos
defendem, o período eleitoral não é "tempo de guerra", mas de
construção de propostas e projetos que elevem a qualidade de vida dos
brasileiros. Ao longo de quase três meses, os candidatos deveriam aproveitar o
tempo para exibir aos eleitores planos de governo, sugestões de leis e de
iniciativas compatíveis com os interesses dos que vivem nos municípios e nas
capitais.
Os desafios para prefeitos e vereadores são
gigantescos, ante uma sociedade que enfrentou uma pandemia (covid-19) e, hoje,
tenta restabelecer o padrão de vida. O Brasil ainda tem taxas extremamente
elevadas de desigualdade social e econômica. As bordas das cidades são carentes
de investimentos em infraestrutura, saneamento básico, escolas e unidades
hospitalares de qualidade, moradias dignas e tantas benfeitorias que elevem o
padrão de vida, sobretudo diante das mudanças climáticas que afetam, indiscriminadamente,
toda sociedade.
Nada disso é conquistado com embates,
violência verbal e física entre os oponentes a cargos eletivos. Pelo contrário,
são atitudes que agridem, envergonham e aumentam a descrença
popular na política, além de serem descabidas no Estado Democrático de Direito.
Pior: as reais necessidades da população tornam-se secundárias para que
prevaleçam interesses e ações dissociadas das demandas coletivas.
Em pleno século 21, o Brasil, maior país da
América Latina, não pode enveredar pelo caminho do retrocesso civilizatório,
como desejaram alguns personagens da história recente. Como bem destacou
a ministra Cármen Lúcia, "temos que conclamar os partidos políticos para
que tomem tenência (...) Eles não podem pactuar com desatinos e cóleras
expostas em cenas de vilania e desrespeito aos princípios básicos da
convivência democrática".
Nenhum comentário:
Postar um comentário