quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Vera Magalhães - As palavras-chave da eleição em SP

O Globo

Violência que marcou a disputa em São Paulo conseguiu colocar prosperidade e civilidade em palanques diferentes

Duas palavras parecem sintetizar a reta final da mais imprevisível eleição paulistana dos últimos anos: de um lado, Pablo Marçal conseguiu chegar competitivo até aqui pregando a prosperidade como plataforma; de outro, a esquerda apela ao conceito de pacto civilizatório para tentar impulsionar a candidatura de Guilherme Boulos na reta final.

Prosperidade e civilidade não deveriam ser antônimos, mas a violência que marcou a disputa em São Paulo conseguiu colocar os valores em palanques diferentes. O que obriga a uma análise mais aprofundada e menos ligeira da rápida e constante transformação política, social, cultural e econômica da maior metrópole brasileira — que costuma levar de arrasto, com o tempo, o resto do país.

Ricardo Nunes montou uma campanha típica de prefeito incumbente: juntou partidos, de olho no maior tempo na propaganda e na fatia do fundo eleitoral. Achou que bastaria listar uma infinidade de obras para garantir a reeleição. O emedebista se fiou na tese de que as entregas, voltadas sobretudo à periferia, lhe assegurariam uma passagem tranquila ao segundo turno e, nessa fase, a rejeição a Boulos liquidaria a fatura.

O candidato do PSOL achou que 2024 seria a continuação natural de 2020, quando foi competitivo contra Bruno Covas, e, sobretudo, de 2022, devido à vitória de Lula sobre Jair Bolsonaro na capital. Não levou em conta a excepcionalidade da disputa na pandemia, nem que a frente ampla que se formou para derrotar Bolsonaro já se desfez nestes últimos dois anos.

O apelo, nos últimos dias, à reedição do que vem sendo chamado de pacto civilizatório parte do princípio de que a cidade teria propensão progressista, o que não é comprovável levando em conta apenas o resultado de 2022. O caráter “ciclotímico” das disputas municipais, ora elegendo Luiza Erundina, ora consagrando o malufismo; elegendo Marta Suplicy e, três ciclos depois, derrotando um prefeito petista no primeiro turno, em 2016, mostra que é pueril tentar traçar um perfil ideológico-padrão do paulistano.

O fato de a direita também estar fragmentada, com Bolsonaro deixando rapidamente de ser um padrinho capaz de definir o jogo, é a comprovação dessa dificuldade do outro lado do espectro político. Marçal percebeu que havia um caminho alternativo: vender prosperidade fácil numa cidade onde está todo mundo no “corre” para vencer na vida. O coach aliou essa pregação que já fazia em seus vídeos, cursos e livros ao personagem cáustico, capaz de atrair a atenção e de definir a pauta numa disputa que, muitos acreditavam, seria um “tira-teima” da última eleição municipal.

O canto da sereia tem sido duradouro. Marçal se aproxima mais de Javier Milei, com o fator adicional de sua pantomima do caos, numa eleição em que, diferentemente da Argentina, a economia está longe do colapso, e o desalento com a política e o establishment não é um sentimento tão palpável.

Conseguiu despertar um instinto egoísta em diferentes segmentos do eleitorado, que dificilmente deixará de ter consequências para os próximos ciclos eleitorais. Ganhe ou perca, a “marçalização” do debate político já é uma realidade que obrigará o governo federal e os postulantes a herdeiros do bolsonarismo em 2026 a reverem suas estratégias e sua forma de se comunicar com uma sociedade menos previsível do que a desenhada nas pranchetas de marqueteiros.

Vídeos à “We are the world” com um desfile de artistas e intelectuais pregando voto útil em Boulos parecem pouco eficazes para falar com o público que o candidato do PSOL precisa atingir agora, muito mais suscetível ao discurso de que você pode conseguir sua jornada rumo ao sucesso se seguir um líder messiânico surgido do nada. Ou Boulos e Nunes pegam esse rabo de cometa e começam a falar com esse público, ou a simples pregação à civilidade ou ao voto útil tendem a ser narrativas de alcance limitado.

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