quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Faltam planejamento e integração no combate a queimadas

O Globo

Era prevista temporada mais intensa de incêndios florestais. Reação dos governos tem sido tardia e insuficiente

Não é novidade que o Brasil vem se tornando mais seco. De 2011 a 2020, houve em média cem dias sem chuvas por ano, 25% a mais que no período de 1961 a 1990. Também não é novidade que, para 2024, era previsto recrudescimento da seca. Climatologistas advertiam sobre o agravamento dos incêndios florestais. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) afirma que eles começaram no segundo semestre de 2023. Diante da escalada previsível, a prudência aconselhava se preparar. Não só para combater o fogo, mas também com campanhas de esclarecimento sobre o risco de queimadas antes do plantio provocarem incêndios incontroláveis. Não foi o que o governo fez.

Pelos dados oficiais, fica evidente que a reação tem sido insuficiente. De acordo com os boletins do Ministério do Meio Ambiente, a área queimada na Amazônia cresceu 140% entre o fim de junho e o fim de setembro, alcançando 11,7 milhões de hectares, ou 2,8% da floresta. No Cerrado, apenas em duas semanas de setembro, a superfície incendiada cresceu quase 40%, para 12,3 milhões de hectares, ou 6,2% do total. No Pantanal, a área queimada triplicou desde julho, com destruição de 2 milhões de hectares, 13,4% do bioma.

Nem o governo federal, nem os estaduais e municipais se mostraram prontos para o desastre anunciado. A reação ao fogo foi lenta. A falta de planejamento e integração reduz a eficácia de medidas tomadas diante da emergência, muitas vezes na base do improviso.

Isso não significa que nada tenha sido feito. No Pantanal, da primeira quinzena de julho até agosto, o efetivo dos organismos federais aumentou 20% e chegou a mil pessoas, de acordo com reportagem do jornal Folha de S.Paulo. As aeronaves mobilizadas passaram de 14 para 19. Na Amazônia, as equipes do governo cresceram 10%, para 1.608 brigadistas, com dez aviões. No Cerrado, houve aumento de mais de 150%, para 1.102 profissionais, com oito aviões. Desde junho, os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul dobraram o contingente de bombeiros, para 138. O Amazonas elevou o efetivo de brigadistas de 333 para 706. Mesmo assim, foi pouco ante centenas de focos de incêndio. E faltou integração entre governos federal e estaduais.

Brasília alega não poder enfrentar as chamas sozinha. É verdade que estados e municípios em que florestas e plantações viram cinzas precisam agir, mas cabe ao governo federal coordenar operações e, a partir de informações próprias, alertar com antecedência sobre o risco de incêndios. Basta consultar o Cemaden. Técnicos do governo argumentam que 85% dos incêndios no Cerrado e 73% no Pantanal ocorreram em propriedades privadas. Tentam, com isso, atribuir a responsabilidade a estados e municípios, alegando que a União deve proteger áreas de preservação e terras indígenas. Essa divisão de responsabilidade pode fazer sentido em tempos normais, mas não na situação de emergência criada pelas mudanças climáticas.

A mobilização contra o fogo ficou aquém do necessário por ter começado tarde. Governos fizeram às pressas o que exigia planejamento. A preocupação com o fogo num país com extensa vegetação e área agrícola precisa ser constante. É preciso um choque de realidade no poder público. A temporada de incêndios no Brasil é tão previsível quanto a de furacões no Atlântico Norte ou a de tufões no Pacífico.

Política de educação para primeira infância deveria ser prioritária

O Globo

Três meses depois de Lula assinar decreto, Casa Civil ainda não instaurou comitê para elaborá-la

Passados três meses desde a assinatura de decreto pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva instaurando a política nacional para a primeira infância, o tema continua parado. A Casa Civil, encarregada de instalar um comitê com a missão de elaborá-la, até agora nada fez.

A primeira infância é crucial para o futuro desempenho escolar e profissional. O cérebro se desenvolve continuamente, mas o período mais ativo são primeiros anos de vida, quando são formadas até mil novas conexões entre neurônios por segundo, primordiais para a comunicação rápida. Com a devida arquitetura cerebral, a mente se torna mais apta a aprender habilidades como planejar, prestar atenção, memorizar informações e controlar impulsos. Falhas no cuidado das crianças as deixam em desvantagem na escola. Em caso de negligência, as consequências podem ser piores, com problemas no desenvolvimento e dificuldade para lidar com frustrações.

Os primeiros anos de vida são a base da produtividade do trabalho no futuro, como concluiu o Nobel de Economia James Heckman, da Universidade de Chicago. Para um país onde é urgente buscar menos desigualdade, reduzir a criminalidade e aumentar o crescimento econômico, a primeira infância deveria ser prioritária.

É certo que já houve avanços. Estados e municípios de diferentes regiões adotaram programas com resultados consistentes, alguns comprovados por estudos independentes. O governo federal também lançou programas nacionais, como o Criança Feliz. E o Brasil virou referência em legislação com a aprovação no Congresso, em 2016, do Marco Legal da Primeira Infância. Ao reforçar trechos da Constituição sobre os direitos das crianças, a lei ressalta a necessidade de ações do Estado. Infelizmente, de lá para cá, ficou faltando pôr em prática o que está no papel, por meio de políticas públicas integradas entre União, estados e municípios.

Ao assumir, parecia que Lula recuperaria o tempo perdido. Em agosto do ano passado, o governo criou um grupo de trabalho dentro do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência. O objetivo era entregar recomendações para uma política nacional. Em dezembro, os integrantes do Conselho tiveram acesso a uma versão preliminar. O relatório final apresentado neste ano recomenda o estabelecimento de premissas básicas, da definição da governança à integração de serviços públicos. Com base nele, Lula assinou decreto em junho prevendo a criação de um comitê intersetorial para, finalmente, a política nacional ser elaborada. Causa estranheza o assunto estar parado desde então na Casa Civil. A previsão é a semana que vem. Precisa ser prioritário.

Brasil pode virar a seu favor restrição ambiental da EU

Valor Econômico

A restrição da UE poderia servir de incentivo ao aprimoramento no Brasil dos meios de vigilância e proteção à floresta, desde que, via diplomacia, dela fossem aparados os vieses protecionistas europeus

Faltam só três meses para estrear a lei antidesmatamento da União Europeia (UE), que pune com sobretaxas produtos importados pelo bloco provenientes de áreas devastadas. O governo brasileiro pediu adiamento da execução da nova legislação, algo possível de ser atendido mas improvável. O acordo Mercosul-UE foi atingido pela imposição europeia - nada disso foi abordado durante as duas longas décadas de discussão -, mas o presidente Lula é otimista sobre sua conclusão. O Brasil sob Lula também surpreendeu ao mudar um ponto já acertado, o das compras governamentais, que quer usar como instrumento de política industrial. A UE, ao mesmo tempo, apresentou exigências ambientais descabidas em anexo, que iam além dos compromissos nacionais no Acordo de Paris. Não parou nisso e aprovou a lei que em tese visa a impedir arbitragem ambiental - países sem legislação rigorosa como a da UE usufruiriam vantagem de custos em relação aos produtores europeus.

A partir de janeiro, não será permitida a importação de produtos agropecuários e de alguns derivados provenientes de áreas desmatadas ou degradadas desde 2020. Estima-se que quase um terço das exportações brasileiras para o bloco possa ser afetado - a UE é o segundo parceiro comercial do país. Governo e produtores brasileiros pressionam por mudança nas regras ou um adiamento, sem sucesso até agora.

Em 2019, o Parlamento Europeu aprovou o Green Deal, conjunto de 50 regras cujo objetivo é cumprir as metas do Acordo de Paris. A UE se comprometeu a reduzir até 2030 as emissões de CO2 em 55% em relação a 1990 e alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Uma dessas regras é a European Union Deforestation Regulation (EUDR), que dificulta que importadores comprem produtos de áreas desmatadas. Os exportadores terão de rastrear seus produtos para provar que não são provenientes de zonas desmatadas, legal ou ilegalmente.

Boa parte dos produtos afetados são itens importantes na pauta de exportação brasileira para a região. A lista inclui carne bovina, café, cacau, produtos florestais (papel, celulose e madeira), soja, óleo de palma e borracha, além de derivados, como couro, móveis e chocolate. Em 2023, o Brasil vendeu US$ 46,3 bilhões ao bloco europeu, e estima-se impacto potencial de US$ 14,7 bilhões em produtos envolvidos pela nova legislação, valor equivalente ao total embarcado para o Oriente Médio.

As novas regras europeias deixam margem a interpretações arbitrárias restritivas. Até mesmo setores que avançaram no cumprimento de regras ambientais estão preocupados. Um deles é o de papel e celulose, em que o Brasil é o maior exportador mundial. A UE compra de 22% a 23% do que é vendido pelo país. O setor sustenta que toda a exportação tem certificação de que não houve desmatamento desde 1994. Há o receio, no entanto, de que o sistema de sensoriamento remoto usado pela UE confunda o que é árvore cortada para a produção com desmatamento puro e simples. O cultivo de café, cacau e palma também envolve desbastamento periódico de árvores, que não é desmatamento ilegal.

Este é um dos pontos frágeis da legislação europeia, ao qual os países prejudicados atribuem o propósito de proteger a produção agrícola local - um flagelo protecionista tradicional em todas as rodadas da Organização Mundial do Comércio - utilizando as armas politicamente corretas de defesa do ambiente. No Brasil, a legislação permite desmatamento de 20% na Amazônia e de 80% na Mata Atlântica. Já na Europa só é preciso preservar 4%. Ao não distinguir determinação das legislações nacionais sobre desflorestamento, a UE torna-se passível de justos questionamentos na OMC. Mas, diante desse quadro, há uma corrida para a antecipação do embarque de alguns produtos para a UE. Os de carne bovina saltaram 27,7% em agosto em relação a julho e 28,5% ante o mesmo mês de 2023.

Um apoio inesperado aos exportadores para a UE pode vir dos próprios agricultores europeus, afetados e descontentes com a nova legislação, até mesmo por suas virtudes. Entre as queixas estão limites ao uso de pesticidas e a exigência de manter 4% das áreas preservadas. As manifestações que se espalharam por França, Bruxelas e outras partes da Europa no início do ano mostraram essa contrariedade.

O governo brasileiro deve tentar influenciar a UE em busca de um meio termo. As sanções europeias jogam a favor dos objetivos nacionais, de coibir a devastação ambiental. Uma negociação séria envolve convencer a UE a respeitar a soberania nacional sobre desmatamento legal, e ao mesmo tempo aceitar restrições nos casos do deflorestamento claramente ilegal - e que o Brasil, muitas vezes e por vários motivos, é incapaz de coibir.

A restrição da UE poderia servir de incentivo ao aprimoramento no Brasil dos meios de vigilância e proteção à floresta, desde que, via diplomacia, dela fossem aparados os vieses protecionistas europeus. Não é tarefa fácil, nem de sucesso garantido, mas é um caminho que deve ser tentado.

STF precisa avaliar anistia a corruptos confessos

Folha de S. Paulo

Toffoli anula no atacado processos da Lava Jato, sem que a corte analise esse incentivo a desmandos com dinheiro público

Não há explicação razoável para a atuação errática da Justiça brasileira, em geral, e a do Supremo Tribunal Federal, em particular, nas investigações e ações conectadas à operação Lava Jato ao longo dos últimos dez anos. Nesse período, passou-se do frenesi justiceiro à anistia irrestrita a corruptos confessos sem dar oportunidade para a aplicação zelosa da lei.

Na corte constitucional, o ministro Dias Toffoli tem liderado as iniciativas monocráticas de derrubar no atacado toda e qualquer ação remotamente relacionada com as investigações originadas na vara federal de Curitiba.

Em setembro, o magistrado, que foi advogado do Partido dos Trabalhadores, fulminou todos os atos, provas e processos relacionados ao empresário Raul Schmidt Felippe Júnior, acusado de participar de um esquema bilionário de desvio na Petrobras.

Também no mês que acaba de se encerrar, Toffoli estendeu a graça da impunidade a Leo Pinheiro, o principal delator do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Lava Jato. Virou pó, pela canetada do ministro do tribunal, uma pena de 30 anos de prisão por corrupção contra o ex-mandachuva da empreiteira OAS.

Leo Pinheiro foi o mais recente de uma fila de contemplados pelas decisões solitárias do magistrado do STF, que também inclui Marcelo Odebrecht e vai se estender, pelo visto, para dezenas de outras petições semelhantes que aguardam a apreciação no gabinete do ministro.

As razões alegadas por Toffoli para determinar a extinção em massa dessas ações seria a sua relação genérica com uma investigação viciada pelo conluio entre a parte julgadora —capitaneada pelo então juiz Sergio Moro— e os agentes do Ministério Público incumbidos da persecução penal.

Não há dúvidas de que houve comunicação indevida entre partes que deveriam preservar distância institucional uma da outra na Lava Jato. Mas o método correto de averiguar se uma anomalia específica contamina uma prova ou condenação também específicas é fazê-lo caso a caso e, de preferência, na sede do juízo competente para apurar o mérito da acusação, que não é o Supremo.

Esse foi o cerne do recurso da Procuradoria-Geral da República contra a decisão de Toffoli a favor de Raul Schmidt. O argumento vale como princípio geral. Mandar derrubar tudo observando o tema a 30 mil pés de altitude, quando há confissões de crimes e devoluções de bilhões em recursos desviados, é um escárnio.

Espera-se em especial do presidente da corte, Luís Roberto Barroso, que o plenário do Supremo se reúna sem mais tardar para decidir se abona o festival da impunidade patrocinado por um membro solitário do colegiado.

Na hipótese benigna, a maioria, embora seja contra as atitudes de Toffoli, peca por omissão. Na pior, deixa o colega atuar solto porque, no fundo, concorda com ele. Nos dois casos, o que subsiste por ora é o incentivo à subtração do patrimônio público.

Funcionalismo não deveria crescer sem reforma

Folha de S. Paulo

Recorde de 12,66 milhões de servidores é puxado por municípios; salários e estabilidade exagerados encarecem contratações

O número de servidores públicos está em alta nas três esferas de governo no país. Um dado alarmante tanto diante do déficit público quanto do gasto brasileiro com remunerações do funcionalismo ativo, ambos muito elevados para padrões internacionais.

A tendência de expansão do quadro de pessoal foi constatada em levantamento do economista Bruno Imaizumi, da LCA Consultoria Econômica, a partir de dados da Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE. Os números mostram um recorde de funcionários, que somam 12,66 milhões em junho último, e aumento de 429 mil em um ano.

Quase três quartos desse crescimento (315 mil) ocorreu nas prefeituras, que também respondem pela grande maioria dos servidores —7,4 milhões. Parece plausível, assim, que o fenômeno esteja relacionado a uma expansão de gastos e serviços públicos em ano de eleições municipais.

Nas administrações estaduais, que empregam 3,5 milhões, a alta é bem mais discreta, de 42 mil. Os governadores ainda estão na primeira metade do mandato, período em geral de contenção de despesas e ajustes na gestão.

No governo federal, a ampliação do quadro de pessoal é esperada sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT), dadas afinidades de seu partido com corporações estatais. Os números, que incluem servidores estatutários, militares, celetistas e até informais, apontam incremento de 72 mil, para um total pouco acima de 1,7 milhão.

É normal que haja alguma imprecisão nas cifras, baseadas em uma pesquisa amostral. A tendência, de todo modo, mostra riscos de agravamento de distorções do serviço público nacional.

Comparações com outros países indicam que o funcionalismo não chega a ser numeroso em demasia no Brasil, quando se leva em conta a população ativa total. Seu custo, no entanto, ronda os 11% do Produto Interno Bruto na metodologia adotada pelo FMI, bem acima da média global.

Salários superiores à média nacional e um alcance exagerado da estabilidade no emprego encarecem o quadro de pessoal e reduzem sua produtividade.

Não é por acaso que estados e municípios, principalmente, têm recorrido à contratação de celetistas e mesmo de trabalhadores sem carteira assinada para contornar os encargos do regime jurídico dos servidores.

Reformas que viabilizem demissões por ineficiência, facilitem o remanejamento de funcionários e fixem remunerações compatíveis com as do mercado de trabalho deveriam preceder novas contratações.

Mistificação intelectual

O Estado de S. Paulo

Manifesto de artistas e intelectuais pede ‘voto útil’ em Boulos para impedir vitória de um certo ‘bloco antidemocrático’. Nem a democracia está em risco nem Boulos é a única alternativa

A campanha de Guilherme Boulos (PSOL) para a Prefeitura de São Paulo parece ter entrado em modo desespero, ao estilo “ninguém solta a mão de ninguém”, diante da possibilidade de o candidato esquerdista nem sequer chegar ao segundo turno.

Só isso explica a publicação de um criativo manifesto, assinado por uma seleta de artistas e intelectuais, que na prática implora aos eleitores da candidata Tabata Amaral (PSB) que desistam de votar nela em favor do chamado “voto útil” em Boulos, cujo objetivo seria conter o “risco de dois candidatos bolsonaristas passarem ao segundo turno: Ricardo Nunes e Pablo Marçal”. Para essa turma, uma eventual derrota do ex-líder dos sem-teto representaria um risco para a democracia.

Todas as pesquisas de intenção de voto apontam empate triplo, dentro da margem de erro, entre Nunes, Boulos e Marçal. De acordo com os dados disponíveis hoje, qualquer combinação de segundo turno envolvendo esses três candidatos é factível, inclusive a hecatombe que assombra os signatários do manifesto, aquela que exclui Boulos da disputa final pelo governo da capital paulista. Porém, nas simulações de segundo turno, Boulos perderia fragorosamente para Nunes e venceria Marçal por margem pequena de votos, nem de longe suficiente para lhe dar segurança na vitória. A única candidata que venceria todos eles no segundo turno, de acordo com as pesquisas, é, ora vejam, Tabata Amaral.

Portanto, se a intelectualidade que assinou o manifesto pusesse o intelecto para trabalhar, defenderia o “voto útil” em Tabata, e não em Boulos, caso o objetivo fosse evitar a vitória de um dos terríveis bolsonaristas em São Paulo. Mas Tabata carrega consigo um vício de origem aos olhos desses ditos “progressistas”: ela se perfila ao centro do espectro político, resistindo às estocadas do PT para desistir da campanha e recusando-se, ao menos até agora, a se comprometer em apoiar Boulos num eventual segundo turno.

O tal “manifesto”, ademais, se presta somente a confirmar algo que já ficou claro há bastante tempo: a esquerda não consegue oferecer nada ao País a não ser uma alegada “defesa da democracia” – e em termos inequívocos: para esses pensadores, os candidatos da direita integram um “bloco antidemocrático” que pretende usar uma eventual vitória em São Paulo para “dar uma demonstração de força” e “destruir os direitos mais básicos da república brasileira”. Afirmam ainda que “um resultado como esse representaria a consagração, pelo voto popular, da violência política, da defesa da tortura, do negacionismo científico, da destruição de direitos, do descaso com os mais pobres, do desprezo com a cultura, com as minorias e com a democracia além do vasto programa de destruição do meio ambiente”.

Poucas vezes se viu tamanha mistificação numa campanha eleitoral. Ao contrário do que dizem os signatários do “manifesto”, a democracia não corre o menor risco na cidade de São Paulo. Quem corre sério risco é Lula, que colocou todas as suas fichas na campanha de Boulos e, em caso de revés, sairá bastante desmoralizado.

Se é de democracia genuína que se trata, então o tal “manifesto” é exemplo de genuíno autoritarismo. Ali, os adversários do candidato ungido por esses luminares são tratados como demônios, e não como oponentes legítimos numa disputa política como qualquer outra. Os signatários terminam o texto convocando “todas as pessoas comprometidas com a empatia, a democracia, a humanidade e o futuro” a votar, “já neste domingo, em Guilherme Boulos”. Ou seja, ficou definido que quem não votar no sr. Boulos é desalmado, sem empatia, sem apreço pela democracia e desprovido de humanidade.

Como intelectuais, os manifestantes decerto sabem (ou deveriam saber) que é típico do pensamento totalitário reivindicar o monopólio da virtude e considerar adversários políticos como inimigos existenciais. Foi assim que ditadores como Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Daniel Ortega e o mestre de todos, o Comandante Fidel, construíram seus regimes tiranos – tão admirados, aliás, por Lula, Boulos e vários dos aflitos signatários do manifesto.

A trilionária barafunda tributária

O Estado de S. Paulo

Insper calcula em R$ 5,7 tri o contencioso dos contribuintes com o Estado, dando a dimensão do caos dos impostos e reforçando a urgência de regulamentar a reforma tributária

O contencioso tributário entre contribuintes e o Estado brasileiro agora tem uma cifra a delimitar de forma aproximada seu real tamanho: é de R$ 5,7 trilhões o valor total das ações administrativas e judiciais em que empresas e pessoas físicas disputam com União, Estados e municípios a respeito de cobrança de tributos, de acordo com levantamento do Núcleo de Pesquisas e Tributação do Insper, com base em dados disponíveis no exercício de 2020. Naquele ano, o Produto Interno Bruto (PIB) alcançou R$ 7,4 trilhões, o que significa que o valor dos litígios tributários chega à inacreditável marca de 77% do PIB.

O mapeamento do Insper, divulgado em reportagem do Estadão, comprova a importância inadiável da reforma tributária para corrigir a situação caótica que deteriora contínua e rapidamente o ambiente de negócios no Brasil. Mesmo não sendo a concertação ideal, é premente a regulamentação da reforma aprovada no fim do ano passado, depois de quatro décadas de discussões. Mas, diante da probabilidade da retirada do regime de urgência do projeto de lei que regulamenta a mudança tributária, o governo admite que a matéria deve ser empurrada para o ano que vem.

A decisão já foi tomada pelo Executivo, segundo informações deste jornal, depois de o Senado deixar expirar o prazo de 45 dias para a votação. A partir daí, o projeto passou a trancar a pauta, ou seja, nenhuma outra medida pode ser avaliada, a não ser que a urgência seja retirada. Os parlamentares alegam precisar de mais tempo para discutir o assunto – o que não deixa de ser uma ironia, depois dos cerca de 40 anos de debates. Passadas as eleições municipais, quem sabe o trâmite legislativo venha a ganhar mais celeridade.

No estudo do Insper, os pesquisadores chamam a atenção para a necessidade prioritária de o País melhorar o sistema de cobrança de impostos sobre o consumo, responsável por mais de dois terços do enorme contencioso. Diante dos 16 anos de duração média de cada processo, não é difícil identificar porque o Brasil encontra tanta dificuldade em atrair e reter investidores. Todas as 371 empresas de capital aberto negociadas na bolsa de valores de São Paulo valem juntas R$ 1 bilhão a menos do valor que está em jogo nas ações tributárias.

A aprovação histórica do novo arcabouço tributário, em dezembro de 2023, não teve um percurso indolor no Congresso. A ação de lobbies os mais diversos, que obtiveram respaldo dos parlamentares, desfigurou pontos importantes que fizeram a alíquota de referência para o imposto de bens e serviços subir de 26,5% para 28%. Exceções, benefícios e regimes especiais enfraqueceram o impacto do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), mas não alteram a previsão de que, com a reforma, o potencial de litígios tributários diminuirá.

Apesar da perspectiva de que haja novas disputas judiciais, a começar por medidas como a criação do “imposto do pecado” – cuja incidência parece respeitar critérios demagógicos, e não objetivos –, nada se compara à barafunda tributária que o País acumulou até aqui. Aqui, um produto pode ser taxado de forma diferente apenas ao mudar de designação, como num caso famoso em que um bombom teve a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) reduzida de 5% para 3,25% ao se tornar “biscoito wafer”.

Assim como o Imposto Seletivo, outros pontos podem suscitar disputas, como o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação(ITCMD), como destacam os pesquisadores do Insper. Mas, a simplificação tributária, além facilitar o investimento, tende a diminuir a escalada dos recursos que em 2018 totalizaram R$ 4,9 trilhões e, dois anos depois, havia aumentado em 17%.

A primeira parte da regulamentação da reforma tributária chegou ao Senado no início de agosto e deveria ter sido discutida e votada antes das eleições municipais. Postergando a tramitação, o Congresso colabora para a sobrevida da barafunda tributária.

Campeões por acaso

O Estado de S. Paulo

Caso da tenista Naná mostra que o esporte brasileiro produz vencedores por sorte

Jovem promessa do tênis, a paulistana Nauhany Silva, a Naná, é mais um exemplo de que o Brasil deve seu relativo sucesso esportivo ao acaso, não a políticas efetivas de fomento. Aos 14 anos, como mostrou reportagem do Estadão, Naná é uma força da natureza, com um saque tão potente quanto o de tenistas profissionais adultas. Contudo, não fosse a engenhosidade do pai e treinador, que adaptou a sala de casa e marcava ruas de asfalto com fita para que a filha pudesse treinar, ela não teria chegado ao ranking da Associação de Tênis Feminino (WTA). Graças ao descaso crônico do Brasil com o esporte, muitas “Nanás” nem mesmo chegam a conhecer o potencial que têm.

E, a depender do Ministério do Esporte, assim seguiremos. A ex-atleta Ana Moser, que pavimentou o caminho para que a Copa do Mundo de Futebol Feminino seja disputada no Brasil em 2027, foi dispensada do Ministério não por mau desempenho, mas para que o presidente Lula da Silva pudesse entregar mais uma pasta ao Centrão.

Comandado hoje por André Fufuca (PP), o Ministério do Esporte destinou ao Maranhão, Estado do ministro, 28 contratos de construção de espaços esportivos – outros 8 Estados terão, somados, o mesmo número de centros que o Maranhão sozinho. E obviamente nada disso garante que o Maranhão se torne uma potência do esporte, porque só a existência de espaços esportivos não forja campeões.

Quando não se vale do esporte para praticar a politicagem de sempre, o governo recorre ao populismo puro e simples, como fez recentemente ao isentar de impostos a premiação em dinheiro dos campeões olímpicos em Paris. Eis a política de fomento ao esporte no Brasil: premiar quem já está no topo e seguir negligenciando o grande contingente de brasileiros que, com acesso a equipamentos esportivos adequados e devidamente incentivados por campeonatos competitivos associados a bolsas de estudo em boas escolas e universidades, poderiam se revelar campeões.

Se Naná se sagrará campeã como Gustavo Kuerten e Maria Esther Bueno, não é importante aqui. O fato é que a possibilidade de jovens como ela avançarem no esporte depende da transformação das escolas brasileiras em usinas de atletas, como ocorre nos Estados Unidos e em outras potências olímpicas. Hoje, como se sabe, boa parte das escolas públicas mal tem quadras esportivas, equipamentos adequados ou professores preparados.

Por isso, no Brasil, dependemos da sorte. Quando aparece um Gustavo Kuerten, que também teve que improvisar treinos no começo da carreira, trata-se de um fenômeno isolado, que não é fruto de um trabalho de preparação sistemática e organizada com vista a revelar novos talentos. Sempre nos emocionamos com histórias como a da campeoníssima Rebeca Andrade, que no início tinha que caminhar duas horas para chegar ao local de treinos porque não tinha dinheiro para o ônibus, mas exemplos de superação não mudam o fato de que maltratamos meninas e meninos que demonstram potencial e que só chegam lá porque são fenomenais.

Diddy, machismo e influenciadores

O Correio Braziliense

Para além do mundo das celebridades, o escândalo envolvendo o rapper P. Diddy esquenta os debates sobre os estragos causados por falsas notícias e pelos chamados influencers, além dos excessos nas relações de trabalho

Parte do noticiário internacional, nas últimas semanas, se voltou ao escândalo que envolve o rapper Sean Combs, conhecido como Puff Daddy ou P. Diddy. Magnata nascido no Harlem, em Nova York, o artista pode ser condenado a cerca de 25 anos de prisão por diversas acusações, como tráfico sexual, associação ilícita e promoção de prostituição, além de agressão contra ums ex-namorada, a também cantora Cassie Ventura. Para além do mundo das celebridades, o escândalo esquenta os debates sobre os estragos causados por falsas notícias e pelos chamados influencers, além dos excessos nas relações de trabalho.  

Com as denúncias, surgiu na internet uma onda de teorias que ligam Sean Combs a outros famosos — e, com elas, novos crimes foram atribuídos a ele. Não é necessária muita habilidade com as redes sociais para se deparar com conteúdos do tipo, boa parte deles produzida por influenciadores. Pela própria fama do acusado e sua proximidade com nomes históricos do mundo da arte, essas teorias são carregadas de achismos e supostas ligações que não deveriam ser tema de vídeos e postagens de quem tem pouco a oferecer. Na verdade, essas pessoas só querem aproveitar a repercussão do caso para ganhar dinheiro fácil a partir do alcance nas redes sociais. 

Trata-se de mais um desserviço prestado por parte significativa dos chamados influenciadores, que vivem da audiência pela audiência, sem qualquer apuração do que é ou não verdade. São os mesmos que, por exemplo, propagam falsas vantagens de investimentos em casas de apostas, prometendo grandes lucros para uma audiência que, muitas vezes, é enganada e compromete até mesmo recursos de programas sociais nos cassinos digitais, e que disseminam inverdades para manipular a disputa política. 

Casos como os de Sean Combs são complexos por si só. Em primeiro lugar, por conta do próprio poder que circunda o acusado. Como bilionário e influente no mundo da música, Diddy conseguiu, por muito tempo, acobertar as denúncias. Além do mais, vale sempre lembrar que homens em posição de destaque tendem a calar suas vítimas, que veem pouca possibilidade de serem ouvidas numa queda de braço bastante desequilibrada. A prática é rotineira em outros cenários. De 2020 a 2023, a Justiça do Trabalho brasileira julgou, em todas as suas instâncias, 419.342 ações envolvendo assédio moral e assédio sexual — mulheres costumam ser as principais vítimas. A quantidade de processos para ambos os crimes cresceu, respectivamente, 5% e 44,8% no período. 

Diante das dificuldades que envolvem escândalos com pessoas poderosas, em nada ajuda quem prefere tomar o rumo da especulação para criar narrativas. É preciso que o consumidor desse tipo de conteúdo também faça sua curadoria. Questione se aquele influenciador tem, de fato, capacidade técnica de "separar o joio do trigo", se a promessa de dinheiro e soluções fáceis não se trata de uma grande armadilha. 

Também é preciso discutir como, mais uma vez, o machismo se impõe no mundo da arte. É bem verdade que essa camada da sociedade só reflete os problemas manifestados em todos os grupos sociais, uma vez que a violência contra a mulher não tem idade, cor ou condição financeira. Ainda assim, o ódio entre aqueles com mais poder é de difícil detecção, contornado por máscaras revestidas e costuradas pela idolatria.

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