O Estado de S. Paulo
A sinalização fidedigna de retirada das contas do vermelho anularia a turbidez causada no curto prazo pelo descontingenciamento de gastos
Foram boas as declarações do ministro
Fernando Haddad sobre o chamado grau de investimento. Por si só, evidenciaram
que o governo preza por um bom ambiente econômico e deseja atrair investimentos
de boa qualidade. Como chegar lá?
O grau de investimento é uma espécie de selo
conferido pelas agências de classificação de risco. Ele atesta o baixo risco de
calote na dívida pública. Nesse sentido, o Brasil está habilitado a reaver a
nota mais alta na caderneta dos classificadores. Contudo, recomenda-se um
programa de ajuste fiscal permanente.
A divulgação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do quarto bimestre, na segunda-feira, trouxe certo pessimismo. O mercado financeiro reage a notícias negativas e positivas de maneira rápida e, por vezes, errada. Em parte, foi o que ocorreu com essa divulgação. Distorce-se a visão geral, que não deveria ser propriamente rósea, mas que tampouco indica o apocalipse das contas públicas brasileiras.
O relatório não trouxe grandes novidades em
matéria de números e projeções. Mostrou-se, ali, que o déficit primário
(receita menos despesa sem contar os juros da dívida) deverá ficar em
R$ 68,8 bilhões em 2024. Descontados os
gastos com o Rio Grande do Sul, na forma de créditos extraordinários (R$ 40,5
bilhões), a meta fiscal deste ano seria cumprida. No entanto, será preciso usar
a banda inferior da meta zero, de menos R$ 28,8 bilhões.
Duas preocupações procedem em relação ao
relatório bimestral do Orçamento. A primeira associa-se ao grande volume de
receitas atípicas contabilizado para atingir a meta. Trata-se de dividendos
extraordinários do BNDES e de outras receitas de depósitos judiciais. Essa
arrecadação não é recorrente. Revela-se, assim, certa dependência de medidas ad
hoc para atender aos objetivos legais.
A segunda preocupação decorre do
descongelamento de gastos não obrigatórios, em R$ 3,8 bilhões, que haviam sido
contingenciados após a publicação do relatório do terceiro bimestre. Ora, se a
projeção do próprio governo é um déficit de R$ 68,8 bilhões, não se recomenda
liberar mais gastos.
Ao contrário, o ideal é que o
contingenciamento fosse aumentado, de modo que a meta zero, e não apenas a meta
alargada pela banda inferior, fosse cumprida. A banda inferior, vale dizer,
deveria servir para acomodar choques, eventos não previstos, receitas não
materializadas de última hora ou gastos emergenciais.
Da forma como o relatório foi apresentado,
passou-se a impressão errada de que o governo estaria operando no fio da
navalha, no limite do limite. O objetivo maior da política fiscal tem de ser o
alcance das condições de sustentabilidade da dívida pública em proporção do
PIB. Ainda estamos distantes de atingir esses requisitos. O resultado primário
precisaria ser positivo, em maior ou menor grau, a depender dos juros reais e
do crescimento econômico.
Esperava-se um sinal de aperto fiscal e o
relatório bimestral, de certo modo, flexibilizou o gasto frente à estimativa de
receitas não administradas maiores (como a dos dividendos). É verdade que as
receitas administradas (impostos, contribuições, etc.) estimadas tornaram-se
mais realistas nesta quarta edição do acompanhamento orçamentário. Fato é que o
saldo líquido de todas as alterações foi um aumento do déficit projetado pelo
próprio governo em mais de R$ 7 bilhões.
Certo distanciamento desses números de curto
prazo permite uma avaliação mais justa, entretanto, a respeito do quadro fiscal
geral.
O déficit primário diminuirá, entre 2023 e
2024, de R$ 230,2 bilhões para R$ 68,8 bilhões. A despeito da dependência de
uma agenda de receitas novas, em parte temporárias, é um feito a ser
reconhecido. A dívida pública, por outro lado, segue em nível elevado e
crescente, mas não em trajetória indefinida ou explosiva. O caixa do Tesouro
nunca foi tão polpudo, o que lhe permite tranquilidade para gerenciar as novas
emissões, cobrir déficits adicionais e refinanciar a dívida vincenda.
Os juros são elevados, é verdade, mas não há
nem cheiro de uma crise de solvência, de ausência de demanda por títulos
públicos. O diagnóstico de uma situação fiscal desafiadora e o receituário de
que a dívida precisa estabilizar-se e, depois, diminuir não contradizem a
avaliação de que estamos distantes de um quadro de insolvência do setor
público.
O balanço das contas externas é confortável,
a balança comercial é relativamente robusta e as reservas internacionais,
elevadas. Uma dose de compromisso intertemporal com a responsabilidade fiscal,
inclusive por meio de um programa de corte de gastos e de revisão de despesas
ineficientes, seria providencial para o convencimento das agências de
classificação de risco.
Minha sugestão ao governo: apresente um
programa de ajuste fiscal intertemporal em linha com as diretrizes do novo
arcabouço fiscal (Lei Complementar n.º 200). É preciso mostrar quando as
condições de sustentabilidade da dívida/PIB serão alcançadas. E convencer.
Essa sinalização fidedigna de retirada das
contas do vermelho anularia a turbidez causada no curto prazo pelo
descontingenciamento de gastos. Cabe ao governo segurar as despesas. O grau de
investimento chegaria naturalmente e coroaria esse processo.
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